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2 A ANÁLISE TEXTUAL DOS DISCURSOS (ATD) E OS POSTULADOS PARA

2.1 A ATD E SEU OBJETO DE ESTUDO

2.1.2 O contexto de fundação da ATD

Não há uma forma de diálogo mais concreta entre duas teorias ou abordagens teóricas que não se dê por meio da interação de seus objetos de estudo. No domínio da Linguística, texto e discurso sempre reclamaram uma relação, mas duas correntes teóricas, especificamente a Linguística Textual e a Análise de Discurso6, enfrentaram e ainda enfrentam duelos para harmonizar esses dois objetos em um só tipo de análise (se é que podemos atribuir a elas tal intenção), ora mais textual, ora mais discursiva. Esta subseção tenta mostrar alguns pontos dessa problemática, porque, sem dúvida, ela atravessa o contexto de fundação da ATD.

A ATD se define, conforme Adam (2011), como um campo originado da aproximação entre dois domínios teóricos distintos, a LT e a AD, em diálogo com Teorias Enunciativas. Levando em conta que suas categorias de análise advêm desses outros lugares teóricos, entendemos que pelo menos dois conflitos se impõem. O primeiro interroga a singularidade: como definir a especificidade da ATD diante do conjunto de conceitos tomados de empréstimo de outras teorias? Em outras palavras, que tratamento diferenciado se pode atribuir ao conjunto de categorias postas, se elas convocam necessariamente suas teorias ou abordagens teóricas de origem? O segundo coloca à prova a perspectiva central visada: como conciliar categorias do texto e do discurso, em uma única análise, sem acabar priorizando um desses lados ou sem fazer confusão teórica? São questões que não podem ser ignoradas, principalmente a última – é o desafio deste trabalho: analisar uma produção discursiva (acadêmico-científica) sem perder de vista os meios textuais –, mas resolvê-las por completo passa longe de nossos objetivos.

De certo, está claro que a ATD vem se fundar como um quadro teórico elaborado com o compromisso de assumir decididamente a articulação entre texto e discurso no campo dos

estudos linguísticos. Esse “decididamente” muda bastante a rota de investigações no domínio

6 Neste trabalho, a Análise de Discurso (abreviada AD) remete ao tipo de análise praticada por Maingueneau, como forma de distinguir da Análise de discurso de linha francesa (ADF), também comumente abreviada por AD francesa, que tem na figura de Michel Pêcheux o seu principal fundador. Ao nos referirmos a essas duas correntes, abandonamos a expressão “do discurso”, ainda muito frequente, mas o conservamos nos casos de discurso reportado, nas citações em discurso direto.

da LT, porque afinal não se tata mais de consentir que um ou outro autor, segundo sua própria compreensão, assuma essa postura, mas sim todo o quadro teórico. A maneira como a ATD propõe a relação texto/discurso, como veremos mais adiante neste capítulo, constitui, a nosso ver, sua especificidade e ao mesmo tempo sua relevância. Eis um procedimento teórico- metodológico oportuno para um contexto em que tal relação ainda carece de mais debates. Como o próprio Adam (2010) observa, temos ainda, muito ou pouco, um contexto em que, paralelamente, as correntes de análise de discurso e a LT decidem, em suas abordagens, qual desses dois construtos é o foco da análise.

De um lado, temos visto, por exemplo, que, na ADF, embora os corpora sejam de fato textos e isso suponha algum tratamento da relação texto/discurso, o que se faz não é análise textual. É claro que essa relação constitui um princípio assumido pelo analista, assim como o faz ao adotar uma ou outra visão de língua e de linguagem, mas não é o texto o objeto de suas observações. A importância do texto no quadro da ADF dá-se em razão de se entendê-lo

como uma forma de materialização dos discursos, o seu corpo, sua estrutura: “é no texto que o discurso se delineia” (POSSENTI, 2009, p. 73-74). Os dois objetos relacionam-se, mas não se

equivalem, porque o mesmo texto pode materializar mais de um discurso. A propósito, Fiorin (2012) deixa bem claro a necessidade de separá-los, quando mostra que, em alguns trabalhos da LT (referindo-se a textos de Guimarães e de Costa Val, da década de 1990), ambos são

tratados equivocadamente como sinônimos. O autor diz que “o texto pressupõe logicamente o discurso, que é, por implicação, anterior a ele”; “é a realização do discurso por meio da manifestação” (p. 148).

