• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3 A CONCEPÇÃO DE RIQUEZA DO IFÁ NO BRASIL E NAS

3.2 Mitos sobre riqueza em publicações brasileiras

3.2.2 Valor moral da riqueza

difere, por exemplo, do poema 1 apresentado no primeiro capítulo sobre a riqueza, no qual a riqueza é simbolizada por objetos como roupas de rei, contas, pedras preciosas e cauris. Esses objetos no Brasil não possuem o mesmo valor que possuíam para os iorubanos na África, exceto pedras preciosas. Portanto, essas pequenas modificações textuais parecem indicar uma adaptação do mito à cultura brasileira.

Um outro aspecto simbólico muito importante que aparece nesse mito é a simbologia da abóbora, indicada pela afirmação do informante “Porque até aí Jirimum não tinha o valor de obara”. Ela pode ser interpretada em dois aspectos. Um deles, no sentido de que as abóboras (jirimum) no Brasil não tinham uma identificação com o odu obará. Ou seja, não tinham essa conotação simbólica, a qual teria sido criada pela religiosidade africana. Um outro sentido, é de que a abóbora só se tornou sacralizada, quando Orunmilá lhe assoprou. Até então era apenas uma abóbora. O sopro (proveniente do elemento ar) é considerado um axé branco, e está ligado ao poder de criação. Ele é considerado sagrado, quando produzido por uma divindade ou um sacerdote, sendo chamado ofurufu. Além do axé, o ar e a respiração, veiculam um outro princípio, denominado iwá, que significa “o poder que permite a existência genérica” (SANTOS, 2002, p. 72-73). Um outro aspecto é a indicação de determinados valores morais que uma pessoa precisa ter para conseguir enriquecer. Assim, novamente aparece nesse poema os atributos humildade e justiça. Nota-se que humildade, em geral, é descrita, como vimos, como uma característica ligada a Oxalá e Xangô. E justiça também é uma das características atribuídas a Xangô.

3.2.2 Valor moral da riqueza

Mito 2 – Oxalá expulsa o filho chamado Dinheiro (PRANDI, 2001, p. 517-518)

Oxalá tinha um filho chamado

Dinheiro, prepotente e abusado, que se achava mais poderoso que o pai.

Contando vantagem, proclamou ser tão destemido Que era capaz de capturar até a Morte.

Dinheiro pôs-se a pensar como realizar tal façanha. Fez um ebó e saiu maquinando.

Onde morava Icú, a Morte? Onde a encontraria?

Deitou-se na encruzilhada para pensar melhor E as pessoas que passavam na estrada deparavam com um homem espichado no meio do caminho.

Até que um transeunte disse assim:

“Que faz este homem assim esticado no caminho, Com a cabeça para a casa da Morte,

Os pés para as bandas da doença

E os lados do corpo para o lugar da desavença?” Ouvindo tais palavras, levantou-se o homem e disse:

“Já sei tudo o que era preciso saber”.

E lá se foi ele direto para o lugar onde a Morte residia. Chegando à casa dela, entrou sorrateiramente e

começou a bater os tambores fúnebres que a dona da casa usava quando matava as pessoas. Icu veio apressada, irritada mesmo, e entrou em casa afoitamente sem nenhum cuidado, querendo saber quem estava tocando os seus tambores.

Dinheiro tinha uma rede preparada

Que jogou sobre a Morte, fazendo dela prisioneira. Feliz da vida, lá foi Dinheiro para a casa de seu pai, levando sua horrenda presa para provar seu poder. Mas Oxalá o recebeu furioso:

“Ah! Tu que és capaz de causar todo bem e todo mal agora te atreves a trazer à minha casa a própria Morte, só para dar provas de tua força!

Vai-te embora daqui com tua conquista, filho destemperado. Dinheiro que carrega a Morte nunca será boa coisa,

Mesmo que tudo possa comprar e possuir”. E assim Oxalá expulsou o Dinheiro de sua casa.

Assim como o mito 1, descrito anteriormente, foi descolado do odu Obará, Prandi não menciona a qual odu do Ifá esse mito pertence, sendo atribuído ao orixá Oxalá. Ele não aparece nas publicações estudadas, não sendo possível concluir a qual odu pertence. Braga, como veremos a seguir, o relaciona com o odu Oxé, do jogo de búzios. Na obra de Prandi, ele aparece na seção de mitos de Oxalá. O autor

(2001, p. 560), afirma que colheu esse mito em diversas fontes: Agenor Rocha (1928; 1999), Deoscóredes Maximiliano dos Santos (1961,1981), Wiillfried Feuser e Mariano Carneiro da Cunha (1982), Samuel Feijoo (1986), Júlio Braga (1988; 1989). Como afirma Prandi (2001, p. 560), “Oxalá é o criador de todas as coisas, inclusive daquelas fontes do bem e do mal, como o dinheiro”. De fato, encontramos outros indícios da ligação entre Oxalá e riqueza em mitos, ritos e cantigas das religiões afro-brasileiras, sobre os quais falaremos mais adiante.

