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2 A ANÁLISE TEXTUAL DOS DISCURSOS (ATD) E OS POSTULADOS PARA

2.2 ACEPÇÕES SOBRE A RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA E A DELIMITAÇÃO

2.2.1 Para abrir o diálogo: conceitos que atestam a descentralidade do dizer

No campo dos estudos linguísticos, em particular nas abordagens discursiva e enunciativa, vários conceitos teóricos contestam o princípio da unicidade do sujeito e do seu dizer e recobrem a investigação do caráter dialógico da linguagem, por exemplo: polifonia, dialogismo, heterogeneidade enunciativa, interdiscurso. Esses conceitos, mesmo advindos de lugares teóricos distintos, têm em comum o fato de serem caros a uma análise dos textos/discursos/enunciados/gêneros, reconhecendo-se as relações com elos precedentes.

Os termos polifonia e dialogismo figuram na obra de Bakhtin e do Círculo, em reflexões sobre os textos literários. Aqui em particular, tomamos como base a segunda parte de Estética da criação verbal, alguns pressupostos de Marxismo e Filosofia da linguagem, de Discurso na vida e discurso na arte e algumas passagens de Problemas da poética de Dostoievisky. Além disso, não deixamos de examinar e nos apoiar na variedade de trabalhos de estudiosos dos postulados bakhtinianos, como é o caso de Brait (2005), Sobral (2009), Marchezan (2010), Fiorin, (2010), Ponzio (2011), Bezerra (2012), entre outros.

Bakhtin (2011) analisa os vários tipos de diálogo em Dostoiévski e depara-se com um princípio de construção comum:

Em toda parte há certa interseção, consonância ou intermitência de réplicas do diálogo aberto com réplicas do diálogo interior das personagens. Em toda parte certo conjunto de ideias, pensamentos e palavras se realiza em várias vozes desconexas, ecoando a seu modo em cada uma delas. O objeto das intenções do autor não é, de maneira alguma, esse conjunto de ideias em

si como algo neutro e idêntico a si mesmo. Não, o objeto das intenções é precisamente a realização do tema em muitas e diferentes vozes, a multiplicidade essencial e, por assim dizer, inalienável de vozes e a sua diversidade. (BAKHTIN, 2011, p. 199, grifos no texto original).

É a essa multiplicidade de vozes no enunciado e a interação entre elas que se denomina polifonia. Esta noção foi retomada pela Semântica Enunciativa, situando-a em uma perspectiva que coloca o sujeito falante não mais como tendo uma unicidade, uma vez que se identifica, no nível linguístico, a inscrição de várias vozes que falam simultaneamente, sem o predomínio de uma sobre a outra, ou sem que uma julgue a outra. Isso é possível porque, em um sentido carnavalesco, o autor pode assumir máscaras diferentes no enunciado (DUCROT, 1987), justamente pela realização do tema em muitas e diferentes vozes, mas sem que estas se mostrem presas ou idênticas à consciência do autor.

De acordo com Bezerra (2012), nas reflexões bakhtinianas sobre o romance, polifonia e dialogismo opõem-se ao monologismo. Neste, todo o processo de criação concentra-se no

próprio autor, que “é o único centro irradiador da consciência das vozes, imagens e pontos de

vista do romance. [...] O modelo monológico não admite a existência da consciência responsiva e isônoma do outro; para ele não existe o ‘eu’ isônomo do outro, o ‘tu’.” (BEZERRA, 2012, p. 192). Esse modelo associa-se ao autoritarismo, ao acabamento e à indiscutibilidade; as personagens de um romance monológico não têm consciência de si, pois são escravas da consciência do autor.

De maneira diferente, a polifonia relaciona-se com a realidade em formação, com a inconclusibilidade, o não acabamento, o dialogismo. Bezerra (2012, p. 193-194) diz ainda que

“no enfoque polifônico, a autoconsciência da personagem é o traço dominante na construção

de sua imagem [...]. O que caracteriza a polifonia é a posição do autor como regente do

grande coro de vozes que participam do processo dialógico”. Na relação entre polifonia e

dialogismo, este é um termo mais abrangente, recobre o princípio constitutivo ao enunciado como base da comunicação discursiva e diz respeito à interação entre o eu e o outro. O processo dialógico encontra na polifonia sua forma suprema de materialização.

