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Considerar a família como eixo central da atenção nos casos de violência doméstica não é um paradigma inteiramente novo; contudo, seu foco estava mais centrado na ótica da responsabilização familiar sobre as situações de violência. Recen-temente, a família vem obtendo papel mais destacado, discutin-do-se não apenas sua responsabilização sobre a forma de cuidado oferecido à sua prole, mas principalmente sob o prisma do estí-mulo ao seu potencial como cuidadora, baseando-se em estratégi-as de promoção de “ambientes familiares saudáveis”, influencia-das pelo campo da promoção em saúde.

O atendimento à família já está respaldado no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, Lei Federal 8069/90, que se apóia em três eixos articulados entre si, formando o Sistema de Atendi-mento e Garantia de Direitos. 1) Eixo de Promoção: responsável pela deliberação e formulação da Política de Atendimento (Conse-lhos Nacional, Estaduais e Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente e Conselhos Setoriais como os de Educação, Assis-tência Social e outros); 2) Eixo de Controle: vigilância dos preceitos legais (sociedade civil articulada em fóruns, frentes, pactos e ONGs de estudo e pesquisa): 3) Eixo de Defesa: responsabilização do Estado, da sociedade e da família pelo não atendimento ou viola-ção dos direitos da criança e do adolescente (Conselhos Tutelares, Ministério Público, Varas da Infância e Juventude).

No Brasil, a partir de 2001, o Ministério da Saúde apresenta ao país sua Política Nacional de Redução de Morbimortalidade por Acidentes e Violências. Nesse documento se reconhece que “na infância o ambiente doméstico é o principal local onde são

gera-dos esses agravos” (p.19). O texto invoca e ratifica as propostas do Estatuto da Criança e do Adolescente ao afirmar que cabe “aos setores de saúde e de educação a notificação e a prevenção destes casos; à saúde cabe, especificamente, o atendimento psicossocial e médico” (p.19). As diretrizes desta política são as seguintes: promoção e adoção de comportamentos e de ambien-tes seguros e saudáveis; monitorização de ocorrência de aciden-tes e violências; ampliação do atendimento pré-hospitalar; assis-tência interdisciplinar e intersetorial às vítimas; estruturação e consolidação de atendimento para recuperação e reabilitação; capacitação de recursos humanos; apoio e desenvolvimento de estudos e pesquisas.

Contudo, o processo de implementação da Política Nacional não tem sido ainda capaz de inspirar a criação de políticas setoriais de atendimento e de prevenção à violência familiar para a totalida-de dos estados brasileiros, embora alguns municípios, por meio dos seus Conselhos de Direitos, tenham começado a criar políti-cas estratégipolíti-cas de investimento na área (como Rio de Janeiro e Recife).

No que se refere à plena implantação do Sistema de Garanti-as, há, ainda, uma lista considerável de problemas a serem supe-rados, a exemplo de: a) oferta e a continuidade das ações de sensibilização e capacitação dos profissionais da saúde, da edu-cação, da segurança pública e dos demais atores desse Sistema, tais como Conselhos Tutelares, membros de ONGs de atendimen-to e defesa dos direiatendimen-tos, entre outros; b) criação de uma dinâmica de notificação que dê suporte institucional tanto ao profissional ou agentes que notificam quanto às famílias e suas necessida-des; c) melhoria da comunicação ente Conselhos Tutelares e ser-viços que notificam.

Uma reflexão sobre o atendimento feita por Faleiros e cola-boradores (www.cecria.org.br/pub/pub.htm) aponta três eixos fun-damentais para a atenção ao abuso sexual, que pode ser visto como representativo para a violência familiar em geral: eixo do atendimento, eixo da responsabilização do agressor e eixo da de-fesa. O primeiro eixo se refere a diferentes instituições que

execu-tam as políticas sociais. No segundo eixo, encontram-se articula-dos vários níveis articula-dos campos do Direito e da Justiça visando à função de responsabilizar judicialmente os autores de violação de direitos. O terceiro eixo se volta para a garantia dos direitos de todos os implicados na situação de maus-tratos. Os autores ana-lisam que os diferentes fluxos do circuito são descontínuos, len-tos e de insuficiente resolubilidade e que o sucesso de um atendi-mento depende mais do profissional do que de uma política institucional.

Os profissionais que atendem essas crianças/adolescentes e seus familiares muitas vezes se vêem isolados em suas tomadas de decisões, atuando de forma não integrada a redes e a outros agentes da área ou, ainda, sem maiores referências quanto à me-lhor forma de atuar. As rotinas mais sistemáticas de procedimen-tos, sugeridas por conselhos científicos e pelas próprias secretari-as de saúde só muito recentemente estão sendo incorporadsecretari-as (SBP/FIOCRUZ/MJ, 2001; Brasil, 2002).