O mito descrito acima assemelha-se, em certa medida, ao poema 2 do primeiro capítulo, que fala sobre os valores morais que uma pessoa deve ter em relação ao dinheiro. O poema 2 indica que o dinheiro não é bom, nem ruim em si mesmo, depende de como as pessoas se relacionam com ele. A sabedoria e o Ifá devem ser considerados mais importantes que o dinheiro, pois o dinheiro não evita doenças, loucura e deficiência, ou seja, ele não tem o poder de asegurar a vida e a felicidade. Do mesmo modo, o presente mito também aponta que o dinheiro “é capaz de causar todo bem e todo mal”, ou seja, ele em si, não é bom, nem ruim. No entanto, seu lado negativo é mais ressaltado que o lado positivo, pois ele (o dinheiro) é guiado pela morte (cabeça), “anda” junto com a doença e é rodeado por desavenças, ou seja, gera brigas. Além disso, é chamado por Oxalá de “filho destemperado”, indicando que, em geral, não é equilibrado.

Conforme dissemos acima, Braga (1988, p. 181)80 apresenta uma versão desse mito,

adaptada ao jogo de búzios. Ele refere que essa é a primeira história do quinto odu (cinco búzios abertos), chamado Oxé. O mito conta que um filho de Oxalá chamado Dinheiro disse ser tão poderoso, que seria capaz de segurar até a Morte. Um dia “saiu ele marchando e pensando como poderia trazer a morte presa”. Chegou a uma “encruzilhada” e deitou-se. “As pessoas diziam – Xi! Este homem estendido com a cabeça para a casa da Morte, os pés para o lado da Moléstia e os lados do corpo para o lado da Desavença”. Dinheiro levantou-se e foi até a “chácara da Morte” e começou a bater nos tambores da Morte, com uma rede preparada.

80 O mito completo encontra-se no anexo.

Quando ela se aproximou, ele a envolveu e a levou até Oxalá, que lhe disse “Vai-te embora com a Morte e com tudo que possa de haver de melhor no mundo. Tu és o causador de tudo, do bem e do mal. Some-te daqui. Leva-a, e podes possuir e conquistar o universo”. Portanto, essa versão se difere um pouco da de Prandi, principalmente por uma linguagem mais coloquial81.Além

disso, ela é referida por Braga como pertencendo ao jogo de búzios.

Portanto, os dois mitos apresentados integralmente acima correspondem, de certa maneira, aos poemas analisados no primeiro capítulo. Mas, como pudemos ver, eles apresentam inovações textuais e variações. Além disso, deixam de ser atribuídos aos odus de Ifá, passando a ser atribuídos apenas aos orixás ou aos odus do jogo de búzios. Não encontramos nas publicações brasileiras mitos semelhantes ao poema 3 do primeiro capítulo, cujo tema são as linhagens. Tal fato parece refletir o fato de que no Brasil, a socialização está menos atrelada ao enriquecimento e quando isso ocorre, é um outro tipo de socialização, baseada em laços familiares nucleares ou outros tipos de relações como de trabalho e amizade.

3.3 A influência da concepção de riqueza do Ifá nas religiões afro-brasileiras

3.3.1 Mitos de Ifá ritualizados

Os mitos de Ifá sobre riqueza influenciam diversos ritos das religiões afro-brasileiras. Segundo Prandi (2001, p. 25), “(...) os mitos mantiveram-se difusos na memória ritual e no dia- a-dia das congregações religiosas iorubá-descendentes”. Para que possamos ter a dimensão da expressão dos mitos nos rituais dessas religiões, apresentaremos, a seguir, alguns rituais nas religiões afro-brasileiras, os quais, como bem diz Prandi, aparecem de modo difuso nas diferentes regiões brasileiras e nas diferentes denominações religiosas. Eles foram agrupados pelos axés (branco, vermelho e preto) em decorrência da peculiaridade na ligação que existe entre cada um desses axés e a riqueza, pois, como veremos, os orixás, ligados a esses axés, apresentam características bastante definidas. Assim, o axé branco (funfun) se relaciona com o aspecto genérico da existência, ou seja, a vida no orun (SANTOS, 2002, p. 75-76; 79). O axé vermelho (pupo) feminino, como Oxum e Yemanjá se relaciona com o aspecto gerante (feminino) (SANTOS, 2002, p. 89), o axé vermelho masculino, relacionado a Xangô, relaciona- se com o a vida individualizada, em seu aspecto dinâmico (SANTOS, 2002, p. 96) e o axé preto,