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CAPÍTULO 2 A VINDA DO IFÁ PARA O BRASIL E SUAS

2.4 A relação entre o Ifá e o jogo de búzios no Brasil

2.4.2 O declínio do Ifá e o crescimento do jogo de búzios

lançadas no chão. De acordo com a posição em que caem, têm-se as respostas sim ou não. Eles são utilizados nas cerimônias de iniciação ou “feitura de cabeça”.

Bastide (2001, p. 116) também menciona sobre a presença desse jogo em Salvador. No entanto, lá as respostas seriam sim, não, favorável, desfavorável e desastrosa.

2.4.2 O declínio do Ifá e o crescimento do jogo de búzios

Salami61 não faz referência à pratica do Ifá no Brasil. Seus estudos - e ao que parece

suas práticas religiosas - se detêm, sobretudo, ao resgate da tradição oral iorubana Mas em seu templo, localizado na cidade de Mongaguá, no litoral paulista, acontecem diversas festas e rituais, dentre os quais a Festa Anual de Ifá (no mês de janeiro), que é uma celebração ao orixá Ifá. Dela participam, inclusive, sacerdotes nigerianos, que vêm ao Brasil especialmente para isso. Devido à sua iniciação em Ifá na Nigéria, poderia- se supor que ele jogasse o opelê e opon, no entanto, conforme as informações publicitadas, o babalorixá King, como é chamado, joga somente o jogo de búzios. Mas, ele sugere uma ligação entre o jogo de Ifá e o jogo de búzios, como, por exemplo, na afirmação de que no jogo de búzios “Ifá recomenda trabalhos espirituais”63. Portanto, apesar de ser iniciado em Ifá na África e realizar cultos a esse orixá no

Brasil, não é possível afirmar se ele joga ou não o opon e o opelê. Podemos afirmar, com certeza, que ele joga búzios.

O mesmo acontece em Portugal Filho (2010, p. 19-23). Apesar do título da obra ser Ifá- O senhor do destino, encontra-se uma mistura de elementos do jogo de Ifá com o jogo de búzios. No primeiro capítulo, ele descreve o jogo de Ifá, seus métodos (opon e opelê), os instrumentos (iroke usado para chamar Ifá, agere, pote usado para guardar o Ifá) e os odus. No segundo capítulo, fala sobre Olodumare (Divindade suprema) e no terceiro, sobre Orúnmilá62.

No quinto capítulo, ele descreve as saudações a Orúnmilá. E, apesar do título do capítulo ser “Saudações e Referências a Ifá – Ìjúbà – Ifá (Invocação de Ifá)” e as saudações serem todas direcionadas à Orúnmilá, ele inicia o capítulo afirmando “Antes ou no início da consulta, o

61 Site www.oduduwa. com.br 62 Idem

63 O quarto capítulo é dedicado a um orixá chamado Èlà, que segundo ele, veio à Terra no mesmo dia que Orúnmilá, ambos “são amigos e oriundos da mesma cidade: Ifé” (PORTUGAL FILHO, 2010, p. 39).

Babaláwo recita o ìjúbà – Ifá para Èsù, com a finalidade de agradá-lo e evitar interferências nas consultas. Obs: Não só para Èsú como todas as divindades que poderão ajudar a consulta” (PORTUGAL FILHO, 2010, p. 42). Ou seja, as saudações de Ifá são feitas para Exu. No capítulo seguinte, ele apresenta também as saudações feitas ao medindilogun - “Ìjúbá Odù Mérìndìnlógún (‘Invocação aos Dezesseis Destinos’)” (PORTUGAL FILHO, 2010, p. 49-50). Depois, em cada um dos capítulos seguintes, ele apresenta os odus. A sequência é a mesma de Rivas Neto (apresentada acima), Bastide63 64 (2001, 119-121) e Abimbola (apresentada no

primeiro capítulo). Ao longo da descrição dos odus, apresentam-se poemas iorubás com a tradução e nas explicações, utilizam-se extensivamente, termos em iorubá. No entanto, em cada capítulo, dedicado a cada um dos dezesseis odus de Ifá, o autor menciona qual a jogada correspondente no jogo de búzios, sugerindo haver uma correspondência direta (PORTUGAL FILHO, 2010, p. 87). O mesmo acontece com os poemas, que possuem a estrutura textual dos poemas do Ifá e nomes de personagens iorubanos, comumente utilizados no Ifá, como Òlówò (rei de Ifé) (Idem, p. 72), Oká (filha da cidade de Ìlórò) (Idem, p. 102). Portanto, o autor utiliza elementos do jogo de Ifá, direcionando-os para o jogo de búzios, estabelecendo uma relação direta entre ambos. Algo semelhante ao que encontramos nas citações de Prandi (2001, p.18) e Carneiro (2008, p. 129), mencionadas anteriormente.

