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2 A ANÁLISE TEXTUAL DOS DISCURSOS (ATD) E OS POSTULADOS PARA

2.2 ACEPÇÕES SOBRE A RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA E A DELIMITAÇÃO

2.2.2 Assumir a responsabilidade é falar: a perspectiva de Ducrot

Autor de muitas reflexões teóricas no campo da Linguística, a obra de Ducrot (1987) constrói postulados para uma Pragmática Semântica ou Semântica Enunciativa e para uma Teoria Polifônica da Enunciação. Fenômenos importantes foram tratados por ele, por exemplo, a pressuposição, os atos de fala, argumentação e predicação. Este autor é um entre os muitos que contestaram a unicidade do sujeito falante, em uma reação contrária às abordagens estruturalista e gerativista da linguagem. Mas o que nos interessa nesta subseção é somente, para efeito de contextualização, mostrar muito brevemente com que sentido o autor empregou a noção de responsabilidade em meio a suas reflexões sobre a polifonia linguística, conceito retomado e readaptado dos estudos bakhtinianos.

Um enunciado não faz ouvir uma única voz. Ducrot (1987, p. 161) dedica-se a debater sobre este postulado no seu chamado esboço de uma Teoria Polifônica da Enunciação. Conforme o autor, a produção de um enunciado (fragmento de discurso e distinto da frase, que é uma unidade gramatical, léxico-sintática) está ligada à enunciação (acontecimento histórico, constituído pela aparição momentânea do enunciado) e envolve: o produtor físico (o mesmo que ser empírico, o produtor real, a pessoa que fala ou escreve, e dispensada da análise); o locutor (ser do discurso, designado no enunciado como seu autor, por meio de marcas linguísticas, por exemplo, pronomes e verbos em primeira pessoa); o enunciador (aquele que expressa um ponto de vista); os pontos de vista (correspondem à expressão de um enunciador); e os efeitos produzidos pela enunciação (é a ação, aquilo que a fala faz ao ser enunciada).

Nesse conjunto de termos, o discurso situa-se como uma sequência de enunciados e o

texto como “um discurso que se supõe ser objeto de uma única escolha, e cujo fim, por exemplo, já é previsto pelo autor no momento em que redige o começo [...]” (DUCROT,

1987, p. 166). Já sobre o autor do enunciado, Ducrot (1987, p. 169) diz não querer tomar

partido, “se há um autor e qual é ele”. As reflexões feitas não dão destaque a esta noção. Quanto ao sentido, ele diz que “consiste em uma descrição da enunciação” (p. 172), na

medida em que o sujeito falante, por meio de seu enunciado, faz representar a enunciação. Uma das faces dessa representação se dá pela força ilocutória do enunciado, que atribui à sua enunciação determinada ação, ou poder – de responder, se o caso for de pergunta; de agir, se o

caso for de promessa, por exemplo. Eis aqui uma visão pragmática do sentido: “o sujeito

falante realiza atos, mas realiza estes atos transmitindo a um interlocutor um saber – que é um saber sobre sua própria enunciação” (DUCROT, 1987, p. 173). Para o referido autor,

interpretar uma produção linguística consiste, entre outras coisas, em perceber esses atos, identificar sua força ilocutória e seu aspecto argumentativo.

A concepção polifônica do sentido defendida pelo autor institui que “o enunciado

assimila, em sua enunciação, a superposição de diversas vozes” (DUCROT, 1987, p. 172). É exatamente nesse ponto onde reside uma acepção de responsabilidade enunciativa (o ato de ser responsável pelo enunciado), pois, ao defender a tese da não unicidade do sujeito, Ducrot

critica e substitui o pressuposto da evidência de “um ser único autor do enunciado e

responsável pelo que é dito no enunciado” (p. 178). Segundo ele, não há essa unicidade da origem da enunciação. Para compreender essa afirmação, é preciso saber sobre a noção de sujeito.

De acordo com Ducrot (1987), o sujeito apresenta três atributos fundamentais: (i) ser dotado da atividade psico-fisiológica (trabalho muscular, vocal, audível) e da atividade intelectual subjacente (relativa à escolha das palavras, das regras gramaticais, e aos julgamentos emitidos), ambas responsáveis pela produção do enunciado; (ii) “ser o autor, a origem dos atos ilocutórios realizados na produção do enunciado. O sujeito é aquele que

ordena, pergunta, afirma, etc.” (DUCROT, 1987, p. 178); (iii) “ser designado em um enunciado pelas marcas de primeira pessoa” (p. 179), correspondendo ao mesmo que produz o

enunciado e ao que afirma, pergunta, promete etc. Nessas palavras, já observamos uma pista de que o sujeito locutor é a instância que assume o enunciado.

