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Socialização nas religiões afro-brasileiras: função integradora

CAPÍTULO 3 A CONCEPÇÃO DE RIQUEZA DO IFÁ NO BRASIL E NAS

3.3 A influência da concepção de riqueza do Ifá nas religiões afro-brasileiras

3.3.3 Socialização nas religiões afro-brasileiras: função integradora

genitor e, portanto, com o mundo sobrenatural. A iniciação no candomblé, segundo Santos e Dos Santos (1970, p. 6) apud Santos (2002, p. 46) consiste justamente em desenvolver a capacidade de absorver, manter e desenvolver o axé. E o transe é um dos meios para se desenvolver o axé, pois cada pessoa pertence a uma “determinada massa mítica”, ou seja, um orixá. Quando um orixá emite o seu som particular durante o transe, por exemplo, ele está transmitindo axé. “´Abrir a fala” permitirá aos Òrìsà entrar em comunicação com os homens, transmitir suas mensagens, transferir àse (...)” (SANTOS, 2002, p. 48).

Além do transe, destacam-se também outros elementos rituais como realização de oferendas, a dança, a música, a comida ritual, a divinação, o uso de ervas por meio de banhos, os sacudimentos (ritos de limpeza), a etiqueta do santo, ou seja, o seguimento cuidadoso das orientações e prescrições, o respeito aos tabus. Todas essas coisas fazem parte da iniciação. Além disso, existem valores a serem respeitados, a hierarquia é um deles. Portanto, aquele que deseja seguir na iniciação deve ter respeito pelos mais velhos, saber observar, fazendo poucas perguntas e ter paciência. O saber é transmitido, principalmente, pela vivência, pela experiência, mesmo com as mudanças na vida moderna (SILVA, 1995, p. 95-97).

3.3.3 Socialização nas religiões afro-brasileiras: função integradora

Utilizaremos aqui o conceito de função social da religião, empregado por Theissen (2009) e de função de integração na sociedade de Camargo (1961). Theissen (2009, p. 24) explica que a função social da religião divide-se em função socializadora e função reguladora de conflito. A função socializadora da religião “visa a que o indivíduo interiorize de tal forma os valores e normas da sociedade, que ele se torne um habitante do mundo ‟historicamente contingente no qual ele vive”. Assim, a religião oferece sustentação para aquelas pessoas que, por motivos diversos, sentem-se ameaçadas por crises. Já a função reguladora de conflito entre grupos e classes, se difere da primeira, pois enquanto aquela diz respeito ao indivíduo, essa se refere a grupos, “formados a partir da posição econômica ou da pertença étnica”. Segundo essa função é possível a legitimação de um grupo e a compensação por danos sociais (Idem, p. 24- 25). No entanto, se por um lado, essas funções estabilizam crises, por outro, elas podem exacerbá-las, uma vez que produzem também o que ele denomina de “protesto contra cultural”

e “utopia por justiça”, que consistem no caráter reivindicatório e subversivo de algumas religiões (Idem, p. 24-25).

Camargo (1961, p. 93-97) desenvolveu o conceito função de integração do indivíduo na sociedade urbano-industrial para se referir às religiões mediúnicas como a umbanda e o kardecismo, em sua função de promover integração na sociedade urbano-industrial. Essa função está relacionada à outra função por ele desenvolvida, a terapêutica. Enquanto a terapêutica diz respeito às ações rituais, conforme explicamos anteriormente, a de integração se refere às condições estruturais das religiões mediúnicas. Segundo ele, essas religiões “são instituições, ritos e valores capazes de afetar as personalidades e as habilitar pelo menos a suportar quando não a se integrar perfeitamente ao estilo de vida de uma sociedade urbana” (Idem, p. 97). Analisando ao mesmo tempo sob o aspecto social e psicológico, o autor conclui que essas religiões “constituiriam uma alternativa possível no processo de adaptação das personalidades às exigências da vida urbana” (Idem, p. 97). Elas ofereceriam, portanto, um sentimento de pertença e sentido para a vida.

