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GABRIEL TARDE E O PLANO DE COMPOSIÇÃO PROGRESSIVA DA NATUREZA

3.2. As composições harmônicas no campo da natureza: o caso do mundo vivo

3.2.1. Determinações naturais na humanidade inventiva e imitativa

Situar o homem ao longo de uma história que lhe precede e na qual ele aparece como uma de suas determinações obriga Tarde a retomar o fio dessa evolução. Um primeiro passo é tomar as disposições sociais do homem como um aspecto biológico. Tal tentativa não é estranha à fundamentação biológica da inteligência e da sociabilidade humana elementar tal qual operada por Bergson. Trata-se, de uma maneira que não é totalmente assimilável ao proceder bergsoniano, é verdade, de localizar o homem social, abastecido com suas categorias essenciais, no mundo vivo que lhe precede. Não é somente ao precedente e ao seguinte que cada um dos fatos históricos se liga por laços lógicos, reconhece Tarde (1895b, p. 215), “mas a uma ou, antes, a muitas séries de repetições regulares, vitais ou sociais, das quais eles são o ponto de encontro superior”. Um acontecimento histórico é, portanto, o ponto de encontro de uma multidão de séries de repetições. Estas não são apenas sociais, analisáveis nos quadros das leis lógicas da vida social, mas também vitais e mesmo materiais, que influenciam ou determinam o sentido da série social.

Podemos observar ao longo da história povos distintos que chegam por vias distintas a uma mesma civilização do ponto de vista linguístico, industrial, mitológico, político, estético, etc. Como explicar fenômenos dessa natureza, evoluções paralelas, admitindo a ausência de contato e contágio imitativo em semelhantes ocasiões? Por que não explicar essas semelhanças aparentemente fortuitas, pergunta-se Tarde (1890b), pela propagação uniforme das mesmas ondulações luminosas e caloríficas, pela identidade das funções e propriedades fundamentais de toda célula, de todo protoplasma, pela construção molecular dos elementos químicos da vida, sempre os mesmos em seus ritmos interiores de movimentos repetidos? Se um paralelismo de ideias geniais entre populações que não passaram pelo crivo da assimilação imitativa é observável no curso da história isso se deve a um único motivo. É porque o homem foi obrigado, “pela uniformidade de suas similitudes orgânicas”, a seguir um mesmo caminho de ideias, de modo que nos encontramos, afirma Tarde (1890b, p. 102), diante de “similitudes de ordem biológica, e não social”. O homem, aquele mesmo que se exercerá nas ações imitativas, é antes disso um compósito de repetições interiorizadas por um acordo sui generis, verdadeiramente criador.

Essas semelhanças, como aquelas de que falamos acima, entrariam, portanto, é verdade, no princípio geral que toda similitude é nascida de uma repetição; mas, ainda que sociais, elas teriam por causa repetições de ordem biológica e de ordem física, transmissões hereditárias de funções e de órgãos que constituem as raças humanas e transmissões vibratórias de temperaturas, de cores, de sons, de eletricidade, de afinidades químicas, que constituem os climas habitados e os solos cultivados pelo homem (TARDE, 1890b, p. 100).

O homem figura como o ponto de encontro de uma miríade de micro- repetições infinitesimais que constituíram o universo das similitudes físicas, cuja complicação, cuja repetição variada, originou por sua vez o universo das similitudes orgânicas. Trata-se de uma integração que se opera em um ponto particular das composições da natureza que fazem com que no exercício de sua humanidade algumas determinações se façam sentir que não são redutíveis ao que há de propriamente e apenas “humano” no homem. Afirmações dessa natureza não têm outro objetivo senão localizar o homem, inventor e imitativo, no movimento de constituição da natureza, no qual séries de repetições podem se entre-cruzar, colocar-se em acordo para a construção de um ser como o homem acabado do qual, ou melhor, de cuja atividade, deve se ocupar uma sociologia que se reconhece “pura” ou “abstrata”. Aquilo que Bergson reconheceu e esforçou-se por descrever – a espécie humana, inteligente e sociável – saída da evolução do mundo vivo, Tarde realiza ao seu modo. Sem recorrer ao modo pelo qual uma causalidade própria à vida cria e deposita as espécies ao longo de seu desenvolvimento, ele demonstra como o homem ocupa um lugar por sobre os mundos material e vivo. Ocupando esse lugar, o homem sofre suas determinações. É de início intimamente ligado a elas, emancipando-se apenas progressivamente sem deixar de interiorizá-las em seu exercício.

