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CAPÍTULO 3 O COTIDIANO NA FATEC DE ITAPETININGA

4.7 PRINCÍPIO DA REINTRODUÇÃO DO SUJEITO EM TODO

Citando Husserl84, Morin vai dizer que ele, “há quase cinquenta anos, tinha diagnosticado a tarefa cega: a eliminação por princípio do sujeito observador, experimentador e concebedor da observação, da experimentação e da concepção eliminou o ator real, o cientista, homem, intelectual, universitário, espírito incluído numa cultura, numa sociedade, numa história” (2010, p. 20-21). Continua ele dizendo que o método científico, tal como concebido pela ciência moderna, está baseado na disjunção entre sujeito e objeto, de modo que o sujeito foi excluído de sua experimentação e remetido à filosofia e à moral. Assim, ele não dispõe das virtudes verificadoras da ciência para refletir sobre sua própria ciência.

A exclusão do sujeito efetuou-se na base de que a concordância entre experimentações e observações por diversos observadores permitia chegar ao conhecimento objetivo. Mas, assim, ignorou-se que as teorias científicas não são o puro e simples reflexo das realidades objetivas, mas o co-produto das estruturas do espírito humano e das condições socioculturais do conhecimento (op. cit. p. 137).

Este princípio trata, pois da restauração do sujeito no âmbito das ciências, de modo que traz à tona, segundo Morin, a problemática cognitiva central: “da percepção à teoria científica, todo conhecimento é uma reconstrução/tradução por um espírito/cérebro numa cultura e num tempo determinados” (2000, p. 211-212). Tem-se, portanto, a necessidade de

... reintegrar e conceber o grande esquecido das ciências e da maioria das epistemologias; e enfrentar, sobretudo aqui, o problema incontornável da relação sujeito/objeto. Não se trata de modo algum de cair no subjetivismo,

84 Edmund Husserl, nascido a 8 de abril de 1859, em Prossnitz, na Morávia, no antigo Império Austríaco (hoje

Prostejov, na República Checa). Sua filosofia exerceu influência não só em filósofos como Heidegger e Max Scheler, Jean-Paul Sartre e Merleau-Ponty, Ortega y Gassete entre outros, mas também em psicólogos como Binswanger e Buytendijk. Sob a influência das ideias de Husserl constitui-se a escola fenomenológica. Disponível em: <http://educacao.uol.com.br/biografias/edmund-husserl.jhtm>.

mas, ao contrário, de encarar o problema complexo em que o sujeito cognoscente, permanecendo sujeito, torna-se objeto do seu conhecimento. (MORIN, 2005, p. 30)

Citando von Foerster85, Morin diz que necessitamos de uma epistemologia dos sistemas observadores que, na verdade, são sistemas humanos concebidos como sujeitos e que nós, enquanto sujeitos, precisamos recorrer à auto-análise e à auto-reflexão para tentar considerar criticamente nosso lugar no processo de construção do conhecimento (ibidem).

O que me parece evidente é que o sujeito que constrói o conhecimento deve ter a lucidez de entender e aceitar que esse conhecimento não é absoluto e que, portanto, não está acabado. Essa questão do ‘inacabado’ é colocada por Morin na sua exposição sobre reintroduzir o conhecimento em todo o conhecimento. Suas reflexões dão conta de um metaponto de vista que devemos construir, “de onde o espírito pode, como de um miradouro, considerar-se a si mesmo nos seus princípios, regras, normas e possibilidades considerando a sua relação dialógica com o mundo exterior...” (2005, p. 246), quando se pode perceber, então, que o maior limite do conhecimento é a inconsciência dos limites do conhecimento: “A ideia de que o conhecimento é ilimitado não passa de uma ideia limitada. A ideia de que o conhecimento é limitado tem consequências ilimitadas” (ibidem).

Nós, seres humanos, possuímos cinco sentidos que nos fazem interagir com a natureza e, consequentemente, com o meio onde vivemos. Cada ser humano é único nas suas interpretações: vemos nossa casa de modo diferente dos outros; sentimos o gosto do vinho de modo muito particular; o que é bom para nós pode não ser tão bom para os outros etc. Portanto, o conhecimento que produzimos precisa ser ‘introduzido’ naqueles existentes, o que significa considerar a existência do ‘sujeito’ que produz o conhecimento.

