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CAPÍTULO IV. O ENQUADRAMENTO INSTITUCIONAL DOS BALDIOS

2. Actores e interacções institucionais na gestão dos baldios

2.2. Autarquias e Conselhos Directivos: Influências e complementaridades

Ao abordar-se a gestão dos baldios pelas Juntas de Freguesia, é muitas vezes levantada a eventualidade de estas virem a beneficiar o investimento nas povoações, em detrimento do baldio. Existindo no território do Parque apenas dois baldios sob esta modalidade de gestão, que, além disso, apresentam situações muito diferentes entre si – um monte aforado e um monte baldio – torna-se difícil tirar conclusões. Ainda assim, embora os terrenos baldios e a sua gestão não coincidam com os limites administrativos

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das freguesias, a forma de pensar os benefícios parece continuar a ser feita ao nível da freguesia. Isto sucede talvez pelo facto de muitos CD serem de formação recente, logo também a passagem da gestão para os compartes. Registando-se mesmo mais do que uma vez, nos discursos dos compartes, o uso involuntário do termo “Junta”, referindo-se ao CD ou ao conjunto dos compartes. Assim, em baldios que deixaram de ser geridos pela Junta de Freguesia há relativamente pouco tempo, particularmente aqueles que continuam a ser geridos à escala da freguesia mas agora pelo CD (como o de Cabana Maior), parece existir uma tendência para se considerar legítima a eventual beneficiação da aldeia com os proventos conseguidos por e para o baldio. Assim, após cumpridas as tarefas mínimas estabelecidas pelos projectos “financiadores” (e.g., medidas agroambientais), o orçamento disponível é utilizado em benfeitorias para a aldeia, pondo-se em segundo plano questões como reflorestação, manutenção de caminhos no monte, etc. Em todo o caso, existem excepções. Por exemplo, no baldio de Cabril, também gerido pelo CD à escala da freguesia (à parte das aldeias de Fafião e Pincães que desde cedo se separaram dessa gestão), a prioridade da utilização dos apoios é a gestão do baldio, e o seu investimento na aldeia é algo impensável e fortemente criticado pelo presidente do CD (que, aliás, preside igualmente à Junta de Freguesia):

O dinheiro vem do Estado para um fim e o dinheiro tem de ser utilizado para esse fim, quer dizer… vão andar a fazer rotundas e estátuas e santuários, com o dinheiro do baldio?! Não! A mim não me faz sentido [...]. [Aqui já] foi utilizado [para isso], mas quanto a mim mal, quanto a mim mal, porque a floresta precisava de muito mais dinheiro do que aquilo que ela dá… certo? Portanto acho que todo o dinheiro que vem da floresta tem de ser empregue na floresta… em caminhos florestais, limpeza de caminhos, há tanto para fazer… (MCa1). Efectivamente verificou-se alguma diversidade no modo de perspectivar os campos de actuação do CD e da Junta de Freguesia, nomeadamente no modo de aplicar (na localidade) os fundos conseguidos pelo CD para o baldio. Enquanto em alguns baldios, como o de Cabril, os papéis de cada entidade parecem bem separados, noutros tende a unificar-se a sua actuação. Diz o presidente do CD de Tourém,

Eu sou daqueles que defendo que os presidentes da Junta deviam fazer parte da direcção do CD, obrigatoriamente, porque há trabalhos que têm de ser feitos com as duas entidades. [...] atenção, a Junta não tem de intervir no CD, é uma parceria, o que é muito diferente… cada macaco no seu galho. Até há dois anos

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atrás eu era o presidente do CD e o presidente da Junta. … e as coisas funcionavam muito bem. E com isto estou a dizer que não sabíamos onde é que trabalhava nem um nem o outro, não sabíamos… o que sabíamos é que tínhamos de parar aqui e seguir ali (MT1).

