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Em nossa sociedade, a família, indiscutivelmente, é responsável pelas primeiras formas de socialização da criança e do adolescente, pois é no âmbito familiar que terão seus primeiros aprendizados, onde aprenderão a viver em grupo. É onde recebem amor, carinho e proteção. Nestes primeiros estágios da vida forma- se a identidade da criança. É quando começará a discernir o certo e o errado. É a base para terem um desenvolvimento sadio, tanto no aspecto físico como no psicológico.

É certo afirmar que, de um modo geral, todo ato ou omissão praticado por pais contra crianças ou adolescentes causa danos de ordem física, sexual ou psicológica à vítima, ferindo ou gerando uma transgressão do poder/dever de proteção dos pais, numa negação às crianças e adolescentes de terem condições de pleno desenvolvimento3.

Apesar disso, o que se vê normalmente é que as crianças e adolescentes acabam vivenciando seus primeiros casos de violência na própria família, na sua própria casa. A família, neste contexto, passa a ser representada por um espaço de negação de valores, negação de amor, carinho, atenção e proteção. Assim, convivendo com atos de violência no próprio lar, muitas crianças e adolescentes vivem em ambiente muitas vezes bem longe do ideal para sua criação, sendo vitimizadas pelos próprios pais, que deveriam ser os responsáveis por seu pleno desenvolvimento.

3

AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. A violência doméstica na

A transgressão do poder/dever de proteção significa que esse fenômeno é a exacerbação do poder dos pais em relação aos filhos na estrutura da família, enquanto instituição de socialização. Portanto, as diferentes formas de violência contra criança e adolescente configuram o abuso deste poder/dever de proteção familiar, que é essencial para o desenvolvimento deles4.

A violência familiar expressa-se pelo abuso do poder do adulto sobre a criança ou o adolescente, vale dizer, essas crianças deixam de ser vistas como pessoas em formação, e apesar de possuírem uma série de direitos, passam a ser vistas como meros objetos.

Segundo cartilha do Centro Crescer Sem Violência, “a criança ou adolescente é visto como objeto, com suas necessidades não percebidas, submetido aos desejos dos pais desde a mais tenra idade, e quando manifesta anseios de autonomia sofre agressões”5

.

Não é difícil compreender que esse uso incorreto de poder pelos pais, consequentemente acarretará violência física contra os filhos, na tentativa daqueles de impor limites a estes.

Quanto à coisificação da infância, trata-se da negação dos direitos que a criança e o adolescente possuem de ser tratados justamente como sujeitos de direito, sempre levando-se em conta as suas necessidades de condição de desenvolvimento. É, em última análise, a dominação, traduzida no poder dos pais sobre os filhos submissos6.

Os pais, muitas vezes, achando que estão ensinando os filhos, utilizam de forma errada seus conhecimentos de disciplina e educação, e, seja consciente ou inconscientemente, abusam de sua autoridade, vitimizando seus filhos. Assim, em razão de uma idéia errada sobre suas responsabilidades, ocorre em tais situações o exercício indevido do poder familiar7.

Nesse caso, o uso indevido do poder familiar pode derivar da falta de preparo e orientação dos pais para entender e educar seus filhos, pois poderiam e até mesmo deveriam orientar as crianças e os adolescentes de forma correta, im-

4

AZEVEDO; GUERRA, 1995, p. 37.

5

CRESCER SEM VIOLÊNCIA. Violência doméstica contra crianças e adolescentes: Apostila do curso de capacitação para conselhos tutelares e de direitos de Santa Catarina. Florianópolis: [s.n.], 1999. p. 21.

6

AZEVEDO; GUERRA, op. cit., p. 38.

7

pondo os limites cabíveis, mas sem violência.

O poder familiar é identificado como uma relação de autoridade pelos pais, e esse poder é visto como forma de disciplina. Tal relação de autoridade pode ser vista como “[...] uma forma de aprisionar a vontade e o desejo da criança, de submetê-la, portanto, ao poder do adulto, a fim de coagi-la a satisfazer os interesses, as expectativas ou paixões deste”8

.

Nas relações com os filhos, de certa forma hierarquicamente, os pais buscam transformar e socializar as crianças para que sejam sua imagem e semelhança. É o fenômeno da repetição, encarregado da transmissão dos padrões de conduta adultos às novas gerações9.

A superioridade dos adultos no meio familiar é um conceito que vem se afirmando na história e na cultura, com base na dependência física e psicológica que os filhos têm quando menores, e também por terem de se adaptar à autoridade social dos adultos. Os filhos devem submeter-se aos pais porque estes são naturalmente superiores. Os pais, que assumem tal função por um fato natural, têm direitos prioritários sobre a criança. A dependência social da criança se torna dependência natural. A obediência se torna um dever para a criança, e suas revoltas e divergências são vistas pelo adulto como uma violação aos próprios direitos do adulto.