Assim, estamos entendendo que a riqueza nas religiões afro-brasileiras está intimamente relacionada ao processo de socialização, no sentido de que a criação de redes sociais propicia ajuda mútua e fortalecimento para o enfrentamento de diversas dificuldades, dentre elas aquelas relacionadas a problemas financeiros, econômicos. Entre os iorubás, como vimos no primeiro capítulo, havia uma relação clara entre a posse de riqueza material e linhagem (clã) grande e fortalecida. Tal relação aparece nos mitos de Ifá sobre riqueza. Essa condição material e social de existência, considerada desejável, era entendida como consequência de equilíbrio espiritual, ou seja, boas condições de vida no aiyê são o reflexo de boas condições na relação com o orun, o mundo sobrenatural (“onde vivem” deuses e ancestrais). Nas religiões afro-brasileiras, essa concepção de riqueza atrelada à socialização e espiritualidade se mantém. No entanto, socialização no Brasil possui múltiplos sentidos, diferentes daquele sentido iorubá. O mesmo acontece com a concepção de mundo sobrenatural.

Para iniciar essa reflexão, refletiremos em que medida as mitologias determinam o modo de viver dos adeptos de uma religião, para depois pensarmos qual relação existe entre o sentido de riqueza no Ifá e o modo de viver dos adeptos das religiões afro-brasileiras. Geertz (2012, p. 93-94) afirma que “os símbolos sagrados relacionam uma ontologia e uma cosmologia”, ou seja, eles explicam como é o mundo e como se deve viver nele. Isso porque eles possuem uma “suposta capacidade de identificar o fato com o valor no seu nível mais fundamental, de dar um sentido normativo abrangente àquilo que, de outra forma, seria apenas

real”. Desse modo, não existe nenhuma sociedade que possua uma ética que não esteja baseada em uma ontologia. Com isso, conclui-se que existe uma tendência universal “a sintetizar a visão de mundo e o ethos em algum nível”, e mesmo que essa relação não seja explicada filosoficamente, ela é “pragmaticamente universal” (GEERTZ, 2012, p. 94).

Croatto (2010, p. 342-343), como vimos, discute sobre a relação entre mito, rito e o que ele denomina história (compatível ao ethos). Essa tríade, segundo ele, é dinâmica, de modo que, tanto os dois primeiros termos influenciam os aspectos sociais e culturais, como podem ser alterados em resposta a mudanças no contexto social e cultural de uma sociedade. Theissen (2009, p. 26-27), como vimos, analisa a relação entre mito, rito e ethos. Ele associa o mito como definidor de papéis, o rito como conjunto de símbolos e o ethos como conjunto de normas (paradigmas) que orientam o comportamento. As normas, segundo ele (Idem, p.

28), não são necessariamente imperativas, elas podem ter a forma de “sentenças” (afirmações). Tanto uma como a outra (imperativas e sentenças) “representam os temas mais fundamentais e os axiomas de uma religião”. Inclusive, segundo ele, é por meio das normas que uma religião mais influencia a vida dos seus adeptos, o que inclui tanto as normas rituais como as normas éticas (Idem, p. 28).

3.3.4 Socialização na umbanda

A partir disso, podemos pensar que os mitos iorubás, bem como as demais mitologias que compuseram as religiões afro-brasileiras, são reinterpretadas e mesmo alteradas, conforme as novas exigências sociais. Sobre essas mudanças Ortiz (1999, p. 15) afirma que a umbanda nasce no período de consolidação de uma sociedade urbano-industrial e de classes.

Segundo ele, “a um movimento de transformação social corresponde um movimento de mudança cultural, isto é, as crenças e práticas afro-brasileiras se modificam tomando um novo significado dentro do conjunto da sociedade global brasileira”. Desse modo, ele afirma que mudanças sociais provocaram mudanças culturais na sociedade brasileira, o que inclui as religiões afro-brasileiras. No intuito de se legitimar, a umbanda incorpora valores da sociedade global como “a escrita, a racionalização, a moral cristã” (Idem, p. 15).

Ortiz (1999, p.78-80) acrescenta que na umbanda, a organização das entidades em linhas ou falanges configura-se como uma estratégia de racionalizar o sistema religioso para conferir-lhe um tom cientifico. Cada linha é composta por um conjunto hierárquico de entidades