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De acordo com Michel Petersen, denominaremos de Atitude Narrativa o “conjunto dos julgamentos e tendências que levam o narrador a tomar, tanto no nível da narração que o narra, quanto em relação ao discurso que ele propõe, posicionamentos narrativos”78. Isto quer dizer que, feito um locutor/falante, o narrador seleciona certa unidade discreta em detrimento de ou preferencialmente a uma outra, operando, assim, discriminações dentre os fatos empíricos e textuais que lhe são apresentados. O que não se pretende aqui é divagar sobre as ambigüidades teóricas que comporta a concepção de narrador79. O que se quer mesmo é afirmar que “esta atitude narrativa é dirigida através do contexto semiótico, ou seja, as motivações de uma atitude narrativa não se compreendem senão em função das estratégias gerais da produção de sentido em determinado autor”80.

Quando um narrador nos obriga para que lhe sejamos gratos ou cúmplices, não só pelo que nos diz, mas pelo que deixa de nos dizer, ele se refere a um contexto semiótico no qual a noção de verdade é discutível e, portanto, insustentável. Sabe-se que os narradores de Rubem Fonseca articulam em seus discursos todas as suas impressões sobre o crime e a violência, dispondo-as através de descrições de execuções criminais, pontos de vistas de criminosos dos mais variados tipos, com vigor e brutalidade. Alega- se isso, com base numa concepção de literatura na qual o escritor em si seria aquele que se oporia aos discursos hegemônicos de sua época.

78 PETERSON, Michel. Estética e Política do Romance Contemporâneo. Porto Alegre: UFRGS, 1995, p.

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79 Ver O Narrador. In: Walter Benjamin, Textos Escolhidos. Série Os Pensadores, vol. 48. São Paulo:

Ao contemplarmos a obra de Rubem Fonseca, de 1963 a 2001, constatamos que, partindo de uma atitude recolhida, o narrador foi mudando seu comportamento, conforme mudaram os costumes e a relação com o poder, incorporando modos de agir ora mais objetivados ora menos, tornando-se cada vez mais um lutador com os problemas do cotidiano. Essa mudança poderá ser analisada no decorrer da terceira parte, mas já se antecipa que ela transita entre o psicológico, o atmosférico, o plano da ação, da intelecção, da introspecção, de uma atitude de timidez ao impulso da conquista, da solidão à sedução, do nostálgico ao irônico, da indiferença para a revolta, da inocência para a experiência.

O leitor de Rubem Fonseca se atém, primeiramente, aos acontecimentos da história que estão diante dos olhos, mas se o leitor se detiver com mais paixão ao texto, paixão e razão simultaneamente, perceberá que as atitudes avaliativas de seus narradores são motivadas por contextos semióticos cujas problemáticas gerais são determinadas por tomadas de posição de caráter axiológico e estético. Supõe-se, portanto, que o autor resolve tematizar suas atitudes, grosso modo, para que possamos(ou tentemos) ter subsídios para interpretá-las. Geralmente, o que se depreende das narrativas de Rubem Fonseca é a temática da violência, calcada no ato (ou intenção) de matar. Em seus textos, sempre foi dada uma ênfase peculiar ao mito do assassino, provocando, com isso, toda uma desarticulação de valores e aspectos de cunho moral e ético por parte da massa de leitores e críticos.

Isso equivale a afirmar que a toda atitude narrativa responde uma atitude interpretativa ou atitude de leitura. Nós leitores/intérpretes sempre escolhemos, dentre as possibilidades oferecidas pelo texto mais uma leitura do que outra, dependendo do nosso repertório intelectual e de nossa predisposição emocional, já que fazemos leitura racional e também passional do texto literário. Portanto, a atitude interpretativa consiste

numa soma de julgamentos de valores desse determinado leitor acerca de uma determinada obra, e nunca será uma descrição neutra dos fatos textuais. Então isso nos invoca a pensar em qual seria a nossa(a desta tese) atitude interpretativa em relação à atitude narrativa de autores como Rubem Fonseca e Patrícia Melo. Como trata-se de um somatório de valores, isso prova que só teremos condições de determinar, de forma mais objetiva, qual a nossa atitude interpretativa, após todo o percurso pela obra desses autores, mas mesmo assim já se prevê que essa determinação está longe de uma objetividade, porque várias atitudes narrativas, evidentemente, demandam várias atitudes interpretativas. Como disserta Petersen:

“De início, qualquer descrição é uma soma de enunciados avaliativos. Estes apenas adquirem sua objetividade se a descrição, ao se integrar em uma cadeia de valores que pertence a um sistema de valores, se modular em função do contexto histórico e da cultura em que é executada – visto esse processo não deixar de implicar uma certa dose de violência interpretativa.”