Quando Fiorin (2012, p. 162) questiona se a separarão entre texto e discurso é mesmo necessária, sua resposta parece ser sim e a explicação é esta:

[...] porque os procedimentos de discursivização são diversos dos de textualização, porque eles são objetos que têm modos de existência semiótica diversa: um é o domínio da atualização, o outro, do da realização. Um é da ordem da imanência, o outro, da manifestação [...]. Por outro lado, certas relações que se estabelecem entre o texto e o discurso dão uma dimensão sensível ao conteúdo, porque ele não é apenas veiculado no plano da expressão, mas recriado nele.

O fato é que, na ADF, não são os elementos textuais que importam para interpretar os efeitos de sentido produzidos entre interlocutores. O movimento da análise em geral parte da relação entre o discurso (efeitos de sentido produzidos entre interlocutores) e a exterioridade (as condições históricas de produção, a ideologia, a interdiscursividade, as relações de poder etc.), e para isso se utilizam categorias como formação discursiva, interdiscurso, memória

discursiva, entre outras. O analista chega aos efeitos de sentido produzidos no e pelo discurso sem necessariamente explorar o seu aspecto puramente linguístico e textual, isso devido a uma visão de sentido como sendo da ordem da história, da ideologia, do inconsciente, e não derivado dos fatos da língua ou dos elementos coesivos.

No entendimento de Possenti (2009), o texto não foi suficientemente bem tratado na AD (referindo-se à ADF), argumentando que ele ora se cruza com o discurso, ora se separa claramente. O autor afirma que as teorias de texto e de discurso não se equivalem, tampouco se complementam; elas concorrem na explicação dos mesmos fatos, funcionando

paralelamente, sem apresentar um “intercâmbio de debates” (POSSENTI, 2010, p. 26).

Analisando outras observações do autor, concluímos que a AD praticada por Maingueneau (1997, 2008b, entre outros trabalhos) traz um ponto de contato mais sólido entre texto e discurso, especialmente nas suas reflexões sobre o ethos. No livro Gêneses dos discursos, a

chamada semântica global é compreendida como o que “condiciona a intertextualidade interna e externa de cada FD”. Nesse sentido, um dado traço semântico vai comandando “um

modo de coesão dos textos, a predileção por certos gêneros [...]. Nesta obra, o autor entende que o discurso, através do corpo textual, faz encarnar-se o enunciador, dá-lhe corpo” (POSSENTI, 2009, p. 77-78).

De outro lado, o da LT, Marcuschi (2008, p. 58) diz que a distinção texto e discurso “é

hoje cada vez mais complexa, já que em alguns casos são vistas até como intercambiáveis”. Segundo ele, a tendência é ver o texto no plano das formas linguísticas e de sua organização e o discurso no plano do funcionamento enunciativo. Na sua compreensão, ambos são

“maneiras complementares de enfocar a produção linguística em funcionamento” (p. 58),

trata-se de “uma espécie de condicionamento mútuo” (p. 81), portanto não lhe parece interessante distingui-los de maneira rígida. Todavia, ele reconhece que “dar conta do textual (o particular) e do discurso (o universal) não pode ser feito num mesmo movimento teórico”, pois tem-se aí um impasse se o objetivo for “dissipar fronteiras”. O autor parece aderir à

posição de Coutinho (2004), para quem “a melhor forma de articulação para tratar de textos

empíricos seria entre texto, discurso e gênero como ‘categorias descritivas’”. (MARCUSCHI, 2008, p. 83-84, grifo acrescentado).

Ainda no lado da LT, Cavalcante (2009, 2011) demonstra comungar da ideia de que texto e discurso são objetos complementares. Em alguns de seus estudos, percebemos importantes investidas no tratamento discursivo de categorias textuais, por exemplo, quando a

autora assume que a recategorização pode ser abordada “não apenas pelo viés do

também sob o ponto de vista discursivo [...].” (CAVALCANTE, 2011, p. 152), e quando

observa uma ligação entre as estratégias metadiscursivas e os processos de referenciação,

dizendo: “distanciar-se do próprio texto e refletir sobre as denominações mais adequadas para

as entidades dentro de contextos particulares é, para nós, uma estratégia metadiscursiva, por

excelência”7 (CAVALCANTE, 2009, p. 150). Nesse caso, a referenciação é entendida dentro de uma perspectiva sócio-cognitivodiscursiva como um fenômeno relevador do trabalho do sujeito sobre a linguagem no texto/discurso, uma vez que expressa uma atitude metaenunciativa desse sujeito, ao usar de estratégias para representar as coisas do mundo em sua volta, nas práticas sociais.

