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Aspectos históricos da construção da cidadania brasileira

7.5 A disponibilização de serviços públicos na Internet e a construção da cidadania

7.5.1 Aspectos históricos da construção da cidadania brasileira

É da natureza do ser humano viver em sociedade. O grande diferencial entre o homem e outros animais é que o homem busca compreender a sociedade em que vive e naturalmente tende a buscar, por intermédio de interação com seus semelhantes, melhores condições de vida. Araújo (1998) denomina de conscientização esse processo de reconhecimento do que o próprio homem é, e da estrutura da realidade que o cerca. Segundo a autora, o homem é um “ser aberto, insatisfeito, não completo, que inspira e busca sempre melhores condições de existência. Diante disso, o homem não

aceita conscientemente condições subumanas de vida” (Araújo, 1998, p. 6). Essa é a principal razão pela qual surgem os movimentos sociais, representantes autênticos do exercício da cidadania. Marshall apud Araújo (1998) aponta trêscomponentes principais dos direitos de cidadania:

O elemento civil, que é composto pelos direitos necessários à liberdade individual – liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade e a de concluir contratos válidos (sic), e o direito à justiça.O elemento político, que é composto pelo direito de participar no exercício do poder político, como membro de um organismo investido da autoridade política ou como um eleitor dos membros de tal organismo.O elemento social, que é composto pelo direito de um mínimo bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, da herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade. As instituições mais ligadas a ele são o sistema educacional e os serviços sociais (ARAÚJO, 1998, p. 7).

Apesar de a cidadania ser, segundo Barbalet (1989), tão antiga quanto as comunidades sedentárias, ela sofre grande influência do ambiente em que se desenvolve. Nesse aspecto, abordaremos algumas questões relacionadas ao percurso histórico brasileiro. Em 2001, uma publicação da Unesco assim definia o Brasil:

Fundado a partir de um modelo de exploração predatório, escravocrata e latifundiário, o Brasil adentra o sexto século desde a conquista pelos portugueses sem conseguir se desenraizar dessa herança cujas seqüelas se foram cristalizando, ao longo dos 500 anos iniciais, sob a forma de um profundo desnível entre as camadas da sociedade. O desenvolvimento material que o posiciona entre as economias de maior envergadura no mundo não encontrou paralelo na justiça social e na universalização da cidadania, mesmo admitindo que os progressos se tenham intensificado nos últimos anos e que a mentalidade democrática se consolida dia a dia. Essa continua a ser a marca mais consistente desse país, uma quase unanimidade entre os que o conhecem: a mancha da extrema desigualdade. Um novo país, porém, está nascendo, com acentuados avanços também na área social, embora os efeitos imediatos da disparidade de renda ainda não sejam substancialmente sentidos (Unesco, 2001, p. 9).

De fato, o modelo de colonização adotado, os rumos tomados após a independência e o envolvimento em conflitos na região cisplatina muito contribuíram para a configuração atual da sociedade brasileira. Carvalho (2002), retratando o longo caminho da construção da cidadania no Brasil, destaca o reflexo do legado deixado pelos colonizadores.

A colonização, ressalta o autor, não propiciou um ambiente favorável para formação da cidadania. Os escravos e índios não tinham os direitos civis básicos; os senhores de engenho, segundo Carvalho (2001), apesar de livres e de terem direitos políticos, não tinham sequer a noção básica do próprio sentido de cidadania, a noção de igualdade de todos perante a lei.

Entre a classe social dominante e os escravos, vivia uma população legalmente livre, mas a quem faltava quase todas as condições para o exercício dos direitos civis, sobretudo a educação. Essa população era quase que totalmente dependente dos grandes latifundiários para a sobrevivência. Com relação à educação, a situação foi ainda mais complicada. Enquanto as colônias espanholas tinham autorização para a criação de escolas, inclusive universidades, no Brasil colônia a educação primária inicialmente ficou a cargo dos jesuítas e, em seguida, após a expulsão deles, em 1759, passou a ser encargo do Estado, que o exerceu com total descaso. A educação superior só marcou sua presença no Brasil após a chegada da família Real, em 1808. Sobre a situação educacional de forma geral, segundo Carvalho (2002), em 1872 apenas 16% da população era alfabetizada.

Mesmo com a independência e a outorga da primeira Constituição em 1824, durante todo o período imperial não tivemos muito avanço na questão da construção da cidadania. A libertação dos escravos, em 1888, e a proclamação da República, em 1889, dois momentos importantes da vida nacional, não tiveram a participação popular direta. Na primeira República (1889-1930), também chamada de “república dos coronéis”, apesar das manifestações populares ocorridas no período, Carvalho (2002) afirma que ainda não havia um povo politicamente organizado nem um sentimento nacional consolidado.