É preciso notar que o próprio Ducrot admite ter antes pensado e defendido a evidência de que, “se há um só produtor do enunciado”, haveria também “uma só pessoa na origem dos

atos ilocutórios realizados através dele” (p. 178). Porém, ele justifica dizendo: “divido ainda

mais que anteriormente a atividade ilocutória em uma pluralidade de elementos pragmáticos

disjuntos” (p. 179). É aí onde se encontra o estatuto polifônico de sua abordagem.

Mais adiante, Ducrot (1987, p. 180-182) assume que o enunciador não é assimilável ao locutor enquanto tal. Por locutores, o autor compreende a “existência, para certos

enunciados, de uma pluralidade de responsáveis, dados como distintos e irredutíveis”. Ele é

ainda mais preciso, afirmando:

Por definição, entende-se por locutor um ser que é, no próprio sentido do enunciado, apresentado como responsável, ou seja, alguém a quem se deve imputar a responsabilidade deste enunciado. É a ele que refere o eu e as outras marcas de primeira pessoa. Mesmo que não se leve em conta, no momento, o discurso relatado direto, ressaltar-se-á que o locutor, designado pelo eu, pode ser distinto do autor empírico do enunciado, seu produtor

mesmo que as duas personagens coincidam habitualmente no discurso oral (DUCROT, 1987, p. 182, grifos nossos).

Pelo que se pode entender, a responsabilidade enunciativa repousa sob a instância do locutor, é a ele a quem se deve atribuir a responsabilidade da ocorrência do enunciado. Ora, se o locutor é quem se diz falar, responsabilizando-se pelas palavras utilizadas, conclui-se que assumir a responsabilidade é falar, é dizer13. Assim, apreendemos que, na visão ducrotiana, ser responsável não é ser o autor real, o escritor, o produtor físico do enunciado, mas ser o locutor, aquele que, designado pelo eu do enunciado, assume pelo que é dito. Se, em alguns contextos, não se pode atribuir a nenhum locutor a responsabilidade, pelo fato de não se identificar as marcas do eu, tem-se o que Ducrot (1987, p. 183), retomando Benveniste (1966 [2005]), chama de enunciados ou enunciações históricas, que não exibem sua origem, nem o autor de sua fala.

Nessa acepção, o autor considera a possibilidade de atribuição da responsabilidade a outro locutor, como ocorre no discurso relatado direto, dado que, neste caso, se acham inscritas duas marcas do eu, dois locutores. Em casos assim, segundo Ducrot (1987, p. 185), cumpre-se, entre outras funções, a de produzir um eco imitativo (A: “Eu não estou bem” – B:

“Eu não estou bem; não pense que você vai me enganar com isso”), representar um discurso

imaginário (“Se alguém me dissesse vou sair, eu lhe responderia...”), constituir-se como o porta-voz de outrem (*Ele me disse: “vou sair”.). Em todos esses casos, ocorre uma apresentação da enunciação como dupla, o que se dá, por exemplo, com os ecos, os diálogos internos, os monólogos, o apagamento do porta-voz em relação à pessoa que ele faz falar.

Para finalizar este ponto sobre o locutor, cabe ainda dizer que Ducrot (1987) faz uma distinção entre o locutor enquanto tal (L) e o locutor enquanto ser do mundo (λ). Ele afirma:

L é o responsável pela enunciação, considerado unicamente enquanto tendo esta propriedade. λ é uma pessoa ‘completa’, que possui, entre outras propriedades, a de ser a origem do enunciado – o que não impede que L e λ sejam seres do discurso, constituídos no sentido do enunciado, e cujo estatuto metodológico é, pois, totalmente diferente daquele do sujeito falante (este último deve-se a uma representação ‘externa’ da fala, estranha àquela que é veiculada pelo enunciado). (DUCROT, 1987, p. 188).

Essa distinção só reforça o entendimento anterior de que L assume o papel de responsável pelo enunciado, é uma instância que pertence ao comentário da enunciação feita

13 Essa mesma compreensão é expressa pela leitura que Rabatel (2009) e Passeggi et al. (2010) fazem a respeito do conceito de responsabilidade em Ducrot (1984 [1987]) como sendo equivalente a falar, dizer.

globalmente pelo sentido, enquanto a λ se atribui à descrição do mundo feita pelas asserções interiores ao sentido (DUCROT, 1987, p. 191).

Até aqui, pode-se dizer que se trata da primeira forma de polifonia segundo a teoria de Ducrot. Falta agora mostrarmos em que sentido o autor emprega o conceito de enunciador e que relação se pode deduzir com o de reponsabilidade enunciativa.

