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CAPÍTULO IV. O ENQUADRAMENTO INSTITUCIONAL DOS BALDIOS

2. Actores e interacções institucionais na gestão dos baldios

2.1. Órgãos de Gestão

2.1.3. Associações de montes aforados

Um monte aforado é uma propriedade privada do domínio útil, detida em comum por um grupo definido e estanque, formado pelos descendentes das famílias que formavam a comunidade utilizadora do monte quando foi passada a carta de foral. Qualquer pessoa que integre hoje a comunidade da aldeia, mas que não tenha descendência directa de nenhum dos membros da comunidade foreira original, não tem direito a usar o baldio. De facto, hoje grande parte dos actuais proprietários encontra-se longe, quer em termos geográficos, quer em termos culturais ou económicos, afastada do modo de vida centrado no monte. Não obstante, para salvaguarda do património histórico e familiar, a gestão encontra-se entregue a uma entidade, dirigida por alguns desses proprietários, que está encarregue da sua defesa e gestão.

No PNPG, existem quatro montes aforados, ou seja, baldios que em tempos foram entregues às comunidades, através de pagamento do foro à autarquia: Ermida/Lourido/Froufe, no concelho de Ponte da Barca, e Campo do Gerês, Covide e Vilarinho da Furna, no concelho de Terras do Bouro. Desde então, o domínio útil do monte passou a ser propriedade daquele grupo de pessoas, sobre a qual têm inclusivamente de pagar impostos, como em qualquer outra propriedade privada. À excepção de Covide, são geridos por associações criadas para o efeito, respectivamente as associações Foral, Associação de Compartes do Campo do Gerês e A Furna. Diz o presidente da associação Foral,

Aquilo, digamos, em termos práticos e objectivos, é uma propriedade privada embora de gestão comum, ou seja, cruza em muitos aspectos com a filosofia de gestão do baldio, mas aquela área paga contribuição, paga IMI, tem os proprietários identificados, é indivisível na mesma não é, tal como… no baldio (PE1).

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De acordo com o mesmo entrevistado, o foral de Ermida, Froufe e Lourido foi cedido por Dona Maria31 à comunidade. Desde então, o monte daquelas três povoações

é considerado propriedade das famílias incluídas no foral e dos seus descendentes. Conta o presidente da Foral que, no tempo da florestação, o Estado tentou usar terrenos do monte aforado para plantação, violando os direitos de propriedade do coletivo. Na altura, 151 elementos das famílias proprietárias juntaram-se e interpuseram uma acção judicial contra o Estado, que após anos de processo lhes foi favorável:

[...] Foi para aí uma dezena de anos [que esteve em tribunal], eu tenho esse documento algures mas não tenho precisa essa data. Mas andaram muito tempo em tribunal, até houve pessoas que faleceram e depois foi necessário substituí- los pelos herdeiros. E porque é que só se fala à data de hoje em 151 [proprietários] originais? Porque na altura fez falta juntar o povo e comunicar- lhes que havia esta questão de defesa da propriedade e perguntar-lhes quem é que estava disponível para avançar, e pronto, foram os tais 151 que avançaram com a questão e depois venceram e pronto, desde essa altura … (PE1).

Mais tarde, já no período do pós 25 de Abril, foi criada a associação, para “garantir mecanismos de angariação de receitas” e “para a gestão, digamos assim, mais organizada do espaço, porque até então era uma gestão sem formato nenhum, sem uma organização. Foi criada a Foral, feita a escritura, a constituição da associação que gere, digamos assim, o território [...]” (PE1).

Igualmente, no Campo do Gerês, segundo o presidente da associação de proprietários,

Em finais de 1800 o Estado e a Igreja precisaram de dinheiro e privatizaram um conjunto de bens, desde paços, casas, até aos baldios. Aqui nesta região houve muitas comunidades que aproveitaram e adquiriram esses baldios ou à igreja ou ao Estado e que foi o nosso caso, e é por isso que o regime é do aforamento. Ocorreu depois em 1946 a remição de foro, que foi o pagamento do… o Estado aí voltou a precisar de dinheiro e fez uma colecta, pediu a quem quisesse desonerar-se do pagamento anual da renda, arrecadava de uma vez a receita,

31 Não sabemos se o entrevistado se referia a Dona Maria I ou Dona Maria II. Uma vez que não temos

referências temporais detalhadas sobre a cedência do foral à comunidade, optou-se por apresentar a informação como nos foi dada.