Em Bakhtin/Volochínov (2006, p. 127), a palavra diálogo, em sentido estrito, é

concebida como “uma forma clássica da comunicação verbal”, é uma das formas mais importantes, inclusive. O autor afirma: “mas pode-se compreender a palavra ‘diálogo’ num

sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja”. Daí o reconhecimento do caráter

dialógico da linguagem em geral. Como disse Marchezan (2010, p. 117), “o entendimento de

que qualquer desempenho verbal é constituído numa relação, numa alternância de vozes”. É considerando o conceito de diálogo em sentido amplo que se pode falar de relações dialógicas e de dialogismo. Segundo Bakhtin (2011), as relações dialógicas – isto é, relações entre os enunciados, relações dos enunciados com a realidade e com a pessoa falante (o autor) – não podem existir onde não há palavra, pois elas pressupõem linguagem. Como tais, não são da ordem do sistema da língua, mas sim da ordem da comunicação discursiva. Para dizermos com as palavras do autor, “dois enunciados, quaisquer que sejam, se confrontados em um plano de sentido (não como objeto e não como exemplos linguísticos), acabam em

relação dialógica”, ainda que se achem distantes no tempo e no espaço (BAKHTIN, 2011, p.

324). O autor afirma que “a relação com o sentido é sempre dialógica. A própria compreensão

é dialógica”. (p. 327).

Marchezan (2010, p. 122-123) diz que o conceito bakhtiniano de diálogo caracteriza o

sujeito falante “como ‘sujeito do apelo’, da consciência dialogizada, constituída com a voz do

outro e, assim, marcadamente social. A identidade do sujeito se processa por meio da

linguagem, na relação com a alteridade. Tal é a importância da linguagem”. A autora ressalta que o diálogo não se limita a consenso: “ao contrário, é bem entendida, no contexto bakhtiniano, como reação do eu ao outro, como ‘reação da palavra à palavra de outrem’, como ponto de tensão entre o eu e o outro, entre círculos de valores, entre forças sociais”

(grifos no texto-fonte). Ponzio (2011, p. 09) corrobora esse entendimento, quando afirma que

as relações dialógicas podem ser: “relações de consenso e de dissenso, de afirmação ou esclarecimento, de pergunta ou de resposta, etc. [...]”. Entende-se, assim, que a relação

dialógica ente dois enunciados pode ser de alternância, de complementaridade, mas também de contradição, de tensão.

O fundamento principal do dialogismo é o de que a palavra, e qualquer outro signo, é

interindividual. “Tudo o que é dito, o que é expresso se encontra fora da ‘alma’ do falante, não pertence apenas a ele” (BAKHTIN, 2011, pp. 327-328). No contexto bakhtiniano e do

Círculo, dizer que a palavra situa-se fora da alma do falante significa que sua morada não é a mente, ou a consciência (psicológica) de qualquer indivíduo, mas sim o grupo social, afinal a

própria consciência individual é um fato socioideológico, de tal modo que, se for privada “de seu conteúdo semiótico e ideológico, não sobra nada” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006, p.

Várias passagens dos escritos bakhtinianos e do Círculo deixam evidente a orientação social constitutiva do enunciado e a consequente compreensão dialógica da linguagem, entre as quais registramos algumas:

Uma enunciação concreta (e não uma abstração linguística) nasce, vive e morre no processo da interação social e dos participantes da enunciação. (VOLOCHÍNOV/BAKHTIN, 2011, p. 165).

Todo enunciado é um elo na cadeia da comunicação discursiva. É a posição ativa do falante nesse ou naquele campo do objeto e do sentido. (BAKHTIN, 2011, p. 289).

Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006, p. 117).

Pois todo discurso concreto (enunciação) encontra aquele objeto para o qual está voltado sempre, por assim dizer, já desacreditado, contestado, avaliado, envolvido por sua névoa escura ou, pelo contrário, iluminado pelos discursos de outrem que já falaram sobre ele. O objeto está amarrado e penetrado por idéias gerais, por pontos de vista, por apreciações de outros e por entonações. Orientado para o seu objeto, o discurso penetra neste meio dialogicamente perturbado e tenso de discursos de outrem, de julgamentos e de entonações [...]. (BAKHTIN, 2002, p. 86).

No primeiro trecho, retirado do ensaio Discurso na vida e discurso na arte, considerado basilar do pensamento bakhtiniano para a fundação de uma teoria da enunciação (cf. FRANCELINO & LEITE, 2012), observa-se o princípio da interação social que acompanha toda a obra do Círculo e influencia decisivamente as correntes linguísticas pós década de 1960, inclusive a LT. Em todos os outros trechos, podemos atestar isto que Sobral

(2009, p. 33) afirma: “o conceito de dialogismo, vinculado indissoluvelmente com o de

interação, é assim a base do processo de produção dos discursos e, o que é mais importante,

da própria linguagem [...]”.