Encaixado no que Ducrot designa como segunda forma de polifonia, mais frequente que a primeira, o enunciador não apresenta as mesmas propriedades do locutor. Um enunciador refere-se a uma posição assumida, um ponto de vista expresso pelo enunciado. Não se trata exatamente de fala, com palavras, uma vez que o enunciador pertence à imagem que o enunciado constrói da enunciação. O autor assim define:

Chamo de ‘enunciadores’ estes seres que são considerados como se expressando através da enunciação, sem que para tanto lhe atribuam palavras precisas; se eles ‘falam’ é somente no sentido em que a enunciação é vista como expressando seu ponto de vista, sua posição, sua atitude, mas não, no sentido material do termo, suas palavras. (DUCROT, 1987, p. 192).

Se aos locutores é atribuída a responsabilidade pelo enunciado, aos enunciadores são atribuídos os atos ilocutórios, ou seja, os atos de afirmar, recusar, perguntar, incitar, desejar, exclamar, obrigar etc. Mas aqui reside um problema tão complexo que não nos cabe resolvê- lo: como a enunciação poderia ser atribuída a um enunciador, se este não se define materialmente, por meio de palavras? Sobre tal questão, a compreensão de Ducrot (1987, p. 192) é que “o enunciador está para o locutor, assim como a personagem está para o autor”. Isso significa que, do mesmo modo como os personagens só existem pela criação do autor, o locutor é quem dá existência ao enunciador, é responsável pelo enunciado e pelos pontos de vista e atitudes nele expressos, ou seja, pelos enunciadores. Um enunciador não é o responsável pelo material linguístico, pelas palavras, e sim o locutor.

Para sintetizar a distinção entre locutor e enunciador, demonstrando a quem recai a responsabilidade pelo enunciado, organizamos uma relação esquemática, a partir do raciocínio esboçado na Teoria Polifônica de Ducrot (1987), que retoma o trabalho de Genette (1972).

Segundo Genette Autor Narrador Centro de perspectiva Segundo Ducrot Sujeito empírico Locutor Enunciador

Este esquema pode ser lido horizontal e verticalmente. Na proposta de Genette, vemos as relações entre o autor da obra (que a imagina e a inventa), o narrador (que relata os fatos e acontecimentos) e o centro de perspectiva (ou pontos de vista sob os quais se relata os acontecimentos). Ducrot (1987) propõe uma linha de raciocínio que pode ser lida verticalmente e, ao mesmo tempo, em paralelo com as noções de Genette, na horizontal. Assim, o sujeito empírico, entendido como produtor efetivo, equivale ao autor do enunciado, que por sua vez se distingue do locutor (equivalente a narrador), o ser do discurso responsável pelas palavras. Já o enunciador aproxima-se à noção de centro de perspectiva (sujeito de consciência), diferindo tanto de quem fala (autor/sujeito falante), como de quem se diz falar (narrador/locutor); trata-se de uma voz, uma posição, uma atitude.

Segundo a tese de Ducrot (1987), o locutor é fonte do enunciado, responsável pela enunciação, porém, como sendo distinto do enunciador, pode não assumir por certas atitudes ou posicionamentos expressos na enunciação. Suas palavras dão prova disso:

O locutor fala no sentido em que o narrador relata, ou seja, ele é dado como a fonte de um discurso. Mas as atitudes expressas neste discurso podem ser atribuídas a enunciadores de que se distancia – como os pontos de vista manifestados na narrativa podem ser sujeitos de consciência estranhos ao narrador. (DUCROT, 1987, p. 196, grifos nossos).

A distinção entre locutor e enunciador é desenvolvida com maior riqueza de detalhes nas reflexões ducrotianas sobre a negação e seus subtipos, por exemplo, a negação polêmica, a ironia, a polaridade ideológica, os atos ilocutórios, a pressuposição, tudo isso inserido nesta mesma obra com a qual dialogamos.

Dessa breve exposição, entendemos que a responsabilidade pelos pontos de vista expressos no enunciado pode se dar a partir de uma dupla atribuição: ao locutor e ao enunciador. Ao locutor, porque, como mostramos, ele é o responsável pela enunciação; ao enunciador, porque nem sempre o locutor assume os posicionamentos colocados em cena por ele mesmo. Pode acontecer, por exemplo, de o locutor atribuir a responsabilidade a um interlocutor, como pode também repugnar o ponto de vista de um enunciador que ele representa. Em todo caso, a figura do locutor, por se fazer falar, é a instância sob a qual recai a responsabilidade enunciativa e é dotada do poder de atribui-la a outro. É assim que se acha vinculada uma acepção de responsabilidade enunciativa nisto que se designou esboço de uma Teoria Polifônica em Ducrot (1987), com viés semântico-pragmático, e dela nos distanciamos em parte, como deve ficar claro nas próximas subseções.