• Nenhum resultado encontrado

5 PRECEDENTES JUDICIAIS E O ACESSO À JUSTIÇA

5.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS PRECEDENTES JUDICIAIS: SISTEMAS COMMON LAW E CIVIL LAW

5.1.1 Aspectos históricos do sistema common law

Tratar do sistema common law é falar precipuamente do direito inglês e de conseguinte destacar o mesmo sistema no âmbito do universo jurídico dos Estados Unidos da América. Este último, por se tratar de país fundado na colônia de povoamento de ingleses que fugiam da intolerância religiosa e nutridos pelo sentimento de liberdade, mas sob a influência dos dogmas, princípios e modelos estruturais do sistema judicial e judiciário da Inglaterra.

Nas lições de patrícia Perrone Campos Mello134, a história do direito inglês possui 04 (quatro) períodos que se destacam: (i) período do direito anglo-saxão, anterior ao ano da conquista normanda por Guilherme ‘O conquistador’ em 1066; (ii) período compreendido entre 1066 à 1485, onde se formou o common law; (iii) período entre 1485 à 1832, quando se originou um sistema jurisdicional complementar denominado de equity; e, (iv) período posterior a 1832, quando se verifica substancial desenvolvimento da lei. A saber.

O primeiro momento, consubstanciado à época do direito anglo-saxão, refere-se a um período pouco conhecido, onde a organização política era eminentemente tribal, havendo muitas normas consuetudinárias em decorrência da rudimentariedade social. Com a conquista

133 MITIDIERO, Daniel. Precedentes. Da persuasão à vinculação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 21.

134 CAMPOS MELLO, Patrícia Perrone. Precedentes. O desenvolvimento judicial do direito no constitucionalismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 13-14; DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes. 2002, p. 355-356.

normanda em 1066, passou haver o desenvolvimento da Inglaterra a partir da constituição de um poder centralizado em contraposição às práticas costumeiras heterogêneas135.

O segundo período, que parte da conquista normanda em 1066 e vai até 1485 destaca- se pela formação do direito comum, superando a complexidade de normas consuetudinárias, o que denominou de common law. Surge neste período os Tribunais Reais, também conhecidos como os Tribunais de Westminster, que se caracterizava como tribunais de exceção julgando os casos que necessitavam a intervenção da realeza. Aqui se destacou as normas processuais, pois havia o senso comum de que a garantias precediam os direitos e era essencial para alcançar a melhor decisão (remedies precede rights)136.

Ainda neste período, o qual durou aproximadamente quatro séculos, os Tribunais Reais exerciam o controle da jurisdição, fixando entendimentos que deveriam ser observados pelas cortes senhoriais. Como se vê, o Tribunal Real estabelecia o precedente a ser seguido pelas cortes inferiores e isto ensejou questionamentos, uma vez que nas jurisdições locais, a conveniência e discricionariedades, para não falar em arbitrariedades, eram enraizadas aos homens da terra, cujos costumes e práticas comerciais nos “burgos” fomentava o processo de circulação de riquezas.

Desta forma, visando conter os avanços dos Tribunais Reais, promulgou-se, após consistente processo de lutas e conquistas, o Estatuto de Westminster II, em 1285, limitando a criação de outras normas – denominadas de writs –, e somente deveria ser aplicado o precedente se houvesse casos semelhantes anteriormente decididos.

Noutras palavras, houve a estagnação do processo de produção jurisprudencial e das normas jurídicas stricto senso, uma vez que os writs não mais seriam concedidos para aplicação no âmbito local. Nesse sentido, oportuna a transcrição das lições de Celso Anicet Lisboa:

Da pressão exercida pelos barões sobre o monarca, surge o statute of Westminster II (Segundo Estatuto de Westminster), de 1825, que é considerado o documento mais importante do direito inglês, inclusive em confrontação com a Magna Carta. Por ele fica proibida a criação de outros tipos de writs, limitando-se este aos já existentes até então. O máximo que se admite é a ‘emissão de writs in cossimili casu (on the case), nas hipóteses que apresentem grande semelhança com outras espécies que já anteriormente deram lugar à emissão de writs137.