A atitude narrativa, enquanto participa da produção de sentido, está ligada ao que Ross Chambers chamou de violência narrativa, que acusa o caráter arbitrário do ato da narração porque ela é exercida pelo narrador e, portanto, diz respeito à maneira pela qual se impõe uma narração. Seria possível distinguir três tipos de atos narrativos violentos: a violência de substituição, a violência de exclusão e a violência de focalização. Para Chambers81, cada narrador escolheria a forma que melhor respondesse as suas necessidades e que, com maior eficácia, atendesse os seus interesses semióticos. Por isso, todas as narrativas ocultariam ou exporiam todas as formas de violência, pois necessitariam, senão de um narrador, pelo menos de uma instância que regulasse a multiplicidade das vozes e dos discursos.

A violência narrativa se distingue da atitude narrativa devido ao fato de a primeira desvelar o caráter arbitrário da narração, enquanto a segunda remete a um contexto semiótico que impõe limites axiológicos ao narrador. A violência narrativa refere-se exclusivamente ao ato narrativo, já a atitude narrativa causa efeitos no conjunto do sistema de valores do complexo autor-texto-leitor. Daí a necessidade de se reposicionar os conceitos avaliativos em seu respectivo contexto, isto é, considerá-los como lugar de interdiscursividade. Desta maneira, o leitor terá condições de interpretar, comparando sua cadeia de valores com as do autor e da sociedade.

O conteúdo de um texto como o de Rubem Fonseca e Patrícia Melo pode, portanto, opor valores concorrentes à sociedade, filiar-se aos seus valores ou fazer uma escolha dentre os valores disponíveis no mercado de bens simbólicos. Como a tematização, geralmente, se atém ao crime/homicídio, num determinado fôlego narrativo, a primeira inferência que faremos acerca dos valores evidenciados é a de transgressão. Na fortuna crítica de Rubem Fonseca já foi possível destacar algumas notações acerca da linguagem, que ela oscila entre o penumbrismo e a objetividade, uma linguagem violenta mas reflexiva. Talvez seja certo dizer sobre ele o que Álvaro Lins disse a respeito de Graciliano: “o autor não somente vive a angústia, mas é também um historiador da angústia”82. Então Rubem Fonseca, assim como Patrícia Melo, não vivem o crime, a transgressão, mas são historiadores do crime, do homicídio. Violência, prazer e aventura aparecem ‘historiados’ em sua obra, pressupondo um intervalo entre relato e experiência de vida, mesmo que o narrador tente camuflar essa distância.

Ao ler os seus textos, fica claro para o leitor que a violência vem fortemente marcada por motivações psicológicas, traço persistente em toda sua obra. Por enquanto

82 VIDAL, Ariovaldo José. Roteiro para um Narrador – uma leitura dos contos de Rubem Fonseca.

o que se pode dizer é que a violência funciona como tema e linguagem em Rubem Fonseca. Vale lembrar que o estilo do autor já fora definido com diversas categorias adjetivas como realismo, realismo feroz, realismo fantástico, surrealismo, pop-art, grotesco, alegoria, hiperrealismo e pós-moderno, agora ainda queremos classificar os seus narradores de homicidas existencialistas e hiperrealistas83. É claro que muitos termos nem aparecem com muita precisão em sua fortuna crítica, mas podem figurar como definição de diferentes momentos na trajetória de produção literária do autor.

Mas o grotesco lhe cai muito bem, pois dentro da ordem, inquietante, pulsa o desejo da trangressão. A consciência que está por trás das figurações cria um texto em que o movimento impulsivo, caótico, híbrido, seja concretizado por uma linguagem clara, precisa e incisiva. Mesmo que cheia de traços fortes, a linguagem assume um realismo límpido. O que é excessivo não se perde em verborragia, é o suficiente necessário, porque há um elaboração disciplinada do estilo. E isso evita a dissolução comum em escritores semelhantes, normalmente tematizando o erotismo. Neste sentido, apenas o texto de Patrícia Melo conseguiu chegar muito próximo ao de Rubem Fonseca, embora nada se repita, pelo contrário, ela consegue acrescentar outras pulsões.

Se o narrador não atinge plenitude, serenidade ou tranquilidade, conforme a obra se desenrola, pode atingir a ironia e muitas vezes a violência. E se a angústia persiste pela capacidade de transformar a realidade que se mostrou ilegítima, depois do áspero caminho trilhado pela consciência, persiste também como conseqüência de uma busca sem fim, empreendida pela via do erotismo. E para refletirmos sobre essa busca, sobre essa falta, precisaremos entrar no universo do que se considera pulsão.