Em resumo, a perspectiva interacional/dialógica da linguagem mostra-se presente nos escritos bakhtinianos e do Círculo, nos dando prova de que o enunciado relaciona-se com a realidade extraverbal, com enunciados de outrem e dirige-se a alguém, que, por sua vez, é sempre capaz de interpretar, responder e tomar uma posição de maneira ativa, manifestando uma avaliação social, isto é, “o julgamento da situação que interfere diretamente na organização do enunciado e que, justamente por isso, deixa no produto enunciado as marcas

do processo de enunciação” (BRAIT, 2005). Advém desses escritos o destaque para se atestar “o quanto o discurso do ‘eu’ é sempre marcado pela ‘voz do outro’ em uma dupla relação de interação verbal: o que faz com que ‘nossas’ palavras não sejam neutras ou intactas, mas

‘habitadas pela voz dos outros’ que fala, pois, inevitavelmente, por nossas bocas [...]”

(AUTHIER-REVUZ, 1998, p. 122, grifos da autora).

Exatamente por se tratar de uma orientação natural a qualquer discurso vivo, o princípio do dialogismo respalda diversas abordagens linguísticas que tomam o texto, ou o discurso, ou o enunciado como objeto de análise e procuram se afastar de descrição formalista e imanente da língua. Assim, por exemplo, há bastante tempo a LT lida com esse princípio, ao empregar, até hoje, a noção de intertextualidade, trazido do trabalho de Kristeva (1967), em suas interpretações da obra bakhtiniana (cf. FIORIN, 2010). Na ADF, especialmente na terceira fase de sua evolução, predomina o conceito de interdiscurso, entendendo que um discurso supõe um já dito, ou pré-construído, dada a interpelação ideológica dos sujeitos às formações discursivas. No quadro mais amplo de AD praticado por Maingueneau, o autor fala de um primado do interdiscurso, para tratar das relações estabelecidas entre o discurso (o Mesmo) e o seu Outro, no interior de um campo discursivo.

Maingueneau (2008b), dizendo situar-se em um quadro metodológico mais restrito e preciso do dialogismo e da heterogeneidade constitutiva, propõe a substituição do termo interdiscurso pela seguinte tríade: universo discursivo (de grande amplitude, abarca todas as formações discursivas existentes em uma conjuntura social), campo discursivo (reúne um conjunto de formações discursivas em concorrência – confronto ou aliança) e espaço discursivo (diz respeito ao subconjunto de formações discursivas, que podem ser separadas pelo analista, conforme seu julgamento). Considerando o espaço discursivo, o Outro

constitutivo a todo discurso “não é nem um fragmento localizável, uma citação, nem uma

entidade externa; [...]. Ele se encontra na raiz de um Mesmo sempre já descentrado em relação a si próprio” (p. 36-37). É o que descentra um discurso e o que sistematicamente lhe falta. O Outro se coloca como necessário para que o discurso construa sua identidade, sendo o seu interdito, o dizível faltoso.

No entendimento de Fiorin (2010, p. 181), seria possível compreender distintamente interdiscursividade e intertextualidade. O autor afirma que este último é também um termo considerado bakhtiniano, segundo as leituras da obra de Bakhtin por Kristeva, porém é mais

restrito que o primeiro: “fica reservado apenas para os casos em que a relação discursiva é

materializada em textos. Isso significa que a intertextualidade pressupõe sempre uma

interdiscursividade, mas que o contrário não é verdadeiro”. Mesmo assim, não se pode

afirmar, segundo ele, que toda relação dialógica mostrada no texto seja uma relação intertextual. De todo modo, a intertextualidade insere-se no princípio mais amplo das relações dialógicas, podendo se apresentar de duas formas: relações dialógicas entre textos (quando a

relação se estabelece com outro texto já constituído anteriormente, portanto fora do texto atual) e relações dialógicas dentro do texto (ou intratextuais, em que as vozes são inscritas no interior de um mesmo texto).

Para finalizar esta seção, falemos da heterogeneidade enunciativa como mais uma demonstração da descentralidade do dizer, desta vez situada nas considerações de Authier- Revuz (1998, 2004) no campo enunciativo. Esse conceito representa um posicionamento que reconhece a enunciação como o lugar de uma inevitável heterogeneidade, de uma incompletude. Aí está também uma visão de sujeito dividido, clivado, não coincidente

consigo mesmo, ele “fala sem o saber de um outro lugar”, e isso o destitui do domínio do seu

dizer e do sentido de suas palavras, da sua posição de mestre, ainda que permaneça, para ele, a ilusão do centro. É um sujeito que assegura a ilusão do UM, mas funcionando como não-um (AUTHIER-REVUZ, 1998, p. 187-188).

