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CAPÍTULO 1 OS CURSOS DE TECNOLOGIA

1.2 A EDUCAÇÃO E O TRABALHO: UMA VISÃO HISTÓRICA

1.2.3 E ASSIM CAMINHAM AS UNIVERSIDADES

A partir da metade do século XX, as políticas públicas que orientam e regulamentam as universidades, tanto na esfera federal quanto na estadual, sempre foram orientadas por organizações internacionais normalmente convocadas pela UNESCO como é o caso da Associação Internacional de Universidades que, em 1950 e 1998, estipulou três princípios básicos indissociáveis pelos quais todas as universidades deveriam nortear-se.

Primeiro, o direito de buscar conhecimento por si mesmo e de persegui-lo até onde a procura da verdade possa conduzir; segundo, a tolerância em relação a opiniões divergentes e à liberdade em face de qualquer interferência política; e, terceiro, a obrigação, enquanto instituição social, de promover, mediante o ensino e a pesquisa, os princípios de liberdade e justiça, dignidade humana e solidariedade, e de desenvolver ajuda mútua, material e moral, em nível internacional. Esses três princípios se encontram nos códigos de ética das principais universidades que pude consultar, entre elas o da USP e da UNESP, salientando, neste último, a inclusão da palavra “extensão”, no terceiro princípio, provavelmente para compor o tripé das universidades “ensino, pesquisa e extensão”.

Percebe-se que as palavras-chave estão voltadas para valores humanos como: ‘procura da verdade; tolerância; liberdade; justiça; dignidade; solidariedade; ajuda mútua, material e moral’. O discurso, portanto, não estabelece nenhum princípio que seja específico do mundo do trabalho, no que diz respeito às questões ambientais, sociais ou de sustentabilidade, cujos sistemas de produção agridem, consomem, destroem, provocando, justamente, o contrário do que estabelece esses princípios. Ora, esses não poderiam ser levados a efeito apenas nas condutas de dentro das universidades, mas sim como introspecção, partindo dos próprios egressos, para dentro do mercado de trabalho. Nesse sentido, as universidades deveriam ter por obrigação transmiti-los à sua comunidade acadêmica por meio de seu currículo. Porém, como já o disse, não é a escola que molda livremente se currículo.

Durante as aulas de Metodologia do Ensino Superior, parte integrante do Programa de Pós-graduação da FEUSP, que pude assistir com a Professora Dra. Myriam Krasilchik, em 2010, ela apresentava para a classe a “tipologia para a educação superior”, segundo orientações do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID. Em aula expositiva, através de slides, ela comentava o que foi tratado na Conferência sobre educação superior convocada pela UNESCO, ocorrida em Paris em 08 de julho de 2009. O evento foi desenvolvido com temas voltados para as novas dinâmicas da educação superior que devem ocorrer para a mudança social e o desenvolvimento. Assim, foram abordados temas como: a responsabilidade social da universidade; o acesso, equidade e qualidade; a internacionalização, regionalização e globalização; e, a pesquisa, ensino e inovação.

Em sala de aula, Krasilchik apresentava22 três particularidades do ensino, “função, definição e necessidades”, que qualificavam quatro instâncias da educação superior, no que diz respeito à preparação e formação dos alunos, a saber: “a liderança acadêmica; a formação profissional; o treinamento técnico e desenvolvimento; e a educação superior geral”.

A função de “liderança acadêmica” tem por definição a “pesquisa de alta qualidade que prepara as elites intelectuais”. Neste caso, as necessidades vão indicar “verbas públicas, autonomia e avaliação por pares”. Entende-se que essa ‘liderança acadêmica’ está reservada aos egressos das universidades públicas cujo quadro discente é composto, em sua grande maioria, por jovens advindos da classe alta. Essas famílias podem pagar escolas particulares “tradicionais” de ensino fundamental e médio que preparam seus filhos para fazer a diferença no momento da seleção e ingresso nas principais universidades públicas do país, qualquer que seja a forma de seleção. Daí surgem os profissionais altamente gabaritados que devem impulsionar as pesquisas científicas e os trabalhos em laboratórios acadêmicos ou de grandes corporações empresariais, isso quando não assumem o ‘controle’ dessas instituições, mantendo a hegemonia das elites dominantes.