135 CAMPOS MELLO, Op. Cit., 2008, p. 14-15.

136 RABASA, Oscar. El derecho anglo-americano: Estudio expositivo y comparado del ‘common law’. México: Fondo de Cultura Econômica, 1944, p. 67-68 apud DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes. 2002, p. 357 e ss.

137 LISBOA, Celso Anicet. O processo como manifestação primígena do Direito e as Grandes Codificações na antiguidade pré-romana. Os grandes sistemas jurídicos contemporâneos – Common law w Civil Law. Revista de processo: São Paulo, v. 22, nº 86, p. 269-284, abr./jun. 1997; LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na história – lições introdutórias. 2 ed. São Paulo: Max Limonad. 2002, p. 79.

Nesta senda, as transformações sociais, que são contínuas, reclamaram para novos anseios por justiça. E assim surge o terceiro estágio, que se dá a partir de 1832, e que representou uma necessidade de avanço do direito, ensejando numa necessidade de ampliação do ramo jurídico, cujo período denominou-se de equity ou julgamento por equidade138.

De forma a flexibilizar a rigidez do Estatuto de Westminster II, o chefe absolutista designava chanceleres – que eram eclesiásticos – para julgar as demandas por equidade, marcando tal período por uma mistura do common law com o civil law.

Anos mais tarde, os chanceleres foram substituídos por advogados, os quais passaram a reaproximar dos dogmas do common law, não olvidando, mas minorando a aplicação do julgamento por equidade.

Finalmente, o quarto período, compreendido ainda na primeira metade do século XVII, ocorreram reformas eleitorais significativas na Inglaterra, revelando a ruptura com o poder absolutista como centralizador do poder judicante, sistematizando a democracia no país.

Nesse passo, corroborando ao quanto esposado até então, o significado do precedente no direito inglês passou por uma série de significados, os quais podem ser sintetizados em 03 (três) expressões: ilustração, persuasão e vinculação139.

O precedente pelo aspecto meramente ilustrativo tinha como característica o papel de auxiliar o ensino jurídico e explicar as decisões judiciais. Eram completamente desprovidos de método decisório, pois desempenhava a função de analisar os casos e a experiência judicial no julgamento com o fito de refletir o common law140.

Desde então, os precedentes de cunho meramente ilustrativos passaram a ser registrados nos Years Books, que eram coletâneas para estudos dos casos e discussões acadêmicas, decerto que passou a ser o primeiro passo para seguir à fase seguinte dos significados e historicidade dos precedentes.

Tais registros possibilitaram a verificação de que os casos decididos (Case law) eram fontes para julgamentos em casos futuros e idênticos, vislumbrando uma ligação entre os

138 LOPES, José Reinaldo de Lima. Op. Cit., p. 78-80.

139 MITIDIERO, Daniel. Precedentes. Da persuasão à vinculação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 27.

140 MITIDIERO, Op. Cit, p. 29;TUCCI, José Rogério Cruz. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: Editora RT, 2004, p. 154.

ostumes imemoriais141 do cidadão inglês e a teoria declaratória da jurisdição (declatory theory

of judicial decision)142.

A partir disto, os precedentes começam a servir de critério para julgamento dos casos futuros, desde, é claro, que se tratem de casos semelhantes e que a decisão passada não viole o ordenamento em vigor.

Neste momento, o direito inglês passava por uma transformação, obviamente, mas a disputa teórica em questão referia-se entre o direito e a razão. De um lado, a perspectiva de utilização de um precedente em face de caso concreto e do outro a convicção do julgador em utilizá-lo, mediante o livre convencimento de que tal precedente não se revelava absurdo ou injusto143.