Quanto ao tipo de atendimento que se proporciona, além das várias abordagens terapêuticas, há uma demanda crescente de ações que colaborem para a inserção da família em uma rede de solidariedade para que possa, pela socialização de seus proble-mas, buscar formas de superação.

Essa dimensão social se faz necessária e é justificada por estudos clássicos. Em geral, famílias que convivem com a violên-cia se encontram soviolên-cialmente mais isoladas do que as que não apresentam esse padrão de comportamento (Gelles, 1983). As-sim, uma rede de suporte social pode contribuir para que ambien-tes familiares tornem-se menos violentos.

Entretanto, para que o atendimento tenha uma direção que ultrapasse a da clínica (médica, psicológica), é necessário que haja um trabalho de equipe teoricamente e tecnicamente prepara-da com uma aborprepara-dagem interdisciplinar e com experiência de re-flexão de sua prática, para que a complexidade da violência famili-ar possa ser, minimamente, compreendida e caminhe num proces-so de superação.

Como mencionado por Carvalho (2002), os serviços de aten-dimento a famílias que conseguem ter uma escuta empática no lugar de uma atenção burocrática, mecânica e fria, conseguem atuar e caminhar na solução dos problemas e/ou na participação dos usuários na busca das soluções. Segundo a autora, esses serviços devem pensar na condução de suas ações acerca dos seguintes princípios: o destaque das dimensões éticas, estéticas e comunicativas; a promoção da auto-estima; a focalização do potencial do grupo familiar e o fortalecimento de vínculos.

Considerando-se os serviços e iniciativas existentes, seja no âmbito da área pública como das ONGs, um item merece reflexão mais aprofundada desses diversos atores: a atenção à família e seus graus de responsabilização. Esse aspecto é geralmente an-corado em dicotomizações do tipo agressor-vítima. Portanto, cons-tituem enormes desafios tomar a família e sua dinâmica como o foco da atenção e como parceira do atendimento; promover um suporte em rede para que essa família possa vir a ser, de fato, a protagonista qualificada dos cuidados da criança e adolescente.

É importante que a ação profissional não se limite a identifi-car quem executa a violência, com base na crença de que tratar individualmente o agressor ou os agressores é a única intervenção necessária. Tomamos como hipótese que essa ação poderá ser mais eficiente se for mais ampliada. Dentro dessa perspectiva, os nexos entre as formas de violência e as relações entre os diversos papéis que os diferentes membros da família ocupam devem ser desvelados e desconstruídos. A sobreposição de ocorrências e fatores de risco presentes nas situações de violências familiares indica a necessidade de se caminhar para uma abordagem mais integrada, fugindo do reducionismo de se enxergar apenas a especificidade de um tipo de maus-tratos (Slep & Heyman, 2001). A reincidência da agressão também é um desafio para os serviços e programas de atendimento à violência familiar. Segun-do um estuSegun-do (Terling, 1999) desenvolviSegun-do num serviço de prote-ção à infância, 37% das crianças atendidas voltam ao serviço para novo atendimento. Em geral, o reingresso no serviço revela casos de negligência associada a pais com problemas de abuso de

subs-tâncias, limitação de competência e uma falta de qualidade de apoio social.

O autor aponta para a necessidade de pesquisas que correlacionem os fatores de risco que contribuem para a reinci-dência. Tais pesquisas tanto podem ajudar na decisão do encerra-mento do atendiencerra-mento como também podem oferecer evidência indireta sobre as áreas onde as intervenções alcançam menos su-cesso, indicando sugestões para futuros estudos sobre as defici-ências dos serviços de atenção. Nesse sentido, as pesquisas so-bre violência contra crianças e adolescentes precisam caminhar não só na direção de identificar as relações violentas entre famili-ares, mas também avaliar se políticas e práticas de proteção estão sendo efetivas.

A qualidade e padronização dos registros de atendimento são outros aspectos que merecem a ponderação de estudiosos e téc-nicos. A melhoria desses registros, além de garantir a comparabilidade, pode representar um mapa para elaboração de medidas preventivas à violência familiar.

Por último, observa-se que o sucesso de atendimento não se esgota num serviço ou num conjunto disperso deles. Diante da complexidade da violência familiar, os profissionais, como técni-cos e cidadãos, sabem que é preciso caminhar para a constituição de uma rede integrada que atue não só junto à interrupção da violência, mas também seja capaz de se voltar para ações que trabalhem na direção de transformação de estruturas sociais que causam ou potencializam a violência. Esse processo começa pelo enfrentamento das normas e valores que legitimam a violência, passando pela participação dos conselhos que fazem parte do Sistema de Garantia de Direitos e pela implementação de leis que protejam as pessoas, até chegar à redução das desigualdades eco-nômicas e socioculturais.

Horizontes e ferramentas para a