Pode-se afirmar que é inerente à cultura humana, de um modo geral, que no meio familiar a criança e o adolescente ocupem a posição de observadores e aprendizes, o que estabelece e fortalece o aspecto de superioridade e autoridade natural dos adultos. A partir da hierarquia estabelecida no meio familiar, cria-se uma estrutura em que crianças e adolescentes têm pouca participação em suas observações e questionamentos, o que acaba reafirmando um ambiente de violência.

Apesar de se tratar de uma das formas de violência mais frequentes na vida das crianças e dos adolescentes, a violência familiar ainda é caracterizada por ser menos visível na sociedade. Isso se dá em razão das agressões ocorrerem na

8

AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Vitimação e vitimização: questões conceituais. In: ______. (Org.). Crianças vitimizadas: a síndrome do pequeno poder. 2. ed. São Paulo: Iglu, 2000. p. 35.

9

SAFFIOTI, Heleieth. Introdução: A síndrome do pequeno poder. In: AZEVEDO; GUERRA, 2000, p. 17.

intimidade da família. Em outras palavras: por ser de difícil acesso, esse tipo de violência só é descoberto quando atinge níveis extremos.

Para Ferreira, essa difícil visibilidade ocorre porque “[...] as vítimas desse tipo de violência parecem ficar aprisionadas no desejo do adulto, uma vez que sob ameaça e medo, mantêm um „pacto de silêncio‟ com o agressor, num processo perverso instalado na intimidade de sua família”10

.

A este respeito, vale mencionar também a lição de Ribeiro e Martins: “A criança vítima da violência doméstica não é tratada como sujeito pleno, e tanto sua ação quanto sua reação são restringidas pelo medo e por ameaças. Só lhe resta permanecer calada frente ao poder disciplinador/repressor do adulto”11

. Como se deduz claramente, em relação à violência familiar as crianças e os adolescentes possuem limitada ou nula possibilidade de se proteger.

Outro fator que colabora para o silêncio da criança e do adolescente frente à violência sofrida são os sentimentos de amor e de medo, que os confundem. Em razão disso, é comum que acabem se culpando pela agressão sofrida, por se depararem com a explicação de que tudo que os pais fazem é apenas para o bem dos filhos, e que se receberam algum castigo é porque mereceram, porque desobedeceram as ordens dos pais.

Há, ainda, agravando o caso da violência familiar, a questão da cumplicidade entre os cônjuges, pois raramente um denuncia ou revela a alguém a agressão do outro. Entre as razões para esse silêncio estão o medo, as ameaças, a dependência financeira ou emocional, a falta de conhecimento sobre o fato e até mesmo a acomodação. Nas palavras de Guerra, ainda sobre essa cumplicidade,

[...] há o estabelecimento de um tipo de „aliança solidária‟ entre os cônjuges pela qual um dificilmente exerce este tipo de violência sem a cumplicidade silenciada do outro, sendo raro que o parceiro não agressor revele o problema a terceiros12.

10

FERREIRA apud SONEGO, Cristiane; MUNHOZ, Divanir Eulália Naréssi. Violência familiar contra crianças e adolescentes: conceitos, expressões e características. Revista Emancipação, Ponta Grossa, n. 1, v. 7, 2007. Disponível em:

<http://www.revistas2.uepg.br/index.php/emancipacao/article/view/94/92>. Acesso em: 11 maio 2011.

11

RIBEIRO, Marisa Marques; MARTINS, Rosilda Baron. Violência doméstica contra a criança e o

adolescente: a realidade velada e desvelada no ambiente escolar. Curitiba: Juruá, 2008. p. 76. 12

De um modo geral, a omissão das pessoas em relação à violência familiar é baseada na preocupação de não invadir a privacidade da família, e também no medo de represálias.

Em última análise, o medo é a palavra-chave para explicar o fato de as pessoas não denunciarem os casos de agressão, tanto por parte dos filhos quanto por parte de terceiros que têm conhecimento.

Esse verdadeiro pacto de silêncio envolvendo a família e a sociedade acaba fazendo com que as crianças e os adolescentes passem

[...] a viver uma situação típica de estado de sítio, em que sua liberdade – enquanto autonomia pessoal – é inteiramente cerceada e da qual só se resgatará, via de regra, recuperando o poder da própria palavra, isto é, tornando pública a violência privada de que foi vítima13.

Como se percebe, para que essa violência seja combatida, há a necessidade de quebrar esse pacto de silêncio entre as pessoas envolvidas.