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Algumas das contribuições dos teólogos para os estudos criminológicos foram a de Santo Tomás de Aquino que, em 1820, enfatizava o fator econômico na gênese do crime, inclusive justificou o furto famélico; e a de Santo Agostinho179, que teceu considerações sobre a idéia do livre arbítrio do homem. Esta última nos interessa no momento. A tese do livre arbítrio dizia que temos consciência da liberdade das nossas ações e que tal consciência prova a liberdade moral. Ela é a base da responsabilidade penal. Uma das principais características da chamada Escola Clássica era a questão da imputabilidade baseada no livre arbítrio e na culpabilidade.

Eis um dos focos de discussão que Rubem Fonseca nos propôs em A Confraria

dos Espadas (1998), intitulando o primeiro conto do livro de Livre-Arbítrio. Trata-se de

uma definitiva exemplificação da questão, a partir da narrativa, em forma de relato epistolar, de um homicida racional e lúcido que nega sua condição de culpado, declarando que todas as suas práticas foram executadas em comum acordo com as vítimas. Essas declarações, evidentemente, não foram feitas do narrador para a polícia, mas consiste no discurso do assassino dirigido, em forma de carta-resposta, para uma de suas destinatárias futuras vítimas. Esta interlocutora é a sua mais nova pretendente, já que ele, pelo menos nas quatro cartas dispostas no conto, admite e menciona ter executado outras três mulheres, desenvolvendo uma surpreendente teoria.

“Matar uma pessoa é fácil, o difícil é livrar-se do corpo. Esta frase, que poderia ter sido dita por um dos carrascos de Auschwitz mas na verdade referia-se originalmente a um elefante, veio paradoxalmente a minha lembrança quando depositei o corpo inanimado de Heloísa, que pesava menos de cinqüenta quilos, num banco da praça. (...)o mais difícil foi criar as condições que permitissem a descoberta do corpo antes que a natureza o deteriorasse. (...)mas queríamos, eu e Heloísa, que o corpo dela fosse encontrado imediatamente. Assim, tendo o cuidado de colocar seu endereço num papel pregado com um alfinete no vestido, deixei-o em um lugar público movimentado da zona sul da cidade, é bem verdade que de madrugada, com a praça deserta. Depois, telefonei para a polícia.” 180

O que o leitor constata de início é que o narrador não se utiliza de artificialismos verbais para descrever os seus atos, é denotativo, simples e natural. Pode surgir, dissolvido neste enredo, um pouco da reflexão acerca do crime perfeito, o mesmo de Peter Winner. Se ele combinou com a própria vítima, a forma como ela deveria morrer e ser encontrada, talvez fosse porque suas vítimas pudessem ser suicidas fracassadas, que queriam morrer, mas não teriam coragem de dar cabo da própria vida. Esse era o papel desse narrador: efetuar o suicídio não cometido por madames sem coragem. Depois, a atitude de ligar para a polícia, como se estivesse isento da ocorrência, como um simples transeunte assustado, mostra o quanto ele já possuía a destreza de camuflar os fatos e mascarar-se diante deles. Escrevendo para a próxima madame, ele exercita o verbo e instaura o discurso sobre o crime que ele mesmo cometera, a única falha, porque carta deixada assim é comprometedor demais, ainda mais se fosse inocente e estivesse só inventando. É o seu assassinato-narrativa. Cada vez que escreve, mais se conscientiza e racionaliza, e constrói o discurso dessa razão, o mesmo discurso-arma de Pierre Rivière, convencendo e seduzindo seus interlocutores.

179 Ver AGOSTINHO, Santo. Série Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

180 FONSECA, Rubem. Livre Arbítrio. In: A Confraria dos Espadas. São Paulo: Companhia das Letras,

A perspectiva de leitura do leitor é a mesma da vítima, portanto ele pode estar dizendo tudo isso para nós, ainda mais para quem é do sexo feminino.

