• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1 A DIVINAÇÃO DE IFÁ E A CONCEPÇÃO DE RIQUEZA

1.4 A concepção de riqueza nos poema de Ifá

1.4.3 Aspectos comuns aos poemas de Ifá

do simbolismo “ovo contido no algodão”, que representa a interação entre aspecto masculino e aspecto feminino, ele demonstra que a existência só pode transcorrer a partir da união desses dois elementos. Nesse sentido, a riqueza, apesar de estar diretamente referida ao feminino (terra/fecundidade, mulher/fertilidade), depende da ação do poder masculino, pois a terra só é fértil se for umedecida pela água da chuva, considerada elemento masculino (SANTOS, 2002, p. 79-80) e a mulher só pode gerar filhos se for fecundada pelo sêmen, também masculino (“sangue branco”) (SANTOS, 2002, p. 41).

1.4.3 Aspectos comuns aos poemas de Ifá

Alguns aspectos são comuns em todos os poemas de Ifá: o sacerdote, o consulente (quem se consulta com o sacerdote) e a realização de oferendas.

O papel do divinador (sacerdote) no Ifá é essencial, porque ele é considerado guardião e transmissor do saber divino. Ele é quem traduz as leis divinas aos homens e, por meio do Ifá, faz a ligação entre os homens e as divindades e ancestrais. Conforme vimos, ele é um elo de comunicação entre os dois mundos. Sua presença nas cidades é considerada importante e ele é consultado em toda decisão a ser tomada.

Conforme já apontado, Jan Assman (2008, p. 147), afirma que por meio do texto sagrado pronunciado o sacerdote não apenas se refere ao sagrado, mas cria o sagrado. Isso pode ser observado no

Ifá, pois, ao mesmo tempo que o babalawo (sacerdote) “levanta” o destino da pessoa, ou seja, identifica dificuldades e possibilidades em seu caminho, ele também tem capacidade para intervir nesse destino, podendo alterá-lo. Acredita-se que ele não apenas consegue antever o destino, como é capaz de alterá-lo, o que, segundo Costa (1995, p. 25) pode ser traduzido pela expressão Da Ifá Fun, que significa “a criação de Ifá para”. Isso aparece de modo muito evidente no primeiro poema, em relação ao enriquecimento de Óbàrà, que teve sua vida alterada pela intervenção de Ifá, mesmo não sendo ele o consulente naquele momento.

Além da função religiosa, se é que se possa fazer essa distinção, o babalawo desempenha função social e política. A função social se deve ao fato dele ser um agente cultural importante, a medida que veicula conhecimentos da tradição entre seus membros, e mesmo entre sociedades diferentes, quando viaja de uma cidade a outra, contribuindo assim, para a

manutenção da tessitura cultural (ABIMBOLA, 1977, p. 70). Sua relação com a política se evidencia no fato de que ele é chamado para jogar Ifá para os reis, em diversas situações, incluindo os momentos de tomada de decisões importantes, como por exemplo, quando um rei precisa ser substituído (ABIMBOLA, 1977, p. 19). É claro que como foi visto, existiam critérios para a indicação de um rei como senioridade, posses e um bom relacionamento com as pessoas. De qualquer modo, existia a participação do babalawo nesse processo, seja para “criar” de fato um destino novo, seja para consumar uma escolha política, que já havia sido feita. Assim, a relação entre os adivinhos e os reis era bastante próxima. O poema 2 mostra a frequência com que um rei poderia receber consultas divinatórias, no caso do poema, a cada nove dias.

Um poema (ABIMBOLA, 1977, p. 72), relacionado ao odu Òdí-meji, conta a estória de um divinador que estava chegando na cidade de Benin, justamente após a morte do rei e ele acabou recebendo parte de sua fortuna. De fato, quando um rei morria, se houvesse um estrangeiro na cidade, ele receberia parte da herança25. Mas, não eram só os reis que recebiam

divinação, pessoas pobres, que muitas vezes, mal podiam comprar os elementos para as oferendas e mal podiam pagar o babalawo, também se consultavam com os adivinhos (ABIMBOLA, 1977, p. 15). Elas pagavam só uma parte ou prorrogavam o pagamento. De qualquer modo, a divinação era uma profissão, os adivinhos se mantinham a partir do que recebiam pelo seu trabalho. Na maior parte das vezes, o pagamento consistia em parte dos produtos alimentícios que iam nas oferendas (Idem, p. 15).

Em relação ao consulente, ele pode ser compreendido como alguém que busca na consulta ao Ifá não apenas uma possível intervenção espiritual em seu destino. Ao consultar Ifá, ele está reafirmando para si mesmo as referências culturais e psicológicas da sociedade da qual faz parte, conseguindo lidar melhor com suas dificuldades. O Ifá responde a essa demanda à medida que oferece justificações para tudo o que acontece, inclusive, as dificuldades econômicas. Segundo GEERTZ (2012, p. 96), a pobreza, assim como a doença, a perda, o infortúnio e a morte representam problemas em todas as sociedades e “(...) tanto o que um povo preza como o que ele teme e odeia são retratados em sua visão de mundo, simbolizados em sua religião e expressos, por sua vez, na qualidade total da sua vida (...)”.