O conturbado período de 1930 a 1945 foi, sem dúvida, a era dos direitos sociais no Brasil. Apesar de as conquistas terem partido do governo, e não dos movimentos sociais, grande parte da legislação previdenciária, trabalhista e a organização sindical foi implantada nesse período. Carvalho (2002) destaca que houve uma inversão da seqüência lógica da conquista dos direitos civis, políticos e sociais descrita por Marshall, pois, no Brasil, o social teve precedência sobre os demais, além de ter recebido maior ênfase. Nesse período, segundo o autor, houve um avanço da cidadania: ocorre que o produto surgido desse período foi uma cidadania passiva e receptora. Araújo (1998) denomina a cidadania desse período (especialmente no Estado Novo) como “cidadania regulada”, pois os direitos sociais foram “doados” pelo Estado, ou seja, foi uma ação de “cima para baixo”, o que levou o cidadão a enxergar o governante como “protetor do povo”.

O período de 1945 a 1964 é caracterizado pelo avanço dos direitos políticos. A Constituição de 1946 manteve os direitos sociais anteriores e garantiu os direitos civis e políticos. Em diversos momentos importantes da política nacional, houve participação popular, como a batalha pelo monopólio estatal do petróleo, que resultou na criação da Petrobras, em 1953. Outras entidades, como o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), a União Nacional dos Estudantes (UNE) e as Ligas Camponesas, segundo Carvalho (2002), tiveram grande mobilização política.

Entre 1964 e 1985 o País viveu um período de exceção política. De acordo com Carvalho (2002), ao mesmo tempo em que houve um cerceamento dos direitos civis e políticos, houve expansão dos direitos sociais, com a unificação e universalização da previdência social, bem como a criação do Fundo de Assistência Rural (Funrural). Outro fato marcante do período foi a intensa atuação dos movimentos sociais.

Mesmo com a redemocratização do País, iniciada com a denominada Nova República, em 1985, e com a promulgação da Constituição de 1988, que trouxe avanços principalmente na área social, muitos direitos civis ainda continuavam inacessíveis ao cidadão brasileiro. Contudo, Araújo (1998) afirma que a década de 90 foi extremamente rica em termos de avanços das lutas por direitos de cidadania. Carvalho (2002) lembra que cada sociedade constrói a cidadania de forma peculiar, e essa forma certamente influenciará o resultado final, traduzido no nível de conscientização de cada cidadão.

Esse mesmo ponto de vista é defendido por Barbalet (1989), ao afirmar que diferentes tipos de comunidade política dão origem a diferentes tipos de cidadania. O cidadão brasileiro tem demonstrado maturidade ao manifestar-se e exigir ações de todos poderes constituídos, como, por exemplo, no movimento DIRETAS JÁ21, no impedimento do ex-presidente Fernando Collor de Melo, no caso da prisãodo juiz Nicolau dos Santos Neto e na renúncia de senadores acusados de corrupção. A própria exigência da sociedade na aplicação de leis como a do Código de Defesa do Consumidor demonstra essa maturidade.

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Disponivel em: < http://www.educacional.com.br/reportagens/golpede64/diretasja.asp >. Acesso em: 11 maio 2004. Texto detalhado sobre o movimento iniciado em 1983.

É evidente que a inversão da seqüência lógica na conquista dos direitos, apontada por Marshall, tem sua influência na construção da cidadania brasileira, mas essa foi a forma possível diante de todas as dificuldades vividas pelo País, já que o Estado tem um papel fundamental no desenvolvimento da cidadania, conforme defende Barbalet (1989).

As grandes diferenças regionais e a má distribuição de renda, iniciadas com a colonização, ainda permanecem. O Atlas da Exclusão Social no Brasil (2003), de autoria de pesquisadores das universidades paulistas (Universidade de São Paulo, Universidade Estadual de Campinas, Pontifícia Universidade Católica de Campinas e Universidade Paulista), traça um perfil da exclusão social no Brasil a partir de sete indicadores que, juntos, compõem o Índice de Exclusão Social (IES): pobreza, violência, escolaridade, alfabetização, desigualdade social, emprego formal e concentração de jovens.

Baseados no IES, observamos que as regiões Norte e Nordeste possuem maior índice de exclusão social que o Sul, o Sudeste e Centro-Oeste. Os dados mostram que 42% dos 5.507 municípios brasileiros – a maioria localizada no Norte e Nordeste do País – estão associados à exclusão social. Nessas localidades vivem 21% da população brasileira. Na região Nordeste, 72% dos seus 2.290 municípios apresentam problemas de exclusão. A região Norte é representada por 13,9%, ou 318 municípios com baixo IES. Em seguida, as regiões Sudeste, com 10,4% (239), Centro-Oeste, com 2% (45 cidades), e, finalmente, a região Sul, com 1,6% (36) das localidades em situação de exclusão. Comparando os índices dos 100 municípios com melhores índices aos 100 municípios com piores resultados, verificamos que entre os 100 melhores não há nenhum município da região Norte, e apenas um do Nordeste (Fernando de Noronha – PE). Entre os 100 piores, verificamos que 96% pertencem à região Norte ou à Nordeste.