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CAPÍTULO 1 A DIVINAÇÃO DE IFÁ E A CONCEPÇÃO DE RIQUEZA

1.4 A concepção de riqueza nos poema de Ifá

1.4.1 A concepção de riqueza entre os iorubás

alimentos? Por isso, a água era considerada a oferenda mais importante e mais auspiciosa para os iorubás (SANTOS, 2002, p. 80), porque na vida cotidiana, eles enfrentavam constantemente períodos de secas, de modo que a água possuía um grande valor. O risco da morte por falta de água era um dado empírico.

Se não é possível resolver completamente os problemas, é possível amenizar os seus efeitos, por meio das oferendas e da conduta social. Ou seja, existe a possibilidade de suportar o sofrimento, dando-lhe um sentido mítico. Trata-se do que Guerriero (2000, p. 1) define sobre os oráculos como “(...) forma de dar conta do aleatório, dar sentido ao fluxo dos acontecimentos e buscar orientação para as ações (...)”. Nesse sentido, o Ifá pode ser entendido como um meio de tornar o sofrimento menos doloroso, à medida que oferece novas referências e recursos simbólicos, que permitem lidar com as dificuldades.

Segundo Geertz (2012, p. 79), o sofrimento, entendido como um mal, desafia o homem a acreditar que a vida tenha uma coerência moral e uma regularidade empírica. “A resposta religiosa a essa suspeita é sempre a mesma: a formulação por meio de símbolos de uma imagem de tal ordem genuína do mundo, que dará conta e até celebrará as ambiguidades percebidas, os enigmas e paradoxos da experiência humana”.

1.4 A concepção de riqueza nos poemas de Ifá

1.4.1 A concepção de riqueza entre os iorubás

Como foi visto anteriormente, as sociedades que praticam o Ifá, dentre elas, os iorubás, concebem o mundo dos homens (àiyé) como correspondente do mundo das divindades e dos ancestrais (orún). E não fazem separação entre vida cotidiana e vida religiosa (SANTOS, 2002, p. 54; BASCOM, 1969, p. 115, SALAMI, 1999, p. 42). Nesse sentido, quando uma família, linhagem ou cidade possuem boas condições materiais de existência, significa que estão em equilíbrio com o mundo divino, que estão fazendo corretamente as oferendas, possuem um bom destino, fazem boas escolhas e têm um bom caráter. Por isso, recebem a proteção das divindades e dos ancestrais e suas terras são fecundas, as mulheres têm bastante filhos e as pessoas têm saúde e vida longa.

Neymark (1993, p.18) afirma que entre os iorubás, o desejo de enriquecer não contradiz os valores espirituais, pois Ifá reconhece as coisas boas da vida como bençãos divinas. Desde que a pessoa esteja em harmonia com o universo e com o seu próprio destino, ela pode fazer a escolha que quiser. Acredita-se que as divindades deram aos homens condições de pensar e refletir por si próprios de modo responsável e todos podem viver uma vida plena e sábia.

Portanto, riqueza na vida material é considerada como decorrente de uma boa condição espiritual, por isso existe a divinação e as oferendas, entendidas como oportunidades que as divindades concederam à humanidade de conseguir o equilíbrio na vida material, bem como outros aspectos. Desse modo, o dinheiro, representado pelo cawrie (búzio), utilizado como moeda de troca, é um sinal de equilíbrio tanto na vida social, como na vida espiritual (ABIMBOLA, 1977, p. 39).

Algumas pessoas acabam se destacando nessa habilidade de produzir riquezas materiais e, consequentemente, recebem títulos. Como afirmado anteriormente, essa habilidade para ganhar a vida - assim como senioridade e uma boa relação dentro da sociedade - eram requisitos para ocupar cargos importantes, como a de chefe (oba) (COSTA E SILVA, 1992, p. 435-436). Vimos anteriormente (nos subcapítulos sobre história e cultura iorubás), a associação entre riqueza e linhagem, ou seja, a associação entre riqueza e socialização. Existe um ditado que diz: “Bówó bá tán lówó oníwà, á dòsónú”, que significa “quando o dinheiro de uma boa pessoa acaba, ela se torna insociável” (ABIMBOLA, 1977, p. 41).