A questão que se levanta, então, está no fato de que o sujeito que constrói o conhecimento é feito de um cérebro e de um espírito funcionando na unidade do sujeito, mas que

... o espírito nada sabe, por si mesmo, do cérebro que o produz, o qual nada sabe do espírito que o concebe. Há, ao mesmo tempo, abismo ontológico e opacidade mútua entre, de um lado, um órgão cerebral constituído de milhares de neurônios ligados por redes, movidos por processos elétricos e químicos, e, de outro lado, a Imagem, a Ideia, o Pensamento. Contudo é

85 Heinz von Foerster, nascido a 13 de novembro de 1911, em Viena, Áustria. Juntamente com Norbert Vierner,

entre outros, foi um dos arquitetos da Cibernética. Biólogo, físico e matemático, foi o criador da cibernética de 2ª. Ordem, em que põe em destaque a posição do observador. Disponível em:

juntos, mas sem se conhecer, que eles conhecem. A unidade deles é conhecimento, sem que disso tenham conhecimento (MORIN, 2005, p. 79). Porém, se não é possível separar cérebro e espírito do sujeito também é verdade que não se pode separar o sujeito da cultura, segundo Morin, da linguagem, do savoir-faire e saberes acumulados do patrimônio social (op. cit., p. 85).

O espírito que depende do cérebro depende de outra maneira, mas não menos necessariamente, da cultura. (...) a esfera das coisas do espírito é e continua inseparável da esfera da cultura: mitos, religiões, crenças, teorias, idéias. Essa esfera submete o espírito, desde a infância, através da família, da escola, universidade, etc. a um imprinting cultural; influência sem volta que criará na geografia do cérebro ligações e circuitos intersinápticos, isto é, seus caminhos, vias, limites. Assim, a cultura deve fazer parte da unidade espírito–cérebro, transformando-a em trindade (op. cit., p. 85-86).

Deve-se, então, imaginar um diagrama de tripla entrada cérebro–espírito–cultura, cada instância contendo as outras duas de forma recursiva, de modo que, segundo Morin, deve-se entender um macroconceito onde se introduz o ‘cômputo–cogito’, próprio do ser humano, que desencadeia o processo do pensamento, das ideias, das imagens, símbolos etc. Portanto, as regras do espírito são estabelecidas por um indivíduo–sujeito em constante cômputo–cogito, cuja atividade pensante produz mitos, deuses, demônios que acaba transcendendo os indivíduos–sujeitos, como, por exemplo, uma comunidade que acredita num ‘deus’ e que acaba sendo possuída por ‘ele’. Portanto,

Há algo de transcerebral e de transindividual na esfera espiritual. Se, em contrapartida, queremos focalizar o aspecto individual-subjetivo da atividade do espírito, encontramos a noção de psiquismo. O psiquismo emerge, como o espírito – do qual é aspecto subjetivo –, da atividade cerebral e retroage sobre aquilo que emerge. Nesse sentido, a existência relativamente autônoma de uma psique autoriza uma psicologia e uma psicanálise relativamente autônomas. O psiquismo está enraizado no egocentrismo subjetivo e na identidade pessoal; engloba os aspectos afetivos, oníricos, fantasmáticos da atividade espiritual (op. cit., 2005, p. 93).

Assim, aproveitando a expressão de Freud, psychischer apparat, Morin vai chamar de ‘aparelho psíquico’ à organização bioquímica da computação cerebral. “O aparelho psíquico remete aos fenômenos psico-espirituais que emergem da sua atividade. O interesse pelo termo aparelho psíquico reside na indicação do enraizamento organizacional e orgânico da psique. Podemos logo considerar o seguinte esquema:” (ibidem).

APARELHO

neurocerebral psíquico

cérebro espírito

cômputo cogito

A partir desse esquema, segundo Morin, pode-se reintegrar o espírito na physis (psíquico) e a physis no espírito; o espírito no bios (cérebro) e este no espírito. Nesse aparelho é que “bilhões e bilhões de interações através de 1014 sinapses fazem um espírito, um pensamento, um julgamento, uma vontade. Elas são integradas–integradoras num dinamismo retroativo, o do cérebro espírito que é, ao mesmo tempo, o do cômputo cogito

federador de um ser–sujeito egocêntrico” (op. cit., p. 94).

Ora, mas quem é o ser–sujeito egocêntrico? No ‘Método 2: a vida da vida’, Morin faz um estudo detalhado sobre a organização das atividades vivas que não me cabe, nesse momento, sintetizar, mas relevar as idéias-chave que me auxiliam nas análises e interpretações dos dados coletados em minha pesquisa. Assim,

