• Nenhum resultado encontrado

2. AUTÓPSIA NECRÓFILA

5.5. O CRIME PERFEITO DE PETER WINNER

Em relação aos escritores assassinos, poderíamos encerrar por aqui se não fosse a ocorrência de um outro personagem que, embora não seja o narrador do conto, é muito significativo para fecharmos esta questão. Ele é Peter Winner, o escritor de romances policiais do tipo ‘noir’ da obra Romance Negro (1992). Apesar dele não ser efetivamente o narrador do texto, cujo foco narrativo vem disposto em terceira pessoa, não podemos deixar de lado uma história que, além de postular sobre o crime perfeito, faz toda uma crítica ao gênero policial, tão controvertido. No início, pensamos em encaixar Peter Winner na galeria dos Duplos, mas cremos que algumas observações sobre ele serão muito mais pertinentes agora.

Peter Winner é um escritor que, junto a sua namorada Clotilde, chegou a Paris para participar do Festival International du Roman et du Film Noirs, em Grenoble. Enquanto estavam no quarto do hotel, Peter já mostrava ao leitor o fetiche que tem por mulheres ossudas. Gostava muito de massagear os ossos de Clotilde, da clavícula à rótula. Numa conversa excitante ele diz a Clotilde que tem alguns segredos para revelar- lhe. Estes segredos vão sendo lançados no decorrer da narrativa, não só para deixar Clotilde apreensiva como para despertar a curiosidade de nós leitores. A primeira revelação é de que Peter Winner matara um homem.

Pelo fato de ambos estarem indo para um evento que trata da literatura ‘noir’, é sombria a descrição do local onde ocorrem as palestras: “um local escuro que parece

uma imensa caverna; ouvem-se, a intervalos regulares, através de alto-falantes ocultos, sons de avalanches, de trovões, de terremotos que ecoam nas sombras”146.

Uma das críticas mais relevantes ao gênero policial que Winner expõe no congresso é no que diz respeito à inexistência de uma literatura ‘noir’ francesa. Ele desafia os colegas questionando o porquê de não ter surgido uma corrente francesa no

roman noir, com peculiaridades próprias e com importância idêntica às correntes de

língua inglesa. Dizia ele:

“Afinal as Memórias, do francês François Vidocq, de 1828, anteriores portanto ao livro de Poe, só não haviam inaugurado o gênero por não serem uma obra de ficção; e o primeiro seguidor notável (efeito Baudelaire?) de Poe foi o também francês Émile Gaboriau, com O Caso Lerouge. Por que o famoso detetive Lecoq, criado por Gaboriau, não deixou uma boa descendência? Reconheço que os franceses, conquanto medíocres praticantes do gênero – Simenon é uma exceção não muito brilhante – são inteligentes exegetas e entusiasmados consumidores; eles decidem quem faz, ou não, parte do clube. (...) Foram os franceses que difundiram esse gossip nojento de que eu seria um homossexual. Odeio franceses, os chaufeurs de táxi primeiro, depois os críticos. Estes últimos, aliás, de todas as nacionalidades.” 147

No evento, estavam presentes todos os escritores ‘reais’ como a inglesa P.D. James, o americano James Ellroy e o alemão Willy Voos. Todos se diziam os continuadores da tragédia grega. Pela forma incisiva com que Winner profere o seu discurso, tudo nos leva a crer que ele também se encontra numa fase crítica, por isso o ranço contra os críticos de qualquer nacionalidade. Peter já se sentia acabado, sem coragem para publicar. Para ele, o escritor quando não conseguia mais escrever, comparecia a congressos, instigado a lhe prestarem homenagens, com banquetes

146 FONSECA, Rubem. Romance Negro e outras histórias. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994,

p. 148.

glorificantes, medalhas, prêmios, coroas de louros e edições comemorativas. Era o seu caso.

Outra discussão importantíssima se dá em torno da elaboração do crime perfeito. Este aspecto se revela imprescindível para a interpretacão da narrativa não só por fazer parte de uma mesa temática do evento, mas pelo fato de Winner começar a revelar aos poucos que o crime por ele cometido seria um crime perfeito. Os debatedores, em sua maior parte, alegavam não existir o crime perfeito, nem na ficção nem na vida real, e de que na vida real existiriam os detetives imperfeitos. Já Winner os contestava afirmando que havia crime perfeito em ambas as facções, a real e a fictícia. P. D. James, a autora de Mente Assassina (1963)148, dizia que um crime nunca é perfeito porque o criminoso não conta com o acaso, que nunca pode ser previsto e acaba por condená-lo. Mas Winner contrapunha-se, comparando o crime perfeito a uma obra de arte, onde não havia o acaso, assim como não existia em sua mecânica, já que a obra de arte devia ser como uma máquina, portanto o crime perfeito seria como uma máquina. Eis os postulados de Winner sobre o crime perfeito:

“Numa história policial, permitam-me repetir, sabemos da ocorrência do crime, conhecemos a vítima, mas não sabemos quem é o criminoso. Neste crime perfeito todos saberão logo quem é o criminoso e terão que descobrir qual é o crime e quem é a vítima. Eu apenas mudei um dos dados do teorema. (...) Cometi um crime, cujos indícios, garanto, estão ao alcance de todos presentes. Estão todos desafiados a descobri-lo. Têm três dias para isso. (...) É um crime muito grave.”149