A função de “formação profissional” tem por definição “preparar [os alunos] para funções específicas, trabalhos em equipe e extensão que requerem educação formal”. Aqui, as necessidades apontam para “subsídios [que] devem ser orientados pelo mercado de trabalho, [deve haver] ligações profissionais [e os] professores necessitam mais experiência prática que formação acadêmica”. Por exclusão da função anterior, este tipo de educação deve compreender os cursos superiores que não necessitem de pesquisas de alta qualidade e que são focados para formação profissional e atuação no mercado de trabalho. Parece, contudo,

que as expressões “liderança acadêmica” em contraposição à “formação profissional” retoma a velha distinção entre o ensino para uma “elite dominante” versus o ensino para “os demais”, mesmo entendendo que se trata, nestes dois casos, de ensino superior “tradicional”.

A função de “treinamento técnico e desenvolvimento” tem por definição “os programas curtos para preparação para profissionais de posição média no mercado de trabalho [com] pesquisa relacionada ao desenvolvimento tecnológico e científico do país” (meu grifo). As necessidades dão conta de “mecanismos de gestão e financiamento relacionados ao mercado de trabalho [com] currículo e gestão flexíveis”. Como o assunto em discussão é o ensino superior, fica claro que este tipo de educação deve ser feito pelos cursos de tecnologia. Os cursos sequenciais também devem fazer parte deste segmento, pois segundo o Parecer CNE 29/02

Os cursos sequenciais por campos do saber, de destinação individual ou coletiva, são, essencialmente, não sujeitos a qualquer regulamentação curricular. São livremente organizados, para atender a necessidades emergenciais ou específicas dos cidadãos, das organizações e da sociedade. A flexibilidade, neste caso, é total, dependendo das condições da instituição educacional e das demandas identificadas. Não cabem amarras e regulamentações curriculares a cursos desta natureza e, em consequência, também não geram direitos específicos, para além da respectiva certificação. Não devem, portanto, ter oferta cristalizada (CNE 29/02, p. 16).

Finalmente, a função de “educação superior geral” tem a definição voltada para “ensino no que são chamadas profissões cujo mercado de trabalho está saturado ou indefinido”. As necessidades vão sugerir que os “custos devem ser baixos, [os] conceitos de qualidade e eficiência devem ser incorporados, [os] processos de avaliação (acreditação) devem desempenhar o papel regulador principal”. Independentemente dos cursos cuja profissão esteja saturada ou indefinida no mercado, me parece que também podem ser classificadas, neste item, cursos oferecidos por instituições de ensino superior que tratam a educação como um ‘negócio’, sem a preocupação com a qualidade nem com o comprometimento na formação profissional dos seus alunos e que formam, todo ano, contingentes enormes de maus profissionais.

De qualquer forma, também me parece claro que, com essas orientações, o Banco Interamericano de Desenvolvimento promove um discurso que remete ao ensino superior o dever de preparar seus alunos [apenas] para o mercado de trabalho. Ressalte-se, também, a manutenção de um ensino, mesmo que de nível superior, “intelectual” para uma elite e “de mercado” para os demais, agravando-se a situação daqueles que optarem pelos cursos de curta

duração que, segundo o slide da Professora Krasilchik, marcado pelo meu grifo, está voltado “para preparação para profissionais de posição média no mercado de trabalho” (sic). Resta saber, das autoridades responsáveis pelos organismos internacionais que ditam as regras de mercado e, consequentemente, as das universidades, o que significa, para eles, “profissionais de posição média”.

Eis aí, em minha opinião, a ‘discriminação’, que vai se acentuando e se perpetuando, sobre os cursos de tecnologia, cuja integralização é feita em menos anos que os cursos de bacharelado em geral. O Parecer CNE 29/02 faz uma referência ao tempo de duração dos cursos de tecnologia, numa tentativa de modificar essa ideia de que são cursos de ‘curta’ ou ‘média’ duração, pois “o que caracteriza os cursos superiores de tecnologia não é a sua duração e, sim, o seu perfil profissional de conclusão. É exatamente este o entendimento que deve prevalecer na atual análise de propostas de cursos superiores de tecnologia, como proposto nas presentes Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional de Nível Tecnológico” (p. 9-10).