Essa passagem do Ifá para o jogo de búzios é realizada também por Agenor Miranda Rocha (2009), a medida que ele utiliza os mitos do Ifá dentro da estrutura do jogo de búzios, ou seja, relacionando-os aos odus do jogo de búzios, que são diferentes do jogo de Ifá. O próprio título do livro indica tratar-se do jogo de búzios: Caminhos de Odu - Os Odus do Jogo de Búzios com seus caminhos, ebós, mitos e significados, conforme os ensinamentos escritos por Agenor Miranda Rocha em 1928 e por ele mesmo revistos em 1998. Curiosamente, Agenor revela ter sido iniciado por Martiniano do Bonfim, que jogava Ifá, conforme se observa na cronologia apresentada no início da obra: “1943- Morre o babalaô Martiniano Eliseu do Bonfim, muito ligado a Mãe Aninha e com quem Agenor aprendeu muito da arte de Ifá” (ROCHA, 2009, p. 19). E também na introdução dessa mesma obra, escrita por Prandi, encontramos:

Em quase um século de vida, Professor Agenor conviveu com as mais importantes personalidades do candomblé, como Pai Cipriano Abedé (falecido em 1933), que o iniciou para Euá, em 12 de setembro de 1928, e com quem aprendeu os segredos das folhas, tornando-se Olossaim, como o babalaô

Martiniano Eliseu do Bonfim (1859-1943), considerado o último babalaô

64 Primeira edição de 1958.

do Brasil, com quem Agenor aperfeiçoou-se no oráculo de Ifá65, assim como Felizberto Sowser, Benzinho, e também Mãe Menininha do Gantois Escolástica Maria de Nazaré (1894-1986), de quem foi amigo pessoal e oluô. Mas foi com sua própria mãe-de-santo que aprendeu o jogo de búzios, cujo corpo oracular, constituído dos Odus, cada um com seus caminhos, ebós, mitos e significados, transcreveu no caderno de 1928 (PRANDI in: ROCHA, 2009, p. 9).

Vê-se no trecho em negrito, como o jogo de búzios apresenta-se misturado com o jogo de Ifá, pois, Agenor não joga Ifá, joga búzios, jogo esse que aprendeu com sua mãe de santo. Apesar disso, considera-se que ele “aperfeiçoou-se no oráculo de Ifá” com Martiniano. A relação com Martiniano vai ainda mais longe, pois Agenor assumiu o posto de divinador nos terreiros Casa Branca do Engenho Velho e Axé Opô Afonjá, antes ocupados por Martiniano, sendo o responsável pela indicação da sucessão das mães de santo desses terreiros, conforme encontramos na introdução da obra escrita por Prandi:

Filho de Oxalá, sempre ligado ao Axé Opô Afonjá, Agenor tem sido o responsável pela consulta oracular que regula a sucessão naquele terreiro, assim como na Casa Branca do Engenho, além de ocupar também cargo importante no terreiro do Gantois (...). Professor tem sido o oluô responsável pelos jogos de búzios que definem a sucessão na Casa Branca do Engenho Velho, desde a sucessão de Mãe Massi, Maximiana Maria da Conceição, Oinfunké, em 1962, assim como a sucessão no Axé Opô Afonjá, desde a sucessão de Mãe Bada Olufandeí por Mãe Senhora em 1941 (...). Seus jogos de sucessão têm sido eventos memoráveis, que o povo-de-santo não se cansa de lembrar (PRANDI in ROCHA, 2009, p. 8-9).

Essa identificação entre os dois métodos aparece também em trechos como “O destino das pessoas e tudo o que existe podem ser desvendados por meio da consulta a Ifá, o oráculo, que se manifesta pelo jogo (...) existem dois tipos de jogo: o do opelê-Ifá e o jogo de búzios” (ROCHA, 2009, p. 25). E, ainda “tanto o jogo de búzios como o do opelê-Ifá baseiam-se num sistema matemático, em que se estabelecem 256 combinações resultantes da multiplicação dos 16 odus por 16 (...)” (Idem, 2009, p. 25). Observa-se que o autor sugere que os dois jogos fazem parte de um mesmo oráculo, ou seja, Ifá, diferindo-se apenas no método. Isso é verdadeiro quando falamos de opon e opelê, pois ambos pertencem a Ifá. O mesmo não acontece com o jogo de búzios.

65 Gifo meu.

Como vimos anteriormente, na citação de Prandi (2011, p. 18) ele nomeia tanto o Ifá como o jogo de búzios de divinação, e explica que a principal divinação do candomblé atualmente é o jogo de búzios e não o Ifá, fazendo jus ao que, de fato, observa-se no dia a dia dos terreiros. Portanto, nesse sentido, ele diferencia os dois sistemas. Por outro lado, ele coloca o Ifá africano, o Ifá cubano e a divinação nos candomblés (jogo de búzios) como se fossem a mesma coisa.