Estava feita a grande provocação: um dos mais representativos escritores da literatura policial, além de lançar a hipótese do crime perfeito, ainda revelava ele mesmo ser o autor desse crime. Membros da platéia um tanto desconsertados

148 Ver JAMES, P.D. Mente Assassina. Série Mistério e Suspense. São Paulo: Abril Cultural, 1984. 149 FONSECA, Rubem. Op. Cit., p. 152.

perguntaram-lhe, então, quem era a vítima desse crime. O editor, aproveitando-se da situação, confunde-os mais ainda afirmando que o nome dele era Peter Winner, tentando explicar que as suas últimas obras eram muito diferentes das anteriores, como se houvesse então havido a morte simbólica de um Peter Winner para o nascimento mítico de outro Peter Winner.

Em relação às fofocas de que ele seria ou não homossexual, isto fazia parte das revelações que Winner ainda estava fazendo a Clotilde. A simbologia da morte de Winner, evidenciada durante o debate, só se confirma no nível do discurso de Winner, isto é, de que teria havido consideráveis mudanças de estilo nos últimos anos em seu texto. Mas no plano da realidade, o fato é que o homem que ele, Peter Winner, matara era o verdadeiro escritor Peter Winner, este sim homossexual. Peter Winner não era Peter Winner. Seu nome era John Landers, um escritor fracassado, de quinta categoria, que invejava a obra do verdadeiro escritor. Num plano mirabolante, John Landers colocara estricnina na taça de bebida de Winner.

“Felizmente naquele momento Winner levou as mãos à garganta e caiu no chão, tremendo convulsivamente. Como acontece nas óperas, ele somente morreu depois de cantar sua ária por inteiro. (...) Ao verificar que Winner havia realmente morrido, despi-o completamente. Em seguida desnudei-me também. Ali estava eu, nu, com um homem morto também nu, e era nossa nudez que tornava irreal, como um sonho, ou um pesadelo, aquela situação, não a circunstância de eu ter acabado de me tornar um assassino.” 150

Mas o homossexualismo manifesto de Peter Winner não deixou de aguçar a latência em John Landers, quando este precisou disfarçar-se, trocar de identidade e, portanto, manter a relação que a vítima tinha com Sandro, cheio de constrangimentos. Diante da nudez de Sandro: “Tirei os olhos da nudez dele como quem afasta os olhos da

chama azul de um maçarico”. Só que toda essa pantomima não adiantou porque Sandro não acreditara na sua atuação, ficara desconfiado. Landers se viu não só obrigado a contar-lhe a verdade como também a colocar o veneno em sua taça e matá-lo. Agora Landers carregava em suas costas um duplo homicídio. E a última parte de sua revelação ainda estava por vir. Logo mais ele descobrira que tinha um irmão gêmeo, que lhe fora separado desde a infância, e este irmão era quem? Peter Winner, para o seu próprio desespero. Peter Winner era biologicamente um Duplo de John Landers. John Landers matara o próprio irmão Peter Winner e assumira a sua identidade. Portanto quem morrera de fato, quem deixou efetivamente de existir foi o próprio Landers, que nunca mais poderia voltar a ser o que era. Isso porque Clotilde, para não deixá-lo ser preso, conseguira inventar e distorcer uma série de dados, alegando que Winner tivera um surto psicótico, fazendo de conta que tudo aquilo era delírio de ficcionista. Portanto ninguém acreditou naquela história maluca.

E o atual pseudo-Winner, ex-verdadeiro-Landers, que matara o verdadeiro- Winner, ficara refletindo sobre a tragédia Édipo Rei, aliás, referência importantíssima, tanto pra quem escreve narrativas de crime, quanto pra quem as estuda. Pensou Winner, ex-Landers, que ali, na tragédia de Sófocles, o enigma da esfinge não era o essencial. Solucionar a charada era apenas uma cilada do destino para que Édipo, depois de matar o pai, casasse com a mãe e cometesse o outro crime, o mais grave, o do incesto. Freud quem diga.

Sobre a tragédia de Édipo, vale complementar que há uma representatividade crucial não só porque se refere à genese do romance policial, mas porque instaurou um certo tipo de relação entre poder e saber, entre poder político e conhecimento, do qual a nossa sociedade ainda não se libertou. De acordo com as observações de Michel Foucault, realmente há um complexo de Édipo em nossa civilização. “A tragédia de

Édipo é o primeiro testemunho que temos das práticas judiciárias gregas. Trata-se de uma história em que pessoas ignorando uma certa verdade, conseguem, por uma série de técnicas, descobrir uma verdade que coloca em questão a própria soberania do soberano”151.

O problema de Winner não era nem de pecado nem de confissão. Era muito mais complicado: um caso de fratricídio. Matara o irmão, que desprezara e odiara nos poucos momentos em que estiveram juntos. Não tivera nem a inteligência nem a sensibilidade de perceber. Postulara sobre o crime perfeito, tornando-se ao mesmo tempo criminoso e vítima.