A autora divide a dimensão do heterogêneo em dois planos: o dos fatos observados, que são as formas de heterogeneidade mostrada, e o da condição de existência de todo fato enunciativo, a heterogeneidade constitutiva. Enquanto o primeiro está para a dimensão estrutural do verbal, por meio de uma dupla forma de mostração (marcada ou não marcada) do heterogêneo no fio do discurso, o segundo está para a relação constitutiva que o sujeito tem com o um a mais – neste segundo plano, são as determinações históricas, o interdiscurso e o inconsciente afetando o sujeito, o discurso e o sentido. Em outras palavras, os dois planos são

designados como “alteridade representada por formas observáveis na linguagem” e o da “alteridade constitutiva, apontando para a relação com o outro que o dizer produz”

(AUTHIER-REVUZ, 2011, p. 6).

Em outro trabalho que discute alteridade, dialogismo e polifonia, a autora situa a

heterogeneidade em dois eixos: interlocutivo (“o falar em função do interlocutor a quem se dirige o dizer” – retomado de Bakhtin) e interdiscursivo (“o falar em função do meio do já- dito no qual se fala” – retomado de Pêcheux). Ambos relacionam-se aos dois planos já

mencionados, o representado e o constitutivo. A heterogeneidade interdiscursiva remete a uma anterioridade em todo dizer, é a lei da linguagem, uma condição de existência do dizer e do sentido, e pode ser explícito ou não no fio discursivo. (AUTHIER-REVUZ, 2011, p. 8-10). Já a heterogeneidade mostrada, ou representada, se materializa a partir de uma variedade de formas (por exemplo, o discurso direto, discurso indireto, direto livre, indireto livre, aspas, itálico) e diz respeito à relação interativa, uma negociação do sujeito enunciador com o outro. A autora mostra que os dois planos são distintos e solidários ao mesmo tempo, segundo a tese

de que há, “por trás da interlocução, representada, o interdiscurso” e “por trás de todo

interdiscurso representado, o endereço interlocutivo” (p. 10-12).

A heterogeneidade enunciativa também se manifesta por meio da metaenunciação, em que o dizer se representa reflexivamente, figurando quatro espaços de não-coincidências materializados na superfície do dizer, como um esforço do sujeito querendo controlá-lo:

(a) não-coincidência interlocutiva entre dois co-enunciadores, nos retornos em que o tu é explicitamente convocado [...];

(b) não-coincidência do discurso consigo mesmo, nos retornos que, em X, encena o jogo de um discurso outro [...];

(c) não-coincidência entre as palavras e as coisas, em retornos que evocam a questão da nomeação, da ‘propriedade’, da ‘adequação’ [...];

(d) não-coincidência das palavras consigo mesmas, em glosas que fazem jogar em X outros sentidos, as outras palavras da polissemia, da homonímia, dos trocadilhos [...]. (AUTHIER-REVUZ, 1998, p. 189-190).

Os quatro espaços de não-coincidências são constitutivos ao discurso e dão prova da opacidade, da não-transparência da linguagem. Nós voltaremos a eles, com descrições mais pontuais de cada um, na seção que discute as categorias da responsabilidade enunciativa, em particular a categoria 07, relativa aos fenômenos de modalização autonímica.

Todos os conceitos apresentados aqui, respeitadas as suas filiações teórico- epistemológicas e os objetos que examinam, afinam-se quanto a terem em conta a exterioridade para a análise das produções verbais. Por exemplo, as vozes que falam no enunciado (polifonia), a comunicação social, a ideologia, outros enunciados, o outro que fala antes, o outro a quem o enunciado se dirige (dialogismo bakhtiniano); os sujeitos descentralizados, outros discursos, o Outro do inconsciente, as condições históricas de produção e de recepção (interdiscurso e heterogeneidade enunciativa). E mais, apresentam alguma afinidade quanto a refutarem a ideia de um sujeito e de um sentido uno, transparente, homogêneo. Têm-se aí diferentes formas de conceber a heterogeneidade própria ao discurso, aos sujeitos e, portanto, à produção social dos sentidos. Ao estudarmos a responsabilidade enunciativa, enxergamos a polifonia, o dialogismo e a heterogeneidade enunciativa (interlocutiva/interdiscursiva, representada/constitutiva) como noções infiltradas entre suas categorias e marcas, sobretudo das que foram selecionadas para análise do corpus deste trabalho12. Ao longo das subseções a seguir, ficará evidente como tais relações se estabelecem.

12 Na seção 3.1 do capítulo metodológico, o leitor pode acompanhar o raciocínio que nos conduziu à seleção prévia de categorias da responsabilidade enunciativa.