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calculada para o futuro, para a eternidade e estas comunidades pagaram, daí que passaram a ser donas e senhoras dos terrenos (TC1).

Se desde 1946 o baldio é propriedade plena dos descendentes da comunidade original, a necessidade de criar uma associação para gerir aquele património surgiu apenas há 15 anos como resposta ao aparecimento dos apoios comunitários:

A associação é uma figura recente, até foi criada mais por causa de poder candidatar-se a apoios comunitários. E até porque hoje, de acordo com as regras actuais, até se pede factura para tudo, houve necessidade de criar uma entidade justamente por causa da relação com o exterior ou com o Estado, com entidades externas, teve de se criar formalmente uma entidade. E daí que a figura foi a associação… tem 15 anos, creio (TC1).

Em Vilarinho da Furna, o foral foi emitido a 17 de Agosto de 1895, dia em que “o conselho [da aldeia] tinha acabado de ser extinto, ainda não tinha entrado em extinção e lá a Câmara Municipal deu de aforamento à gente de Vilarinho. [...] Antes era um baldio, como todos os baldios” (TVf1). A associação A Furna, que gere hoje o património da aldeia submersa, foi criada em 1985 para defender o património, mas aqui os herdeiros foram instigados a fazê-lo devido a um conflito com o director do Parque Nacional que envolveu igualmente questões em tribunal (por volta de 1998), que acabaram por se resolver a favor da comunidade. A associação surgiu portanto como uma forma de assegurar os direitos de propriedade. Diz o presidente da Associação:

[...] e com base nisso eu fiz depois a habilitação de herdeiros, está o meu pai, o meu tio, o fulano, o beltrano e não sei quê, que está aqui na escritura, na tal escritura de 1895, ‘tal, depois casou com aquele, e tem uns certos avos’, não sabe onde é mas tem lá aqueles avos e isso depois vale na contribuição de cada um para as finanças. Então aqueles proprietários passaram a pertencer à Furna e a Furna como procuradora é que gere aquilo. Portanto quando é preciso uma reunião convoca-se uma assembleia-geral (TVf1).

O funcionamento das associações obedece à dinâmica regular de qualquer entidade associativa, servida pela Assembleia Geral, constituída pelos sócios e pela Direcção, e obedecendo a eleições bienais.

No que respeita a financiamento e a distribuição de responsabilidades, em Entre- Ambos-os-Rios tentou-se inicialmente instituir um sistema de quotas, sem grande

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resultado. Se em qualquer associação é difícil manter as contas em dia, quando o universo dos sócios corresponde ao dos próprios proprietários, a utilização de métodos coercivos fica à partida muito dificultada. Em Vilarinho cobram-se quotas, contudo, face ao valor simbólico estipulado e à pequena parte dos associados que cumpre essa formalidade, estas compõem uma parte irrisória das receitas da associação. Caso configurassem um valor substancial, as receitas serviriam para assegurar as despesas relativas ao funcionamento da associação, mas de acordo com o presidente da Associação Foral (Ermida, Lourido e Froufe),

Em termos de gestão ainda não fez falta, não sei quando fizer o que é que vai acontecer não é, isto é muito bonito enquanto não nos entra no bolso mas digamos, nós pagamos o IMI todos os anos, e a associação tem criado dinâmica que permite gerar receita para fazer face a estas despesas, se não tivesse onde é que ela teria que ir? Teria que ir às pessoas “olhe, toca tanto a cada um, venha lá”. Não fez ainda falta chegar a essa altura, se um dia chegar não sei, se calhar uns dizem “ah, não quero saber disso para nada”. E depois como é difícil chegar a um número exacto, nesta sucessão hereditária que já vai aonde nós não sabemos, não é? (PE1).

