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GABRIEL TARDE E O PLANO DE COMPOSIÇÃO PROGRESSIVA DA NATUREZA

2.6. Da sociedade à natureza, do claro ao obscuro

Uma vez descrito o objeto próprio da ciência dos fatos sociais humanos ou sociologia, os instrumentos de que ela se utiliza, bem como os princípios ou leis gerais que ela encontra e que são acompanhados de uma série de promessas no que concerne ao conhecimento do engendramento da natureza, a saber, uma inter-psicologia que torna translúcida a atividade do espírito e uma lógica e teleologia que acabam por encontrar uma necessidade lógica que se encontra inscrita nessa mesma atividade, podemos passar à análise da maneira pela qual a filosofia da natureza tardiana terá seu caráter “hipotético” precisado pelas “certezas” às quais permite aceder um campo do saber científico que teve acesso a vida do espírito de uma maneira que nos é vedada em se tratando dos mundos material e vivo.

Com sua monadologia renovada Tarde pudera já elencar uma série de teses cujo valor é, de certo modo, independente da ciência que sobre ela vem se enxertar. Nela já pudemos observar que na natureza há espíritos por toda parte; que a atividade do espírito se caracteriza a partir das forças que lhe são constituintes, crenças e desejos; que toda regularidade fenomênica tem como origem a repetição de uma inovação individual; que todo fenômeno é um fato social ou associação entre elementos heterogêneos; que um esforço de harmonização progressiva anima a constituição desses fenômenos. Mas o que haveria de hipotético – como reconhecera o próprio Tarde – em seus escritos monadológicos acaba por encontrar na associação de espíritos pela qual se constitui uma sociedade humana uma fonte de clareza e de confirmação. Cientistas ou sonhadores, filósofos ou poetas, “todos vivemos de analogias”, afirma Tarde (1897b, p. 189). As analogias do poeta se nomeiam metáforas, aquelas do cientista e do filósofo, generalizações. E se o essencial é que as comparações do poeta sejam comoventes, o essencial daquelas do cientista e do filósofo é “que sejam esclarecedoras”.

Comparação não é razão, dir-se-á; eu o sei bem, embora o desprezo das induções analógicas esteja em contradição com a realidade e a universalidade das repetições e das similitudes fenomenais, ou seja, no fundo, com a realidade e a universalidade das leis, matéria e substância de toda ciência. Nada é então mais anti-científico que o desdém das luzes da analogia (TARDE, 1897b, p. 198).

Essas luzes da analogia possuem uma fonte precisa para Tarde: o inventário estabelecido em torno da vida do espírito (do modo pelo qual ele age ao se associar e dos imperativos lógicos que presidem essa associação) erigido em campo de saber específico e autônomo, a sociologia. A neo-monadologia tardiana tomava como ponto de partida a explicação dos acordos que Leibniz não soubera explicar sem a tese de harmonia preestabelecida. Esses acordos a neo-monadologia resolveu em sociedades de uma miríade de tipos. Mas “como” esses acordos se operam, como se dá a conversão espiritual que estabelece os uníssonos espirituais que são os fenômenos naturais, “qual” a natureza do imperativo lógico ao qual eles correspondem, ela não poderia explicar. Essa explicação é encontrada pela sociologia.

Há uma dupla afirmação de Tarde que deve ser destacada. Encontramos nela o desafio essencial para a compreensão de sua ciência do social e de sua filosofia da natureza tomadas em sua imbricação. A monadologia de Leibniz, sobretudo com as reformulações que Tarde lhe impõem, tornava translúcida à “inteligência” a natureza. Já a sociologia, analisando as ações inter-espirituais do interior, torna por sua vez translúcida ao “espírito” sua própria

realidade. Coisa estranha, é bem verdade, se pensarmos esse modo de encarar as coisas em comparação com Bergson. Caberá a uma ciência permitir ao espírito uma visão sobre si mesmo!