Diante dessa problemática, não é sem razão que precisamos deixar claro quais são as fronteiras e limites da ATD, daí o fato de examinarmos o seu contexto de fundação. Logo adiante, veremos que a ATD, ao se inserir no campo mais vasto da AD, vem trazer o que faltava a uma teoria do texto: um tratamento discursivo de suas categorias, mas sem desvencilhar-se do material linguístico que concerne à estrutura textual. Ela traz uma aproximação mais estreita com o social, o histórico, o interdiscurso, enfim, com o caráter dialógico e ideológico da linguagem, com os gêneros, e inclusive com uma visão de sujeito descentrado (que não está na fonte do dizer, nem é autoconsciente). Sendo assim, mais do que nunca estamos diante de um momento em que texto e discurso se encaminham para uma conciliação dentro de uma mesma abordagem linguística, com metodologia e categorias de análise precisas.

Logo nas páginas iniciais da obra fundadora da ATD, Adam (2011) convoca a voz de Coseriu (1994)8 para distinguir a LT da gramática transfrasal (esta entendida como uma

extensão da Linguística clássica): “a linguística textual é, em contrapartida, uma teoria da

produção co(n)textual de sentido, que deve fundar-se na análise de textos concretos.” (p. 23). Em seguida, o autor afirma que a esse procedimento denominará como Análise Textual dos Discursos. Vê-se, então, que algumas características da ATD são as mesmas já atribuídas à LT. Essa observação também foi feita por Passeggi et al. (2010), em artigo que apresenta a ATD como uma abordagem teórica e descritiva do campo da LT.

7 Importante dizer que autora reconhece, e demonstra com dados, que nem todo uso de expressão referencial é metadiscursivo.

8 Neste texto, toda vez que o recurso ao itálico destacar algumas obras citadas por Adam (2011) ou por outro autor (configurando os casos de citação de citação ou apud), significa que não as consultamos diretamente (pelo menos, não nas edições escritas em francês ou em outra língua estrangeira). Mas isso não ocorre com todas, pois em alguns momentos foi necessário recorrermos às fontes originais. Quando não há o itálico, a obra citada e consultada por nós consta nas nossas referências bibliográficas.

Algumas características da obra são ressaltadas pelos organizadores da edição traduzida para o português e valem a pena serem relatadas aqui, quais sejam: é uma obra que apresenta um quadro teórico-metodológico fundamentado em análises empíricas em quantidade significativa; resulta do trabalho de um pesquisador especialista na temática, após uma vasta experiência em pesquisas sobre o texto e o discurso; traz uma abordagem mais abrangente para o estudo do texto, a partir da proposição de uma lista de categorias descritivas que permitem analisá-los de modo articulado com o discurso; propõe uma separação e ao mesmo tempo uma complementaridade das tarefas da LT e da AD; insere a LT no quadro mais vasto da análise das práticas discursivas, na medida em que situa esse tipo de relacionamento entre os dois campos (LT e AD).

A esse conjunto de características, acrescenta-se ainda o afastamento da ATD em relação à análise centrada no alcance da frase. Para mostrar os limites e a superação desse tipo de análise, Adam aponta os estudos de Jakobson (1963; 1973), Bakhtin (1978), Labov (1978), Halliday e Hasan (1976) e Coseriu (1994), autores que já haviam apresentado, para os estudos linguísticos, direcionamentos bem distintos daqueles empreendidos pela Linguística estruturalista, passando então a levar em conta uma série de fatores de natureza social, como os contextos de uso da língua, os sujeitos envolvidos, a heterogeneidade das comunidades de fala, e muitos outros.

Todas essas características da ATD, como nos fazem entender os organizadores do livro, permitem-nos deduzir consequências decisivas para a teorização do texto e de suas operações de textualização, para a metodologia da pesquisa nesta área, bem como para os relacionamentos entre a LT e a AD. Além disso, o conjunto de categorias descritivas elencadas na ATD comporta uma dimensão teórico-prática que atesta um forte diálogo entre a LT e outras teorias, como já mostramos na seção 2.1.1 deste trabalho.

Na verdade, Adam (2011) não é o primeiro autor a utilizar o termo análise textual9, nem o primeiro a enxergar alguma relação entre o nível da língua e o nível do discurso. No primeiro caso, ele mesmo reconhece que o termo já foi empregado por outros autores, por exemplo, Barthes (1972; 1973), Riffaterre (1979), Plett (1975) e Titzmann (1977), Gardès- Madray e Lafont (1976), ao que propõe substituir por análise textual dos discursos. No segundo caso, Adam faz uma retomada a Saussure (1967; 2002) e a Benveniste (1966; 1974),

9 No contexto brasileiro, há também vários livros em cujo título aparece o texto análise textual, entre os quais podemos citar a edição traduzida e organizada por Rodrigues, Silva Neto e Passeggi (2010): “Análises textuais e discursivas: metodologia e aplicações”, de Jean-Michel Adam, Dominique Maingueneau e Ute Heidmann.

para dizer que a reflexão empreendida por esses autores já preconizava qual o lugar do discurso nos fatos da língua.