Em relação aos escravos, na época que havia escravidão entre os iorubás – ou seja, até 1830, quando iniciou o domínio inglês na Nigéria e na Costa do Ouro (HERNANDEZ, 2008, p. 53) - pode-se inferir que dificilmente eles consultariam Ifá, pois a eles não estaria dada a

25 Não é mencionado se estrangeiros com outras profissões poderiam receber parte da herança ou se apenas os

possibilidade de retificação do próprio destino. Eles estavam fadados a permanecer na sociedade de seu amo até o fim da vida, na condição de escravos, mesmo que conseguissem algumas regalias como cargos importantes ou a posse de seus próprios escravos. O único modo de mudar essa situação, verdadeiramente, seria se eles conseguissem fugir e voltar para a sua aldeia de origem, caso ela ainda existisse ou, se fundassem uma nova aldeia junto com outras pessoas que estivessem na mesma condição.

Sobre as oferendas, como vimos, elas são importantes nas tradições orais, de forma geral, e no Ifá, são primordiais. Grande parte dos poemas descrevem oferendas que foram realizadas pelas divindades ou ancestrais e que, justamente por isso, devem ser feitas também pelo consulente. Ou seja, a realização de oferenda é um modelo exemplar de conduta humana, dentro daquilo que Eliade (2001, p. 36) definiu como modelo exemplar em relação aos mitos. No caso dos poemas aqui apresentados, apenas o poema 2 continha a descrição de uma oferenda (“ratos, peixes, cabritos, uma cabaça de farinha de milho, uma cabaça de ekuru e 20.000 búzios). De qualquer modo, toda consulta resulta na indicação de uma oferenda (ABIMBOLA, 1977, p 15). A variedade de elementos que compõem uma oferenda é grande e tanto a quantidade, como a combinação são específicos. Esses elementos são determinados pelo sacerdote, conforme o problema do consulente (SANTOS, 2002, p. 42). As oferendas são feitas não somente para as divindades e ancestrais como entre as pessoas. Conforme mencionado no início do capítulo, os reis cobravam tanto taxas m dinheiro como oferendas das pessoas que passavam pelo seu território ou que comercializavam nele. O mesmo acontece com os adivinhos, que recebem o pagamento pela divinação em dinheiro (cauries/búzios) ou em produtos. Isso porque, dada a correspondência entre as duas realidades, se a “movimentação” de forças no orún requer oferendas, a “movimentação” no àiyé também.

Como já vimos, em tradições orais, segundo Mauss (2005, p. 18) são muito comuns as trocas de presentes entre as pessoas de uma comunidade ou mesmo entre duas comunidades diferentes. Elas são entendidas como meios de se fazer laços espirituais (e ao mesmo tempo sociais), e constituem o que ele denominou sistemas de trocas. As trocas de presentes mantêm as pessoas ligadas umas às outras pelas forças mágicas, que estão depositadas nos objetos e quem presenteia está dando uma parte de si para o outro. Apesar da importância de ofertar - entendida como sinal de riqueza moral - receber um presente é igualmente importante, assim como retribuir. Portanto, o sistema indivíduo-sociedade- espiritualidade se mantém vivo não somente pelas oferendas realizadas para as divindades e os ancestrais, como também pelos presentes ofertados

entre as pessoas. Pode-se considerar que tanto os poemas como a realização das oferendas são elementos imprescindíveis no Ifá.

1.5 Conclusão

Portanto, para os iorubás, a pobreza era concebida como consequência de um desequilíbrio entre a existência divina (orún) e a existência humana (àiyé). A correção desse equilíbrio era feita por meio de uma conduta adequada (iwá), de escolhas boas (Ori) e de oferendas, pois as oferendas restituem e movimentam o àṣe, restabelecendo-se assim o equilíbrio que estava alterado. Para tanto, é necessária a ajuda dos babalawo, pois somente eles podem estabelecer a comunicação com o mundo sobrenatural e movimentar o àṣe. Mas, como conciliar essa explicação da vida humana com a estrutura social entre os iorubás? Seria ela uma forma de legitimar as desigualdades, justificando que o infortúnio e a pobreza são decorrentes da inabilidade em manter o equilíbrio com as forças divinas? Ou seria uma tentativa de reorganização espiritual e social no sentido de promover a coesão e o crescimento coletivo? Possivelmente ambas. Se entendermos o Ifá como produto e ao mesmo tempo produtor de cultura, conforme o que afirmou Geertz (1989, p.79), as duas coisas podem estar presentes. Conforme Berger e Luckman (p. 2012, 73) “os homens em conjunto produzem um ambiente humano, com a totalidade de suas formações socioculturais e psicológicas”. A ordem social só pode ser concebida como produto da atividade humana, em resposta aos desafios colocados pelo contexto orgânico e ambiental (Idem, 2012, p. 74).

Nesse sentido, o papel desempenhado pelo Ifá era central nessas sociedades (hoje é menor) pois, por meio de um conjunto de mitos (ese), ele fundamenta uma visão de mundo e um ethos (modo de viver). Isso é realizado, principalmente, por meio de rituais, incluindo a sessão de divinação, a realização de oferendas e outros rituais realizados nos templos.

O que está na base da concepção de riqueza entre os iorubás, conforme nos apontam os estudos antropológicos e os poemas é a noção de unidade entre realidade espiritual (orún) e realidade natural (aiyê). A primeira relacionada ao poder genitor masculino e a segunda, ao poder genitor feminino. Esses dois elementos - masculino e feminino – produzem o terceiro elemento, o gerado ou procriado. Os três adquirem uma ampla gama de símbolos correspondentes, o que inclui as divindades (òrìṣà-masculino; òrìṣà-feminino; ẹbọra - procriado, tanto masculino como feminino), os elementos da natureza (ar-masculino; terra-