Uma vez lançado na via das invenções e descobertas, o gênio humano não deixa de se encontrar determinado por um conjunto de condições das quais resulta. Daí o paralelismo das ideias geniais a que nos referimos acima, inexplicáveis pela comunicação entre os povos. Ainda que uma invenção se resolva, e cada vez mais completamente de acordo com o desenvolvimento da civilização, em elementos psicológicos formados pelo entrecruzamento de exemplos que se propagam há, percorrendo a série de invenções a contracorrente, um conjunto de necessidades orgânicas, devidas a similitudes de ordem biológica, que canalizam as invenções na origem das sociedades. Uma série de condições, por meio de repetições variadas no domínio geracional-hereditário, acaba por despertar necessidades profundas na alma humana. Invenções e descobertas capitais que, insiste Tarde

(1890b), começando a se expandir pela imitação, colocam seus imitadores, por uma propagação subsequente e progressiva, diante do prazer de imitar.

O que se encontra em jogo é a passagem de um domínio inventivo cujas determinações são ainda vitais para um domínio inventivo que tenha se livrado dessas determinações para poder ser tomado como completamente humano. Encontramo-nos aqui diante de dois problemas fundamentais. Primeiro, que há uma marcha no topo da qual se encontra o homem que imita seus pares, e que nessa marcha há sinais de um destacamento progressivo das determinações inferiores, de ordem física e biológica. Em seguida, essa “emancipação” do humano que se torna plena e irredutivelmente humano, é tributária de uma vida guiada por categorias fundamentais. E, em se tratando da origem da sociedade, de atos imitativos emancipados de determinações outras que não antropogênicas, uma vez mais deparamos com a religião e a língua, categorias ou “instituições” (TARDE, 1889) fundantes da sociedade. Fundantes, assim, de uma via de acordos que, limitados às condições determinantes dos andares inferiores da realidade, estaria vedada a esse “homem natural”.

Na origem um antropoide imaginou (...) os rudimentos de uma língua informe e de uma religião grosseira: esse passo difícil, que fez romper o homem até então bestial a soleira do mundo social, deve ter sido um fato único, sem o qual esse mundo, com todas as suas riquezas ulteriores, teria mergulhado nos limbos dos possíveis irrealizados. Sem essa centelha, o incêndio do progresso jamais teria sido declarado na floresta primitiva cheia de feras; e é ela, essa propagação por imitação, que é a verdadeira causa, a condição sine qua non. Esse ato original de imaginação teve como efeito não somente os atos de imitação diretamente emanados dele, mas ainda todos os atos de imaginação que ele sugeriu e eles próprios sugeriram outros, e assim por diante, indefinidamente (TARDE, 1890b, p. 103).

Tudo se liga a esse ato criador e imaginativo individual e original, toda similitude social provém dessa primeira imitação da qual seus produtos foram objeto. Inaugura-se assim toda uma cadeia de possíveis, um novo mundo, ou melhor, uma nova série aberta a desenvolvimentos que são outras tantas harmonias. O mesmo ocorrera, muitos séculos antes, prossegue Tarde (1890b), quando, pela primeira vez sobre o globo, uma pequena massa de protoplasma se formou – não se sabe como – e colocou-se a multiplicar pela geração. Dessa primeira repetição hereditária procedem todas as similitudes que agora observamos entre os seres vivos, bem como, de modo indireto, todas aquelas que são seu ponto de encontro superior, e que possibilitam um novo modo de propagação repetidora como a imitação. Deixemos de lado pelo momento a questão da passagem e da articulação entre esses mundos, problema de que trataremos adiante. Mas suponhamos, no que toca à passagem do vivo ao humano, como isso deve ter se passado, informados que estamos de como se

operam as inovações no campo da natureza na qualidade de grande plano de composição: processo de “Inserção universal” no qual uma diferença visa imprimir sua imagem ao mundo, fazer um mundo à parte. Imaginemos o antropoide hipotético acima descrito. As repetições do mundo vivo deram conta de lhe dotar de um cérebro desenvolvido. Ocupando o topo da série constituída pelas repetições biológicas, dotado de um cérebro que é palco do que Tarde chamara do anárquico pulular de sensações e de imagens esse antropoide, por meio de uma “objetivação criadora”, brinda-se com categorias que, coordenando e instaurando a ordem em sua atividade mental, conduzem suas ações na direção de uma expansividade que extrapola os limites de suas determinações orgânicas e das necessidades colocadas pelo mundo da vida. Uma “centelha”, disse Tarde, um fato único, provoca um “incêndio” irreversível.