E aqui se destaca o Juiz William Blackstone, o qual defendeu que caberia ao magistrado a aplicação do precedente, conforme seu convencimento acerca da justeza da decisão e ausência de absurdos, como forma de alcançar um direito justo. Aqui predominava o caráter persuasivo dos precedentes judiciais.

Ou seja, o precedente passava pelo crivo na convicção do julgador para sua incidência, cujo método cognitivo passava pelo juízo de conveniência do juiz responsável para solução do caso. Isto representava uma margem de discricionariedade que fomentava a insegurança jurídica, pois no exercício da jurisdição não havia métodos para estabelecer a pacificação social com previsibilidade e estabilidade da norma jurídica.

Consequentemente, ao longo do século XIX o precedente passa a se revestir de novos contornos, atribuindo-lhe um caráter vinculante, por ser vislumbrada como uma norma jurídica144.

141Trata-se de complexo de princípios que são extraídos das decisões proferidas pela Justiça Real (Tribunais Reais)

in GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. Trad. A. M. Botelho Hespanha e L. M. Macaísta

Malheiros. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001, p. 207-220.

142 O que significa dizer que o Estado-Juiz apenas declara suas decisões, no common law, oriundo dos costumes gerais do homem inglês. Tal teoria conferia a impossibilidade do julgador de inovar no universo jurídico, dizendo o direito. Tal teoria foi posteriormente superada pela teoria constitutiva da jurisdição, defendida por Austin e Bentham, onde partia da premissa que o juiz criava o direito (Judge make law) in GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. Trad. A. M. Botelho Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001, p. 207-220.

143 “Situada em meio a uma disputa teórica mais abrangente a respeito das relações entre o precedente e a razão, a posição de Blackstone sobre o assunto era clara: ‘precedents and rules must be followed, unless flatly absurdo

or injust’. Vale dizer: precedentes devem ser seguidos, ao menos que evidentemente absurdos ou injustos. Em

outras palavras, isso quer dizer que os juízes teriam que se convencer que o precedente não é absurdo ou injusto para aplicá-lo. Sendo absurdo ou injusto, o precedente poderia ser descartado como norma para solução do caso. O precedente – pelas suas razões – deveria convencer o juízo a respeito da bondade da sua solução para o caso.” In BLACKSTONE, William. Commentaries on the laws of England (1765-1769). Chicago: The University of Chicago Press, 1979, Vol. I, p. 70-71 apud MITIDIERO, Daniel. Precedentes. Da persuasão à vinculação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 34.

144 MACÊDO, Lucas Buril de. Precedentes judiciais e o direito processual civil. Salvador: Editora Juspodivm. 2015, p. 49-60.

Sob a influência da doutrina de Jeremy Bentham e John Austin o precedente, como norma jurídica, foi alcançada no common law, chegando ao ponto de afirmarem que a existência de um direito retroativo – onde o precedente estacionava na mera técnica da persuasão –, equivaleria a um “dog law”, o que significa dizer que seria um direito desprovido de comando próprio, estando vinculado ao juízo de conveniência do seu aplicador, ensejando, como consequência lógica, na pedra fundamental que se busca atingir num sistema de precedentes judiciais: a segurança jurídica145.

Indiscutivelmente, a constituição do precedente como norma jurídica, ou seja, com efeito cogente, visou atender aos problemas de acessibilidade, cognoscibilidade e confiabilidade na atuação jurisdicional, gerando, volta-se a dizer, calculabilidade e segurança no comportamento dos jurisdicionado.

Nesse passo, estabelecer uma estrutura hierarquizada do Poder Judiciário passou a ser corolário lógico para atribuir competência aos órgãos jurisdicionais, de modo a dimensionar as autoridades das decisões. E isto foi desde logo tratado no Judicature Acts (1873-1875), o qual unificou as jurisdições de common law e equity na High Court of justice e Court of Appeal.