"Admito que Heloísa, assim como Laura e Salete, foram tecnicamente assassinadas por mim, mas não podem ser chamadas de minhas vítimas, o termo define alguém sacrificado às paixões ou interesses de outrem, o que não foi o caso de nenhuma das três, que decidiram soberanamente sobre a conveniência e oportunidade da própria morte. Se teoricamente matei as três, é preciso que se diga que o fiz com a aquiescência e, mais do que isso, com o estímulo delas. Elas realizaram seus desígnios e eu, de certa forma, também tive minha recompensa, subjetiva, merecida aliás, tendo em vista a tarefa delicada e árdua que foi encontrar Laura e Salete." 181

Em alguns momentos ele enfatiza: “Fiz o que ela pediu, eu só fazia o que elas pediam.”182 Apenas para lembrar aos demais interlocutores de que ele jamais se admitiria culpado. Até pensava sobre a possibilidade de culpa, no entanto que o seu discurso é a sua própria arma, sua defesa. Sua carta poderia até confundir as instâncias jurídicas, caso os responsáveis pelo processo se ativessem às circunstâncias atenuantes e, principalmente, se se deixassem levar por suas técnicas de persuasão. Ele diz, inclusive, que a sua prática jamais pode ser confundida com a eutanásia, pois suas vítimas não sofriam de doenças incuráveis. Para ele: “o livre arbítrio no ato de encerrar a vida só é autêntico se a pessoa é tranqüila, saudável, lúcida e gosta de viver.”183

De forma sumária, o narrador vai alegando que as três mulheres que já havia matado eram sensatas, inteligentes e queriam exercer em sua plenitude o poder do livre arbítrio, de forma que a decisão delas não fosse vista como uma inevitável conseqüência de antecedentes fortuitos. Geralmente ele as matava por meio de injeções letais. O seu papel era o de dar vazão às pulsões de morte latentes nas vítimas. Isso se justifica pelo fato da manifestação do interesse delas em não querer morrer ou serem encontradas em

181Idem, p. 10. 182 Ibidem, p. 11.

circunstâncias bizarras, tratadas como indigentes, chamadas de presunto. Elas queriam o requinte de se sentirem vítimas glamourosas, impecáveis, do feitio de uma Delfina Delamare, que morrera feliz, quase sorrindo, e que, até mesmo depois de mortas, continuassem atraentes e chiques, sem perder a classe.

Heloísa não queria ser vista encontrada em estado de putrefação, como um agente poluente; Laura queria que tivesse um bilhete ao seu lado com os seguintes dizeres: “a liberdade de acabar com a vida era a maior das liberdades”, sua carta foi até publicada nos jornais, morrera como um mito midiático, aquele tipo de vítima pela qual ‘todo o país’ se emociona, vai aos prantos. A tese de assassinato surgiu após a autópsia da terceira vítima, Salete, já que em todas foi encontrada a mesma substância fatal.

O canal de comunicação pelo qual ele estabelecia contato com as vítimas variava do boca a boca de rua às exaustivas consultas na Internet, assim como nas páginas de anúncios dos periódicos. No decorrer da leitura das cartas, vamos percebendo que a grande fantasia está na mente da mulheres voluntárias, isso segundo, é claro, os registros do narrador, que também correm o risco de serem todos falsos, fragmentos frasais que fazem parte de um grande delírio. O importante é saber que, ele ou elas, alguém delirava. Seria ele imaginando tudo isso e sentindo-se o imbatível autor do crime perfeito, para ilustrar a tese de Peter Winner, ou realmente, como parece, seriam as mulheres as sado-masoquistas? De acordo com as inferências realizadas e, confessa- se, submetidos pela retórica do narrador, acredita-se que elas realmente, no plano ficcional, existiram e desejaram a morte. No final do conto, o narrador esclarece aos leitores não só o modo como conhecera sua última vítima como também relembra com sua futura vítima, a forma como ela o abordou. Esta atual destinatária seguiu-o na rua, pedindo mais informações sobre o assunto, dando a entender que queria mais do que simplesmente ser morta, antes queria gozar e realizar um pouco das fantasias que

alimentava, para morrer com extremo prazer. Por fim, o remetente sintetiza seu relato, tentando marcar o seu primeiro encontro. E, sempre é bom lembrar, que ele não seria um criminoso, porque, a seu ver, não existe assassinato sem vítima. Termina a carta com a seguinte saudação: "Estou à sua espera".

Só nos resta pensar na postura desse narrador em relação à postura dos demais. Digamos que, devido à disposição narrativa do conto, em forma de carta, tudo nos leva a inferir que ele se situa numa linha existencialista semelhante a dos escritores assassinos, daí sua preferência pelo relato escrito, forma de exercer sua eloqüência singular. Mas seria um tipo existencialista não pessimista, que olhava pra frente e que, relativamente, tentava omitir-se da culpa, embora esta esteja explícita. Está aí a razão de ser do conto, pois se não se sentisse culpado, não se preocuparia tanto em tentar construir o discurso da isenção. Se não fosse culpado, jamais escreveria. É como um Pierre Rivière da ficção, que utiliza-se da palavra como defesa, a arma-discurso.