Ao contrário da racionalidade científica pleiteada pelo durkheimianismo, o cientificismo de Tarde se gaba de um acesso direto e imediato ao que há de espiritual na constituição dos fatos sociais. Como consequência, o exclusivismo e precisão metodológica da dimensão antropológica do psiquismo universal são mergulhados na universalidade pré- antropomórfica da vida do espírito. Trata-se de aplicar os quadros da interpsicologia e da lógica social à filosofia da natureza na qual as mônadas, agentes infinitesimais de onde parte uma mudança qualquer, se associam ao se entre-possuírem por meio de uma ação a distância de espírito a espírito na direção de uma assimilação generalizada. Ação interespiritual esta que agora sabemos, por meio de uma sociologia “pura” e “abstrata”, como se opera de indivíduo a indivíduo: agenciamento coletivo de crenças e de desejos enxertando-se, no caso da vida humana individual e social, por sobre a multiplicidade qualitativa de sensações, ideias, desígnios e necessidades as mais variadas. É verdade que não se trata, sob o risco de antropomorfismo, de reconhecer em uma natureza que tem no socius seu modelo de constituição a presença de “ideias” ou de “necessidades” que animariam a ação dos elementos monádicos. Sem dúvida, afirma Tarde (1893a, p. 99), “tudo isso é metafórico”, sendo preciso escolher com precisão os termos da comparação.

(...) e o leitor não queira se esquecer de que, se a crença e o desejo, no sentido puro e abstrato que entendo essas duas grandes forças, as duas únicas quantidades da alma, possuem a universalidade que eu lhes atribuo, eu apenas realizo uma metáfora ao chamar ideia a aplicação da força-crença a marcas qualitativas internas sem nenhuma relação, no entanto, com nossas sensações e nossas imagens – ao chamar

desígnio a aplicação da força-desejo à uma dessas quase-ideias – ao chamar propaganda a comunicação de elemento à elemento, não verbal seguramente, mas especificamente desconhecida, do quase-desígnio formado por um elemento iniciador, - ao chamar conversão a transformação interna de um elemento no qual entra, no lugar de seu quase-desígnio próprio, aquele de outro (TARDE, 1893a, 99).

O recurso a metáforas desse gênero é o preço da extensão analógica de uma maneira de proceder inventivamente no campo da natureza, inacessível à observação direta, daquilo que é encontrado no terreno da vida do homem em sociedade. As irradiações imitativas, blocos provisórios de coisas imitadas que recrutam ao seu redor associados e que formam os acordos do mundo humano, são o único material empírico da ciência social, pois “jamais vemos as mônadas” (LATOUR, 2011, p. 29). O espírito apenas pode observar a si mesmo nos limites das ações antropogênicas, da constituição das harmonias e acordos sociais.

Mas se a natureza convida Tarde a observar que todo fenômeno é a repetição do que fora, inicialmente, uma inovação individual, que todo fenômeno é um acordo mais ou menos estável entre elementos heterogêneos, quer se trate das possessões monádicas que se efetuam nos mundos material e vivo, quer se trate das magnetizações entre individualidades humanas, o que se encontra em jogo é a colocação em acordo de uma multiplicidade pulsional.

Não se trata, de nossa parte, de reconhecer uma anterioridade lógica ou cronológica da filosofia da natureza para com a sociologia “pura” e “abstrata” ou vice-versa. Podemos supor que a filosofia da natureza se encontra subentendida na ciência do social (Tarde fala das analogias entre natureza e sociedade desde muito antes da publicação de suas obras nas quais deseja empreender verdadeira tarefa de homem da ciência), mas podemos supor também que – e esse é o ponto essencial – as resoluções encontradas na análise científica da vida do homem em sociedade permitem esclarecer o que, no terreno da pura filosofia da natureza, permaneceria no estatuto de hipótese sem verificação ou observação “direta”. A essa exterioridade da natureza frente ao observador vem responder a dimensão de interioridade que se revela com o fato social elementar. Se não podemos, portanto, falar em anterioridade lógica ou cronológica entre filosofia da natureza e ciência dos fatos sociais, podemos sem dúvida falar em termos de privilégio excepcional da segunda com relação à primeira, que permite observar “do interior” algo que Tarde já sabia ser, com efeito, um fato geral e universal. No mais, e é do que nos ocuparemos na sequência, os próprios fatos sociais humanos não são exteriores à história geral das composições cósmicas. Eles vêm nelas ocupar um lugar privilegiado, além de ser a expressão de um esforço que, ele também, é geral, e que faz fundo a tudo o que há de regular na natureza.

CAPÍTULO 3

O lugar da sociedade dos homens no plano de composição da natureza:

condições de seu surgimento e privilégios na constituição de uma unidade espiritual

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