No Campo do Gerês não existe regime de quotas nem se exerce qualquer tipo de cobrança pela utilização do monte. Conversando com o presidente da associação sobre qual seria a melhor figura para a gestão de um património desta natureza, percebe-se a diversidade de situações possíveis existentes. Por exemplo, A Furna, de Vilarinho, está constituída com o aval dos proprietários através de procuração passada em nome da associação. Ainda assim, devido ao aumento do número de proprietários pelo crescimento das famílias, não foi ainda possível abranger todos, mesmo pela dificuldade que representa encontrar essas pessoas. No Campo do Gerês, a procuração é vista como um instrumento para a segurança e legitimação da actividade da associação. Sendo sua vontade que o monte venha a ter um papel ainda mais relevante no desenvolvimento local, inclusivamente empregando pessoas da comunidade, o presidente da Associação questiona-se sobre a melhor opção de gestão. Depois de alguma pesquisa, pôs-se a hipótese da fundação, por ser a que lhe parece deter as melhores condições para garantir a preservação dos princípios que guiam a gestão do monte e para viabilizar a contratação de pessoal. Nas suas palavras, para a continuidade da associação,

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[…] a esperança passa por nós conseguirmos criar alguns postos de trabalho passando a fundação, e aí implementar uma lógica diferente de exploração dos recursos, porque [...] eu acho que o baldio tem estrutura, é um recurso que pode ser rentabilizado… mas isto implica ter pessoas remuneradas, nós na associação não temos ninguém remunerado, contratámos serviços apenas [...] a solução adequada é ser uma fundação [...] (TC1).

Os montes aforados também são elegíveis para projectos financiados pela União Europeia, já que representam propriedades à partida abrangidas pelos objectivos das medidas agro- e silvoambientais promovidas pela UE e aplicadas pelos Programas de Desenvolvimento Rural do Estado. Para tal, é exigida a existência de entidades oficiais de gestão da propriedade, algo que já existia em todos excepto no de Campo do Gerês.

Também em Covide, a Junta de Freguesia, como órgão de gestão do monte, se candidatou às medidas agroambientais dirigidas aos baldios, apesar de até 2014 só ter tido acesso às medidas silvoambientais, ficando fora do seu alcance as agroambientais. Por isso, o valor recebido foi menor do que nos outros três casos, geridos pelas associações. No PDR 2020, as Juntas de Freguesia eram já consideradas para financiamento. Assim, no que diz respeito aos usos e interesses actuais, os baldios e montes aforados do PNPG parecem estar em consonância, centrando-se as suas actividades económicas sobretudo na pastagem e criação de animais, ao mesmo tempo que as receitas provêm sobretudo das medidas agroambientais. Em última análise, o acesso aos fundos europeus e estatais e as consequências de alterações ocorridas ou que venham a ocorrer são factores que unem os montes aforados aos baldios. Inclusivamente, uma das grandes iniciativas de luta contra as alterações à classificação de áreas elegíveis para pastagem (ver capítulo I.4), que se concretizou num manifesto em nome dos órgãos gestores de baldios, foi iniciada por um dirigente de um monte aforado e seguida pelas restantes unidades de montes ou baldios.

Para além das reuniões obrigatórias inerentes ao funcionamento de uma associação, os proprietários reúnem quando existe algum assunto determinado, relevante para o estado actual ou futuro do monte e seus recursos ou que interfira com os usos de alguma maneira. A lei dos baldios em nada interfere com o funcionamento do monte. Confrontando a gestão do baldio com a do monte aforado, o presidente do CD do baldio de Entre-Ambos-os-Rios e da Associação Foral, e do monte aforado de Ermida, Lourido e Froufe sublinha a própria natureza da propriedade. Na sua opinião,

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apoiada na sua experiência de presidente do CD do baldio de Entre-Ambos-os-Rios desde 2005 e da Foral desde 2009, o facto de o monte aforado ser um bem privado cria uma tensão que vulgarmente está associada à gestão privada e que se relaciona com a possibilidade de lucro, tornando por vezes a sua gestão mais delicada do que no baldio, onde essa possibilidade é à partida inexistente:

É mais complicada a gestão da Foral, digamos assim, de aceitação de algumas regras e de… pronto, é mais complicado na Foral, porquê? Porque lá está, é a questão privada que entra ali, eventualmente a possibilidade ou a ideia de poder daí resultar dividendos e tudo o mais, do que no baldio, no baldio essa parte está afastada, por isso… temos maior dificuldade na Foral (PE1).