Verifica-se, portanto, que a situação periférica destas comunidades tem influência sobre a forma como se perspectiva a interacção entre as Juntas de Freguesia e os CD, ideia que é defendida também pela presidente do CD de Pitões das Júnias:

Às vezes também é preciso que as pessoas se entendam, e por vezes nestes meios acaba por haver rivalidades e [é uma] estupidez porque ao fim e ao cabo perdemos todos. Mas se se entenderem [...] obviamente o CD auxilia a Junta em muita coisa... é um único povo não é, ... às vezes não se entendem, porque o que é que acontece? É sempre uma questão de política, sabe? Porque por exemplo, um presidente de Junta perde a Junta, vai e forma logo um CD, não é? (MPi1). Esta questão da repartição dos orçamentos das duas entidades surge muito também porque os termos de utilização dos fundos das medidas agroambientais permitem alguma liberdade de decisão aos gestores, designadamente na forma de distribuição dos valores, desde que estejam asseguradas as metas propostas. Inclusivamente, caso os compartes consigam organizar os trabalhos de forma a sobrar uma parte do fundo, essa pode ser usada conforme a assembleia de compartes decidir. E é aqui que por vezes parece existir alguma pressão por parte da Junta de Freguesia e/ou da comunidade para que o dinheiro seja usado em questões não relacionadas com o baldio, designadamente em obras da igreja ou na beneficiação de muros e caminhos da aldeia, em cerimónias tradicionais, etc.. Em alguns baldios, a pressão é ignorada e os valores são utilizados apenas em benefício do baldio (e.g. limpezas de caminhos, plantações, roça de mato, etc.), por exemplo em Cabreiro,

Eu desse dinheiro das ITI já consegui que me sobrasse para arranjar a estrada e para fazer outras coisas, outras melhorias que precisamos lá no baldio. No povo em si não [investimos], estamos a fazer o melhoramento das estradas do baldio e já estamos a fazer melhoramento para o povo. No interior da aldeia não acho que tenha de ser essa a nossa preocupação, isso tem de ser a preocupação da Junta de Freguesia e da Câmara, não temos de ser nós (AC1).

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Nós desde o início que não fomos muito nessas coisas de tirar o dinheiro do baldio para recuperar a … atenção, não sou contra, mas eu tenho tanto caminho, tanto baldio para preservar, como é que vou retirar esse dinheiro para o cimo da capela? Eh pá!, isso têm a comissão fabriqueira, são eles que têm que a fazer… tantos bebedouros para fazer, tanto caminho para abrir, tanto caminho para limpar, tanto carvalhal para preservar que acho que não faz sentido levar o dinheiro para dentro da aldeia, então está lá a Junta também, a Junta é que tem de fazer esse trabalho. Atenção que não sou contra, eu não sou contra, se alguma coisa é por necessidade e alguém tem dinheiro, eh pá!, que se aplique [...]. Agora eu acho que o dinheiro das ITI é canalizado para o baldio, é empregue nele (MT1).

Enquanto para uns o objectivo dos fundos é taxativo e não há forma de contorná- lo, noutros baldios, pelo contrário, os fundos da Junta de Freguesia e do baldio são indiferenciadamente aplicados, tanto em situações que são responsabilidade directa das autarquias como dos CD. Veja-se o caso de Cela e Sirvoselo,

O dinheiro que sobra... por exemplo, há uma obra que é preciso fazer... se fizer falta ali, vai para ali, o CD não tem limite, onde é que termina, onde é que... os dinheiros podem-se juntar [...], connosco é pacífico, sei que há CD que têm esse problema, e Juntas de Freguesia, mas nós ali naquele caso não... O ano passado pusemos dinheiro para as ruas em Sirvoselo, no mandato em que eu lá estava [na Junta de Freguesia], e temos lá algum dinheiro e quando fizer falta é aplicado, e o da Junta, se fizer falta nos caminhos do baldio também é aplicado, portanto aí não há, não temos guerra (MCS1).

Ou o de Outeiro,

Com esses subsídios a gente paga os ordenados às equipas [de sapadores] e o restante vai sobrando para fazermos uns melhoramentos, estamos aqui a fazer uma casa mortuária com esse dinheiro [...]. Está isto a cair, está este muro a cair e agora quem vai construí-lo? Vai ser o CD, agora em [trabalho] conjunto com a casa mortuária [...] (MO1).

Também em Travassos do Rio, onde o presidente da Junta de Freguesia colabora estreitamente com o presidente do CD, ocupando um lugar na mesa da assembleia de compartes, acontece que:

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[...] esse dinheiro [que sobra das ITI] aplicamos no que é, ou limpeza de estradões, ou recuperação dos tanques dos pontos de água para as vacas beberem, imagine, se há um telhado de uma igreja que está a precisar que lhe demos ajuda… foge um bocadinho ao âmbito do que é a ITI e não é muito correcto, ou mesmo imagine… uma infraestrutura que seja necessária na aldeia [...] (MTR2).

