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Foi no conto Henri que o autor, há 39 anos, descreveu pela primeira vez o frio procedimento de um assassino. Apesar do foco narrativo estar disposto em terceira pessoa do singular, o narrador, irônica e antiteticamente, vai caracterizando o personagem-título, lançando adjetivos não muito condizentes com as práticas adotadas por ele no decorrer da história. Henri é simples, sóbrio, tranqüilo, possui olhos de homem honesto, boca de homem sensível, é um intelectual, educado, respeitável e pontual.

O texto investe numa minuciosa descrição de sua cabeça, ressaltando o tamanho peculiar do crânio, junto à calvície e à barba negra. Novamente, podemos destacar, como já fizemos no item Naturalismo e Criminologia, essa ligeira alusão à forma craniana postulada por Cesar Lombroso, enquanto saber interdito, no que se refere ao formato das cabeças de assassinos e delinqüentes. Como é típico do texto fonsequiano, há marcas propositadamente incompletas no discurso do narrador, no que se refere ao encadeamento de enunciados que caracterizam o ofício de Henri: o seu trabalho não se comprometia pela sua aparência, tinha uma vasta experiência, no tipo de negócio em que estava metido eram imprescindíveis qualidades como a disciplina, a meticulosidade, a pontualidade e a organização. Henri tinha que dar uma solução ao caso, já havia efetuado aquela operação uma dezena de vezes, talvez ele pudesse cancelar os seus planos. Afinal qual era o trabalho de Henri? A história narra a expectativa deste homem em encontrar uma senhora de nome Madame Pascal.

Vale agora fazer uma ligeira digressão, mas importante, para entendermos a personalidade de Henri. É o fato do sobrenome Pascal fazer alusão direta ao filósofo Blaise Pascal, num trocadilho e numa reflexão da própria personagem, quando apanha um exemplar da estante de Esprit de géométrie e se delicia com a leitura, sugerindo algo de místico. Pascal era o seu mestre, o seu favorito.

A sua experiência (sua vasta experiência) e a leitura de Pascal levavam-no sempre a pensar em duas avenidas através das quais a crença podia ser comunicada: o entendimento e a vontade do ouvinte. O entendimento é o caminho mais natural, a vontade é o mais usual. Isso ocorre com as verdades no mundo natural, onde o processo estritamente racional oferece o único caminho seguro. Não era, aliás, devido à segurança com que trabalhava que ele havia conseguido aquele imenso, e por que não dizer, incrível sucesso? Ah, se os outros pudessem saber! E as verdades sobrenaturais? Essas ele não alcançava. Talvez porque Deus quisesse humilhar o raciocínio orgulhoso dos homens, essas verdades só podiam entrar na mente através do coração. As coisas naturais têm que ser conhecidas antes de serem amadas; as coisas sobrenaturais só chegam a ser conhecidas por aqueles que as amam.”102

Pelo que se percebe, a leitura de Pascal é a forma de se chegar à violência. Quando ele utiliza termos que se referem ao trabalho e ao decorrente sucesso, nos faz acreditar que ele seja um frio assassino de mulheres, este é o seu ofício, é profissional, trabalha só por prazer. Salienta-se, também, a análise impiedosa que o filósofo Pascal já fez acerca dos ‘divertimentos’ do homem, uma forma de encobrir o abismo de seu nada. Segundo ele, o divertimento seria a única coisa que nos consolaria de nossas misérias103, mas essa era a maior de nossas misérias, pois sem ela ficaríamos desgostosos, e esse desgosto nos levaria a procurar um meio mais sólido de sair dele. Mesmo assim o divertimento sempre será a nossa alegria, e que nos levará sensivelmente à morte.

102 FONSECA, Rubem. Os Prisioneiros. 4ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 48. 103 Ver PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Abril, 1980, p. 80.

Henri era um homem culto, tinha bagagem de leituras, conquistava as mulheres mais velhas com sua retórica. Ao mesmo tempo, o que sentia pelas mulheres genericamente era o contrário do que representava, pois as achava um trapo, feias, repulsivas, fétidas. Ao mesmo tempo em que tem a convicção de que não há tempo a perder e de que é preciso executar o trivial, ou seja, realizar o seu trabalho, Henri parece envolver-se enganosamente num processo de sedução, sem perder de vista a sua sordidez.