Todo ser vivo, da bactéria ao Homo sapiens, por mais efêmero, particular e marginal que seja, considera-se como centro de referência e de preferência; dispõe-se assim, naturalmente, no centro do seu universo, e autotranscende- se nele, ou seja, eleva-se acima do nível dos outros seres. Afirma-se assim num sítio privilegiado e único (...) do qual exclui qualquer outro congênere, inclusive o seu gêmeo homozigoto. É a ocupação exclusiva desse sítio egocêntrico que funda e define o termo ‘sujeito’ (MORIN, 1999, p. 153). As noções de cômputo e cogito me são, particularmente, importantes. Morin (op. cit., p. 165) utiliza o termo cômputo por referência ao cogito cartesiano, que estabelece no ‘eu penso’ a afirmação incontestável de existência, na primeira pessoa, do ‘eu existo’. Mas a necessidade de atender à lógica do pensamento faz emergir um cômputo capaz de retroagir a informação do ‘eu penso’ para objetivar o ‘eu’ em um ‘mim’, num processo reflexivo do ‘eu penso’ ao ‘eu sou’. O cérebro consegue, pois entender que o ‘eu’ que pensa é o ‘mim’ que existe: “o ‘eu penso’ constitui um circuito recorrente do ‘eu’ ao ‘eu’, produzindo o ‘mim’, o ‘me’, a auto-identificação do ‘mim’ com o ‘eu’, o auto-reconhecimento do ‘eu’ no ‘mim’ e, finalmente, a afirmação do ‘eu sou’” (op. cit., p. 167). Dessa forma, o cogito é uma operação

... auto-cognitiva, auto-informadora, auto-comunicadora, auto-identificadora, que produz e afirma irredutivelmente a qualidade do sujeito consciente. Nesse sentido, o cogito é o anel do sujeito consciente auto-reconhecendo-se, auto-constituindo-se e auto-recomeçando-se como sujeito consciente (...). Trata-se duma prova de egocentrismo e de auto-transcendência (...). Por isso mesmo a reflexão auto-referente seleciona o ‘eu’ entre todas as outras coisas do universo para fazer dele a sua verdade e realidade primeiras (op. cit., p. 169).

De outra forma, se o cogito produz a consciência do ‘sou’, o cômputo produz o ‘sou’, sua realidade, sua existência biológica, a qualidade do sujeito, inscrevendo-lhe na physis. Assim,

... o cômputo é multidimensional e total: não há operações, ações, interações, emergências que não dependam duma computação, e não há computação que não seja simultaneamente organizacional, cognitiva, subjetiva–objetiva, auto-exo-referente (...). Mas, inversamente, o próprio cômputo depende duma inscrição genética, de informações que emanam dos acontecimentos anteriores e exteriores, da atividade total do ser-aparelho (...). Tudo depende do cômputo, que depende de tudo aquilo que está no todo auto-organizador (op. cit., p. 178).

Por isso, ainda há que se considerar a constituição do cérebro do sujeito, cujos estudos de Mac Lean86, citado por Morin (2005, p. 104), apontam para ‘três em um’, quais sejam: o paleocéfalo, herança do cérebro dos répteis, que compreende o hipotálamo, fonte da agressividade, do cio, das pulsões primárias; o mesocéfalo, que é uma herança do cérebro dos antigos mamíferos, onde se encontra o hipocampo, que parece ligar o desenvolvimento da afetividade ao da memória longa; e o córtex, bastante desenvolvido nos mamíferos, envolve toda a estrutura do encéfalo até formar os dois hemisférios, enquanto no homem, surge o

... neocórtex, que atinge um desenvolvimento extraordinário. O neocórtex, ‘mãe da invenção e pai da abstração’ (Mac Lean, 1976, p. 206), é o centro das aptidões analíticas, lógicas, estratégicas que permitem ao homem ‘abrir- se ao mundo físico e social em torno, analisá-lo na multiplicidade de detalhes e na diversidade de esquemas de organização’ (Changeaux, 1983, p. 168) (...). O importante, na ideia de cérebro triúnico, não está na tripartição, mas na trindade que, complexa como no dogma católico, é uma mesmo sendo tripla, o que nos permite considerar o cérebro humano como um complexo: réptil–mamífero–primata–humano (op. cit., p. 104-105).

86 Paul Mac Lean, nascido a primeiro de maio de 1913, em Nova Iorque, nos Estados Unidos, foi médico e

Desse modo, “emerge outra face da complexidade humana, que integra a animalidade (mamífero e réptil) na humanidade e a humanidade na animalidade” (MORIN, 2007b, p. 53). Continua esse autor dizendo que esse cérebro triúnico enfrenta relações complementares e antagônicas, “comportando conflitos bem conhecidos entre a pulsão, o coração e a razão; correlativamente a relação triúnica não obedece à hierarquia razão–afetividasde–pulsão; há uma relação instável, permutante, rotativa entre estas três instâncias” (ibidem).

Após a exposição destes sete princípios do Pensamento Complexo, que não se esgotam nem se fecham neles mesmos, pois Morin ainda descreve as “avenidas” que levam ao desafio do Pensamento Complexo, vou abordá-las a partir de agora.