Para este último entrevistado, a organização dos órgãos de gestão dos baldios deveria mesmo atender a outros pressupostos:

[...] Seria a Junta a gerir, em que cada representante da aldeia seria o porta-voz do baldio, o elemento que estivesse na Junta seria ele o porta-voz naquela aldeia [...] o limite do baldio seria o limite da freguesia, em vez de haver 4 baldios haveria um, não haveria baldio… a Junta geria o baldio, haveria só uma acta, que seria a acta da junta e da assembleia, e haveria só uma contabilidade organizada da Junta de Freguesia e passaria tudo pela Junta. Imagine, nós temos 4 aldeias, temos um presidente de Junta e 4 presidentes de baldios… vai chegar a um ponto em que vai haver aldeias que não vão ter representantes para fazer a lista de um baldio, ou então vão pôr a mãe, o pai, o filho [...] (MTR2).

Outra questão que surge neste contexto está ligada ao facto, registado em alguns baldios, de o presidente do CD coincidir com o presidente da Junta e Freguesia. À data das entrevistas, isto acontecia em seis baldios, designadamente em Gondoriz, Gavieira e Cabana Maior no concelho de Arcos de Valdevez, em Pitões das Júnias e Cabril, no concelho de Montalegre, e em Lindoso, no concelho de Ponte da Barca. Regra geral, os compartes afirmam não existir qualquer conflito de interesses entre os dois cargos, uma vez tratar-se de questões diferentes e facilmente dissociáveis. Segundo o presidente do CD e da Junta de Freguesia da Gavieira, a gestão dos baldios deve ser feita

[...] pelos compartes, eu acho que são entidades totalmente diferentes, totalmente diferentes… eu acho que os baldios nunca devem ser entregues à Junta, porque repara… acho que são coisas diferentes, baldio é baldio, e Junta é Junta, cada macaco no seu galho (MGav1).

Efectivamente, em comunidades constituídas por menos de 100 pessoas residentes, como acontece nesta parte do território, não será fácil que existam continuamente listas novas de pessoas com vontade de concorrer para cargos de

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responsabilidade, em que a compensação monetária é fraca (Junta de Freguesia) ou nula (CD). Assim, não é raro, nem muito surpreendente, que a presença destas pessoas, activas e participativas, se repita no tempo e entre diferentes entidades, situação que é realçada por exemplo no seguinte desabafo do presidente do CD do baldio de Tourém:

[...] nem sequer candidatos há… é um problema! Não é pode ser, é um problema! Tomara eu deixar aquilo de uma vez, e quem é que vai para lá? Ele não tem vagar, outro não quer, outro não sabe, outro não pode, e a gente vai andando. Mas é mau, é mau em tudo isso... Porque eu estive 20 anos na Junta e abençoada a hora em que saiu essa coisa da limitação de mandatos porque senão que remédio tinha se não continuar… (MT1).

Apesar disso, alguns compartes pronunciaram-se contra a sobreposição de cargos, chamando a atenção para a emergente “politização” da gestão dos baldios, que poria em causa a integridade e a legitimidade dos CD no desenvolvimento das suas funções. A continuação do discurso da presidente de Cabreiro demonstra-o:

Eu acho que ultimamente tem havido alguma politiquice, porque… sabe que onde cheira a dinheiro é sempre complicado e há sempre aquelas críticas e há sempre aquelas coisas e aí eu vejo que as Câmaras Municipais e vejo que as Juntas de Freguesia gostariam de ter esse poder com elas, mas eu acho que uma coisa não tem nada a ver com a outra, as coisas têm que ser geridas separadamente. Se o baldio tem dinheiro e pode ajudar num caminho rural que ajude! Mas que sejam os compartes a dizer que pode-se ajudar (AC1).

Posição assumida também pela presidente do CD do Soajo,

O problema é que a política é que estraga isto tudo, mas não devia sabe… o problema é que todos os baldios praticamente estão entregues às Juntas de Freguesia, mas não devia [...] têm um CD que é um presidente da Junta, um secretário… nós aqui era o caso… era assim, faziam eleições mas eram eles, e acaba-se por ver isto de forma política, angariar votos, e isso é nojento [...] (AS1).