Se os segredos desse aparecer são inacessíveis – é o que Tarde frisou descrevendo um período “pré-categórico” ao qual nos seria impossível remontar – esse modo de encarar os fatos não deixa de apontar para algo importante: o que “rompe” com o “natural” se localiza na esteia de seus desenvolvimentos. Ou seja, rompe “inserindo” a partir daquilo que lhe precede uma nova modalidade de expansão e de estabelecimento de acordos. Trata-se da realização do “mesmo” – do intento assimilador e harmônico das obras da natureza –, mas “de outro” modo, com novos meios. Ao fazê-lo, esse novo gênero de expansão harmônico- assimiladora arrasta consigo os mundos inferiores, coroados por essa nova maneira de estabelecimento de repetições fenomênicas. Poderíamos prosseguir esse encadeamento indefinidamente, remontando, a partir do mundo humano, até a repetição infinitesimal que inaugura a série de possíveis que desembocou no estrato psíquico e social, passando pela primeira repetição hereditária, originária do mundo vivo, depois pela primeira repetição vibratória, originária do mundo material, etc.

Não há de propriamente social, a bem dizer, senão a imitação dos compatriotas e ancestrais, no sentido o mais amplo do termo. Se o elemento de uma sociedade possui uma natureza vital, o elemento orgânico de um corpo vivo tem uma natureza química. Um dos erros da antiga fisiologia foi o de pensar que ao entrar em um organismo as substâncias químicas abdicavam de todas as suas propriedades e se deixavam penetrar até seu foro interior e seu arcano o mais secreto pela influência misteriosa da vida. Nossos novos fisiologistas dissiparam completamente esse erro. Uma molécula organizada pertence, ao mesmo tempo, a dois mundos estranhos e hostis um ao outro. Ora, poderíamos negar que essa independência da natureza química dos elementos corporais com relação à sua natureza orgânica nos ajuda a compreender as perturbações, os desvios e as formas felizes dos tipos vivos? Mas me parece que é necessário ir mais longe e reconhecer que somente essa independência torna inteligível a resistência de certas porções de órgãos à aceitação do tipo vivo hereditário, e a necessidade em que se encontra por vezes a vida, ou seja, a coleção de moléculas que permaneceram dóceis, de transgredir enfim, pela adoção de um novo tipo, com as moléculas rebeldes. Não parece haver aí nada de propriamente vital, com efeito, senão a geração (da qual a nutrição ou a regeneração

celulares são apenas um caso), conforme ao tipo hereditário. Isso é tudo? Talvez não; a analogia nos convida a acreditar que as leis químicas e astronômicas elas próprias não se apoiam sobre o vazio, que elas se exercem sobre pequenos seres já caracterizados interiormente e dotados de diversidades inatas (TARDE, 1893a, p. 82).

Não nos cabe levar ao limite essa gênese de gêneros de repetição justapostos e enxertados por sobre gêneros inferiores que se integram e se deixam arrastar pelos superiores. O que devemos reter aqui é o fato que um mesmo elemento pode e mesmo deve pertencer a mundos diferentes. Não vimos que Tarde se esforça em demonstrar que o homem é, ao mesmo tempo, um ser vivo e social? Não vimos que nessa intersecção misteriosa, que remonta aos confins da pré-história da humanidade, quando o homem abandona a animalidade ao imitar seus parentes e vizinhos, localiza-se a transição do espírito agindo sem a ajuda das categorias para aquele que lhes subsumi seu desenvolvimento? Não vimos que, por excepcional que seja a repetição imitativa, ela se encontra originariamente na interface de uma natureza composta de repetições materiais e orgânicas? Mas antes de observarmos como Tarde oferece uma visão global e precisa das relações entre os andares da natureza a partir da unidade do esforço que lhes anima, tratemos do campo por sobre o qual a humanidade se coloca de saída e onde ela permanece enquanto elabora, em segredo, as condições de seu desenvolvimento posteriormente autônomo – o mundo da vida.

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