Encontramos alguns autores que apontam ter havido a passagem de um sistema divinatório a outro, demarcando, mais nitidamente, a diferença entre ambos. Carneiro (2008, p. 129), aponta que “o rosário pode ser substituído, sem desvantagem, pelos búzios, que o compõem – e essa é mesmo a regra atualmente”. Portanto, ele defende claramente o processo de substituição do Ifá pelo jogo de búzios. Bastide também faz a distinção entre os dois métodos, afirmando igualmente ter ocorrido a substituição de um método por outro:

(...) os babalaôs, que na África ocupam o primeiro lugar na classificação sacerdotal, diante da opinião pública perderam esse lugar preponderante (...) Um Martiniano do Bonfim pôde, em certo momento, desempenhar papel de prestígio devido à sua viagem à África, devido à sua ciência e cultura, tanto profana quanto africana (...) De fato, houve verdadeira guerra entre os babalorixás e os babalaôs, lutando para saber quem atingiria o mais alto status social, e é evidente que o conflito se liquidou historicamente com a vitória dos primeiros. Mas, como sempre, a estrutura é mais forte do que a história. Se existiam babalaôs, era porque esse grupo sacerdotal correspondia a uma função determinada, e essa função deve continuar a ser, aconteça o que acontecer, obrigatoriamente desempenhada. Como veremos, o que se passou na realidade, e por razões que teremos que perscrutar, não foi tanto o desaparecimento de um grupo de sacerdotes, e sim o fato de uma forma de adivinhação ter sido substituída por outra. Ou tender a ser substituída. O búzio venceu o colar de Ifá, salvo nova ofensiva e regresso sempre possíveis. Ao contrário do que se diz, não foi o babalorixá que venceu o babalaô (BASTIDE, 2001, p. 113).

Bastide, portanto, delimita a diferença entre os dois jogos oraculares, afirmando que o jogo de búzios substituiu o Ifá. Mas, pondera sobre a precariedade dessa substituição, quando afirma que podem acontecer ofensivas e regressos nesse processo. Sua “previsão” parece estar sendo cumprida, pois na atualidade vemos um movimento de retorno do Ifá, por meio da intensificação do contato entre adivinhos e pesquisadores dos dois continentes. Esse movimento sugerido por ele, de ofensivas e regressos se aplica também às religiões afrobrasileiras, de modo geral. Como veremos no terceiro capítulo, tanto o candomblé como a umbanda passam por fases de avanços e recuos na afirmação de sua africanidade, conforme o momento político. Em períodos de menor aceitação, existe um recuo, porém, quando se avança na legitimação social,

conseguindo assim, uma posição mais confortável, volta-se novamente a se defender os valores e práticas religiosas africanas. Portanto, os recuos possibilitam os avanços.

Seria importante um estudo sobre o jogo de búzios entre os iorubás, afim de compreender quais são as influências que o jogo de búzios brasileiro recebeu do jogo de búzios iorubano e quais ele “emprestou” do Ifá. Essa discussão é importante nesse trabalho, pois observamos que os autores misturam elementos dos dois sistemas divinatórios, igualando-os como se fossem a mesma coisa. Assim, se por um lado é importante considerar que as culturas são dinâmicas e os dois sistemas divinatórios, enquanto sistemas culturais podem se influenciar mutuamente, por outro lado, é importante reconhecer as singularidades de cada um desses dois sistemas divinatórios. O Jogo de Búzios iorubano, segundo Bascom (1993) também possui mitos e prescrição de oferendas. Portanto, os dois oráculos se diferem no nome, no método do jogo, nomes dos odus, sequência dos odus, divindades patronas e iniciação.

Dado o status do Ifá e seu sacerdócio eminentemente masculino, a penetração das mulheres seria possível somente no jogo de búzios. Porém, sendo o jogo de búzios considerado inferior ao Ifá pelos iorubanos, equipará-lo ao Ifá seria uma forma de aumentar o seu prestígio e o seu status na sociedade. Portanto, primeiro as mulheres se apropriam do jogo de búzios, depois o tornam tão legítimo quanto o Ifá, dentro das religiões afro-brasileiras.

Pode também ter contribuído para esse fenômeno, o fato de que o Ifá era, e ainda é, identificado com a cultura iorubá. E tendo sido essas práticas proibidas durante um longo período de tempo, a chance de um babalawô (que joga Ifá) ser perseguido era muito maior do que um eluô (que joga búzios). Assim, a substituição do Ifá pelo jogo de búzios parece ter decorrido também do preconceito e perseguição sofridos pelas práticas africanas na sociedade brasileira (fora dos terreiros), com as quais o Ifá estava mais identificado do que o jogo de búzios. Portanto, os dois motivos descritos acima - apropriação da divinação pelas mulheres e legitimação social - parecem justificar a ascensão do jogo de búzios.

2.4.3 Poemas de Ifá e sua utilização no jogo de búzios e nas religiões afro-brasileiras

Em relação aos mitos, encontram-se, na maioria das obras sobre Ifá, tanto de pesquisadores como de sacerdotes, os mesmos textos encontrados em publicações etnográficas africanas, com pouquíssimas variações. No jogo de búzios, encontramos também mitos do Ifá e em alguns casos, uma reformulação dos mesmos. Retomaremos esse assunto no terceiro