Ainda assim numa coisa todos parecem concordar: na conveniência, ou mesmo necessidade da existência de uma boa relação entre a Junta de Freguesia e o CD para que a gestão do território possa fluir. Existem realmente alguns casos em que o conflito, normalmente radicado na disputa de posições políticas, distancia as duas entidades, ou

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as pessoas que as lideram, o que desde logo dificulta a colaboração, ficando as possibilidades de acção de ambos os órgãos expectavelmente mais limitadas. Não obstante, a proximidade é tanta entre pessoas e órgãos que os seus estatutos podem confundir-se. A propósito de um projecto recente de índole turística que envolve o Baldio de Cabana Maior e a Câmara Municipal de Arcos de Valdevez, o antigo presidente do CD e da Junta de Freguesia disse-nos:

A freguesia [de Cabana Maior] cede por 20 anos essa área de terreno ao município [...] [P: Ou os compartes?] Os compartes, os compartes, mas os compartes são a freguesia e a freguesia é dos compartes [Risos] (ACm1)

Evidencia-se como o entrevistado confunde a Junta de Freguesia e o CD. De facto, é comum associar os baldios à freguesia ou mesmo ao município, mesmo entre habitantes destas regiões, e neste caso específico, o facto de o entrevistado ter sido responsável tanto pela Junta de Freguesia como pelo CD poderá contribuir para a confusão. Contudo, não são de negligenciar estes indícios, que reflectem a forma como ainda hoje os baldios são percepcionados por parte da população, tanto urbana como serrana, como sendo propriedade da Junta, ou no caso das áreas protegidas, do Estado.

A boa relação entre os CD e as autarquias é de uma forma geral considerada fundamental. No caso da Câmara Municipal, garante um laço de confiança que pode criar oportunidades de futuro, ao nível do estabelecimento e desenvolvimento de projectos. O financiamento ou a parceria em projectos propostos, por exemplo, pela comunidade pode assim ser facilitado entre as entidades (CD e/ou Junta de Freguesia e Câmara Municipal), como ressalta no discurso do presidente do CD de Fafião:

[P: A Câmara também financia algumas coisas que vocês fazem?] Algumas coisas. Eles conhecem perfeitamente o nosso trabalho, sabem como é que nós funcionamos, as coisas não vêm aqui ter por acaso, vêm porque nós fazemos pressão e trabalhamos por elas [...] às vezes eles fazem umas coisas menos bem mas… o que interessa salientar é que nós pedimos ajuda para as mais diversas obras e eles normalmente vão sempre ajudando, dão apoio financeiro e outras vezes em meios, quer seja com uma máquina, quer seja com paralelo, coisas desse género. (MF1).

A um outro nível, uma relação convergente com a Junta de Freguesia surge como veículo para uma gestão dinâmica da área da freguesia. Ou seja, nesta perspectiva

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as duas entidades são complementares, e desde que respeitem as suas áreas de intervenção, a sua interacção pode ampliar os efeitos positivos do trabalho de cada uma, tal como a sua falta pode prejudicar ambas. Em Travassos do Rio diz o presidente da Junta de Freguesia, elemento da AC do baldio,

[...] Há situações em que é, o presidente de Junta é de uma cor política e o presidente do CD é de outra cor política, e depois há ali a ver qual é o que faz a obra, tipo qual é o que… se um faz uma coisa o outro quer… e quem fica a perder é a aldeia. [...]. Por exemplo, eu e o Ti Fernando por acaso, já viu que temos uma boa relação. Imagine que ele tinha uma postura diferente, não conseguíamos fazer nada na aldeia… (MTR2).

Em Tourém defende-se uma ideia semelhante,

[...] os presidentes da Junta deviam fazer parte da direcção do CD, obrigatoriamente, porque há serviços que ficam… há trabalhos que têm de ser feitos com as duas entidades [...] atenção, a junta de freguesia não tem de intervir no CD, é uma parceria… é uma parceria, que é muito diferente… cada macaco no seu galho. Agora como há… há terreno que é dos dois, digamos assim… pá, eu acho que havendo um bom relacionamento que as coisas são facilitadas, se não cada um puxa para o seu lado, as coisas complicam-se obrigatoriamente… não é? Agora, é claro que o CD tem de ser gerido pelo CD dos baldios, a Junta de Freguesia nem sequer tem de interferir (MT1).