Em relação a Saussure, Adam diz que algumas notas dos seus Escritos de Linguística Geral postulam uma definição de discurso como entrelaçamento de constituintes linguísticos revestidos de forma (significante) e de sentido (significado). Dada a visão dicotômica saussuriana que ficou conhecida no seu Curso de Linguística Geral (CLG), o discurso estaria situado nos fatos da fala, isso porque o autor estabelece dois domínios da linguagem claramente distintos: a língua e a fala, em cuja fronteira estaria a frase, entendida como

“unidade de composição-sintagmatização” que “pertence à língua em sua dimensão

sintagmática e à fala em sua dimensão discursiva”. Mesmo considerando o discurso, o Saussure do CLG10 teria privilegido como preocupação central “abstrair o sistema da língua a partir dos fatos do discurso” (ADAM, 2011, p. 34).

Já em relação a Benveniste, há uma aproximação com os postulados saussurianos por conceber que o discurso se atualiza em frases, servindo para formar e configurar a língua. Mas, ao mesmo tempo, há um afastamento, dado que o autor institui uma divisão entre dois domínios da língua, o semiótico e o semântico, bem diferentes daqueles referidos por Saussure. Para o domínio semântico, Benveniste (1974) diz ser necessário um aparelho de conceitos e definições, entre os quais está a frase como sendo a unidade da comunicação humana situada no nível do discurso, ou seja, como um segmento de discurso.

Adam (2010, 2011) afirma que, embora a AD e a LT tenham emergido praticamente no mesmo marco histórico, datando da década de 1950, momento em que a análise empreendida na Linguística vivenciava a passagem da frase para o texto, ambas divergem no que toca, sobretudo, à origem epistemológica e à história de cada uma. Da separação e complementaridade das tarefas dessas duas correntes teóricas, funda-se, pois, a ATD: uma teoria de conjunto “com o objetivo de pensar o texto e o discurso em novas categorias”. (p. 24).

Em outro momento da obra, o autor diz: “é sobre novas bases que propomos, hoje,

articular uma linguística textual desvencilhada da gramática de texto e uma análise de

discurso emancipada da análise de discurso francesa (ADF)” (p. 43). Dessa forma, ele declara

um afastamento em relação à ADF e uma aproximação com a AD praticada por Maingueneau (1991; 1995), assentando a ATD como um subdomínio deste campo considerado mais amplo.

10 Com a publicação de “Escritos de Linguítica Geral”, redescobre-se um outro Saussure, preocupado com a dimensão discursiva da língua/linguagem: “ele também se questionou sobre ‘o que separa’ a língua propriamente dita do ‘discursivo’” (ADAM, 2011, p. 29).

O autor explicita a necessidade desta nova teoria nas seguintes palavras, quando se refere ao texto; diz ele:

O texto é, certamente, um objeto empírico tão complexo que sua descrição poderia justificar o recurso a diferentes teorias, mas é de uma teoria desse objeto e de suas relações com o domínio mais vasto do discurso em geral que temos necessidade, para dar aos empréstimos eventuais de conceitos das diferentes ciências da linguagem, um novo quadro e uma indispensável coerência. (ADAM, 2011, p. 25).

Ao argumentar que a natureza do texto justifica a necessidade e, portanto, a elaboração de uma teoria desse objeto, no caso a ATD, Adam propõe também uma articulação entre texto, discurso e gênero, trazendo inúmeras possibilidades de análise de suas relações, de seus sentidos, nos diferentes níveis discursivos e em diferentes gêneros. Já a textualidade é

concebida por ele como o “conjunto de operações que levam um sujeito a considerar, na

produção e/ou na leitura/audição, que uma sucessão de enunciados forma um todo

significante” (ADAM, 2011, p. 25). Nesses termos, para o autor, a ATD teria, assim como a

LT, o papel de descrever e definir diferentes unidades textuais, e também as operações, as mais complexas que sejam, realizadas sobre os enunciados. Para essa grande empreitada, ele convoca o diálogo com as Teorias Enunciativas, como já mostramos.