Porém, a partir do que os estudos históricos apresentam, como foi descrito no início do capítulo, essas sociedades da África ocidental enfrentavam diversas dificuldades e na verdade, ainda enfrentam. Portanto, falar em riqueza e abundância parece significar nada mais do que condições favoráveis de sobrevivência, de subsistência (PRIORE e VENÂNCIO, 2004, p. 2). Somente nas cidades grandes, onde houve um processo de centralização do poder, estratificação social e escravagismo, a riqueza possuía o sentido de acúmulo (COSTA E SILVA, 2002, p. 89). Importante ressaltar que, como discutido anteriormente, não eram todas as sociedades que alcançaram esse porte, em geral, até a poucos séculos, a maior parte das sociedades eram aldeias (SALAMI, 2009, p.19; 21).

Ao mesmo tempo que se concebe a centralidade das linhagens enquanto redes sociais e espirituais, as guerras entre aldeias (e/ou cidades) com escravização daqueles que perdem eram frequentes. Desse modo, o respeito pelos laços de parentesco valia apenas dentro da própria aldeia, não incluía outras. Tal perspectiva autorizava reduzir o outro à condição de

sujeitado, de objeto, retirando-se dele aquilo que a princípio, lhe-definiria, os laços de parentesco. Essa questão leva à pergunta: qual a relação entre o oráculo de Ifá e a escravidão? Ao mesmo tempo em que ele poderia ser utilizado para ajudar a enriquecer e melhorar as condições de vida de uma sociedade, por outro lado, isso acontecia às custas da escravidão, ou seja, o enriquecimento de uns acontecia às custas do empobrecimento de outros.

1.4.2 Os poemas de Ifá: linguagem simbólica

O Ifá pode ser considerado um sistema simbólico, a partir do que Geertz definiu como modelo que funciona como “fonte de informação” para a instituição dos processos sociais e psicológicos que modelam o comportamento público e que ao mesmo tempo, são definidos por essa realidade social e psicológica (GEERTZ, 2012, p. 68-69). Do mesmo modo, Berger e Luckman (2012, p. 21) afirmam que as sociedades objetivam o mundo por meio da linguagem, para, em seguida, interiorizarem essa realidade como objetivamente válida, por meio do processo de socialização, em uma dialética constante, na qual exteriorização e interiorização produzem a realidade social. Portanto, os símbolos, ao mesmo tempo que mantêm o tecido cultural e a vida de uma sociedade, são formulados a partir dos valores e anseios desta mesma sociedade. Dessa maneira, pode-se dizer que o Ifá, enquanto sistema de símbolos religiosos, reafirma e reproduz valores da sociedade iorubá, ao mesmo tempo que pode transformá-los.

Os símbolos religiosos estabelecem disposições e motivações, ou seja, “tendências, capacidades, propensões, habilidades, hábitos, compromissos e inclinações” que determinam as atividades humanas e a sua qualidade (GEERTZ, 2012, p. 70). E inserem estas disposições religiosas em um contexto cósmico, ou seja, os símbolos religiosos expressam verdades transcendentais (GEERTZ, 2012, p. 72). É nessa perspectiva que as palavras-símbolos dos poemas de Ifá estão ancoradas na cultura iorubá, porque se constituem a partir de seus valores e anseios, ao mesmo tempo que determinam sentimentos, disposições e comportamentos.

Um exemplo é o desejo de manter uma boa relação com as divindades e ancestrais e receber suas benções. Tal disposição espiritual motiva a realização das oferendas (símbolo religioso), do mesmo modo que esse símbolo religioso promove uma mudança na experiência humana, pois ele pode gerar a sensação de maior proximidade com as divindades, garantindo, assim, bem-estar e satisfação. Também quando se afirma que uma pessoa deve ter um bom caráter e fazer boas escolhas, isso implica que ela deve respeitar a hierarquia social, a qual, por