Um exemplo está no momento em que, ao despertar bruscamente de um sonho, em cuja história ele enforcava o próprio pai, Henri se deixa levar por uma série de devaneios. Ao tomar consciência disso, imediatamente substitui o objeto de seu pensamento (discurso onírico) por Madame Pascal, sobre a qual já transfere a sua raiva e sua revolta, bastando lembrar de alguns traços físicos ou comportamentais da mulher. E é neste instante que ele sai decidido a concluir a sua tarefa. Chegando lá transforma um pretexto de massagem em estrangulamento. Vejamos:

"Madame Pascal senta-se. Uma pequena massagem, disse Henri delicadamente. Seus dedos acariciam a garganta de madame Pascal, seus ombros; que mãos suaves, pensou ela, que dedos hábeis, que homem encantador. Como é magra, pensou Henri, como é frágil a sua carne, como são finos os seus ossos, é preciso que ela não sofra. Ele estava atrás dela, curvado sobre a poltrona, os dez dedos em sua garganta. Agora! os polegares apoiaram-se com força na base do crânio e as pontas dos demais apertaram rápidas e firmes a garganta. Henri sentiu as cartilagens cedendo e logo em seguida os ossos da laringe se partindo." 104

O interessante notar, além da subdivisão dos possíveis pensamentos dela e dele, através do narrador, é a forma quase autônoma ou involuntária que as mãos e os dedos de Henri vão adquirindo, como se não dependesse da sua mente o domínio motor, e aquelas partes do seu corpo agissem tão natural e mecanicamente, fazendo-o notar

somente depois, quando das cartilagens cedidas. Essa forma peculiar de narrar chama a atenção do leitor, que identifica a intenção do narrador em desmistificar o ritual de execução criminal, o seu momento específico, desvinculando-o de qualquer sentido simbólico que o crime, e portanto, que a morte pode ter. Isto porque logo surge a palavra-comando ‘Agora!’, transformando Henri num exterminador nada emotivo.

“(...)existe uma dimensão moral na escolha que o autor faz de técnicas impessoais e não comprometidas. A narração objetiva, particularmente quando conduzida por um narrador muito pouco digno de confiança, oferece tentações especiais para o leitor se desviar. Mesmo quando apresenta personagens cuja conduta o autor deplora profundamente, apresenta-os através do meio sedutor da sua própria retórica autodefensiva. Os leitores católicos de Graham Greene censuraram-no freqüentemente por fazer os seus personagens maus demasiado agradáveis, por tornar o próprio mal atraente.”105

As seqüências narrativas que Rubem Fonseca cria para o ato de matar geralmente têm essa nuança: tudo vem descrito numa linguagem que une o grotesco e o lírico, de forma a causar impacto no leitor. A morte é retratada funcional, instintiva e anatomicamente, sem interferências emocionais. Neste caso não existiu nenhum deslize de consciência para a culpa. O que prevalece é a vontade de poder cada vez mais sobre o outro. Quem tem poder pode usurpar propriedades como também ser o único, o dono de muitas vontades, de inúmeras vidas. Vejamos uma das seqüências posteriores em que o autor nos apresenta uma espantosa descrição do expirar e do ver expirar, do sofrer e do fazer sofrer, os instantes mágicos desse prazer:

"(...) Henri contemplou fascinado a morte no corpo nu de madame Pascal. O rosto: petéquias disseminadas por quase toda a face, constituindo um pontilhado escarlatiforme sobre a pele pálida, cianosada; os olhos congestionados; as narinas apresentando uma espuma sanguinolenta; a língua projetando-se entre os dentes. (...)A morte devorava a vida lentamente, pensou Henri. Primeiro o corpo se imobilizava, a consciência se perdia

104 FONSECA, Rubem. Op. Cit., p. 53. 105 BOOTH, Wayne. Op. Cit., p. 404.

(madame Pascal! chamou ele duas vezes, madame Pascal!), suspendia-se a respiração e os batimentos do coração. Já era noite e o corpo de madame Pascal estava frio, o suor frio de sua pele cessara, seu corpo começava a endurecer." 106

Henri, após suas práticas, ainda consegue visualizar o resultado, os destroços humanos de maneira isenta, descompromissada, seu olhar é fisiológico. A única função emotiva em sua linguagem está na ânsia de querer até mesmo profanar o cadáver. Eis a necrofilia.