De facto, o estatuto privado foi em muitos casos o que a comunidade procurou em primeira instância, ao pretender o foral. Perante a entrada pelo Estado do grande projecto florestal nas serras no final do século XIX, muitas comunidades parecem ter-se precavido da perda de direitos, precisamente através do seu reforço com carta de foral. Por exemplo, em Vilarinho da Furna, diz o actual presidente e fundador da Furna,

Com base na escritura de aforamento nós fizemos, até para nos defendermos contra o Estado, que o Estado de vez em quando esquece-se, pensou que aquilo era baldio e começou para lá a mandar os Serviços Florestais e a gente espetou- lhe logo um processo em tribunal, e agora há 16 anos nós ganhámos o processo, contra o Salazar [RISOS] e contra o Marcelo Caetano (TVf1).

Como reflexo desta questão, de acordo com o mesmo entevistado, “em Terras do Bouro não há praticamente baldios”. De facto, a entrada dos Serviços Florestais em 1888 na serra do Gerês levantou uma onda de reacção das populações que procuravam salvaguardar os seus bens. Nesse sentido, várias localidades recorreram à figura do foral para impossibilitar a entrada do Estado. Passando a considerar-se propriedade privada de um grupo, o baldio deixava de estar incluído na área de incultos que se previa florestar, retirando a legitimidade da acção do Estado. Esta será uma das razões para a predominância de montes aforados no município de Terras do Bouro, uma vez que a primeira investida do Estado nos baldios no final do século XIX se focou sobre a serra do Gerês. Face à reacção popular, a florestação praticamente não se expandiu. Ao mesmo tempo, registou-se uma oposição directa à presença dos Serviços Florestais e à plantação, veja-se por exemplo a descrição do presidente da Furna para o baldio de Vilarinho:

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Claro que a gente habituada a gerir aquilo desde tempos imemoriais… claro que houve guerra, os pastores cortavam as plantações, de tal forma que, aquilo era a sério, de tal forma que um comandante das tropas, que eles mandaram as tropas ali de Guimarães, sentiram necessidade de regressar aos quartéis, porque não tinham comida, porque a gente não lhes dava comida nem vendia, roubávamos- lhes as botas, espingardas [RISOS]. Ainda tenho aqui a carta que ele escreveu ao administrador a pedir para regressar aos quartéis (TVf1).

Os registos apontam para uma retracção do Estado perante a reacção popular na serra do Gerês no final do século XIX. Embora também tenha existido reacção das comunidades quando o Estado Novo interveio nos baldios, com os mesmos propósitos de florestação, esta parece não ter surtido igual efeito, e a floresta avançou ao longo de pelo menos trinta anos. O resultado de cada época pode dever-se tanto à eficácia da revolta como às características do regime, claramente autoritário no século XX. De uma maneira ou de outra, a descrição presente nestes excertos refere-se à investida dos finais do século XIX, aquando da criação do Regime Florestal.

Tal como outrora, hoje o aforamento permite aos proprietários manterem-se fora dos processos estatais que não os beneficiam. Assim, ao mesmo tempo que, pela natureza da propriedade, são integrados nos programas de financiamento ao lado dos restantes baldios, encontram-se contudo excluídos da legislação própria que regula os baldios. Assim, os montes aforados passariam incólumes às polémicas alterações à lei dos baldios, ocorridas entre 2014 e 2015, caso estas tivessem vigorado. Já no caso das alterações aos critérios de avaliação das áreas para financiamento, essas sim, são determinantes também para os montes aforados. Assim, enquanto por exemplo a alteração do conceito legal de comparte não influencia em nada o funcionamento dos montes aforados, já a diminuição das áreas elegíveis é uma preocupação comum dos montes aforados e baldios (ver capítulo I.4).