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Criado em 1920, o conceito de pulsão de morte surgiu a partir da obra Além do

Princípio do Prazer, de Sigmund Freud, como um dos conceitos fundamentais da

psicanálise. O termo Trieb, pulsão, nos textos iniciais de Freud foi utilizado substitutivamente por excitação pulsional, moção de desejo, estímulo pulsional, excitação e outros mais que acabaram por dificultar o rastreamento da gênese do conceito. Esta terminologia não foi retirada da realidade a partir da observação, mas criada com a finalidade de construir uma nova inteligibilidade, uma metalinguagem da psicanálise. E também não corresponde imediatamente a alguma coisa visível ou identificável, na verdade os conceitos fundamentais da psicanálise correspondem a interrogações.

Hoje, já no debate lacaniano da Psicanálise, o que mais vemos é uma infindável discussão acerca da metapsicologia freudiana. O próprio Freud chegou a declarar que a doutrina das pulsões, apesar de ser a peça mais importante, era a mais inconclusa da teoria psicanalítica, prova disso é a extensão dessa discussão em qualquer mesa-redonda ou curso sobre a leitura de Freud ou Lacan. Não se vê descrições e/ou comentários de casos clínicos, das chamadas narrativas clínicas, mas sim todo um redirecionamento de cada um dos termos psicanalíticos, incluindo os demais conceitos como o de inconsciente, linguagem, narcisismo, recalque e etc.

A pulsão, mais especificamente a sexual, surge no glossário conceitual de Freud em Três Ensaios de Teoria Sexual (1905)84. Ainda neste texto, percebe-se uma certa indefinição quanto à pulsão ser de ordem psíquica ou não-psíquica. Em alguns momentos, Freud refere-se à pulsão como se o termo designasse estímulos constantes provenientes do próprio corpo, e outras refere-se ao termo para designar o ‘representante psíquico’ desses mesmos estímulos. Por enquanto, a pulsão seria um conceito situado numa fronteira entre o anímico e o somático.

Em certos aspectos, a pulsão tem sua fonte no corpo. Segundo Freud, os órgãos do corpo são a fonte exclusiva das pulsões. A pulsão pode ser considerada um estímulo para o psíquico e não um estímulo psíquico. Finalmente, foi conveniente situar a pulsão entre o aparato psíquico, regido pelo princípio do prazer, e à região externa ao aparato psíquico, isto é, além do princípio do prazer. Não há pulsão sem representação, assim como não há representação sem pulsão.85

No início do artigo Pulsão e destino das pulsões (1915), o autor aponta que “a pulsão não atua como força de choque momentânea, mas sempre como uma força constante. Sugere que chamemos de ‘necessidade’ aos estímulos internos e de ‘satisfação’ o que cancela essa necessidade. Infere-se, portanto, que o termo necessidade aplicado às pulsões designa o caráter imperativo do impulso pulsional, algo do qual não se pode fugir. Então, para montar o conceito de pulsão, Freud utiliza-se de outros quatro termos: impulso(ou pressão), fonte, objeto e alvo da pulsão.

Por Pressão, entende-se o seu fator motor, a soma de força ou a medida da exigência de trabalho que ela representa, sua própria essência, podendo ser equiparada a um quantum de excitação que tende à descarga. O Alvo da pulsão é em todos os casos a satisfação, que só pode ser alcançada, cancelando-se o estado de estimulação na fonte

84 Ver Garcia-Roza, Luiz Alfredo. Artigos de Metapsicologia 1914-1917. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,

da pulsão. A tese de Freud é que não apenas o alvo da pulsão é a satisfação, mas essa satisfação já foi obtida um dia, em nossa pré-história individual. Já o Objeto da pulsão é aquilo no qual ou através do qual ela pode atingir o seu alvo. É o elemento mais variável na pulsão, não está ligado originalmente a ela, mas articula-se a ela somente pela sua peculiar aptidão para possibilitar a satisfação. Como entender o Objeto senão como uma representação. Para Freud, o Objeto é uma síntese resultante da ligação entre representações sensoriais elementares e a palavra(ou representação-palavra), isto é, o efeito da incidência da palavra sobre as sensações provenientes dos estímulos externos.86

Nenhum Objeto de nenhuma necessidade satisfaz a pulsão. Por exemplo, não é o leite, enquanto objeto específico para saciar a fome ou sede que responde pelo prazer, mas o seio ou a mucosa da boca produz a sensação de prazer. “A esse Objeto, Lacan chama Objeto a, causa do desejo. O Objeto a não é introduzido para designar um objeto específico, o seio, ou mais apropriadamente o leite, enquanto objeto primitivo, mas sim para assinalar que nenhum objeto satisfará a pulsão, no caso a pulsão oral.”87 E por fim, a Fonte da pulsão é o processo somático, interior a um órgão ou a uma parte do corpo, cujo estímulo é representado na vida anímica pela pulsão. Vale lembrar, também, que não se justifica qualquer distinção de ordem adjetiva entre as pulsões, como pulsão oral, anal, etc. Tais distinções não designam aspectos qualitativos, mas a diversidade, justamente, das fontes pulsionais.

Sabe-se que, até então, para a montagem do conceito de pulsão, Freud refere-se à pulsão sexual, embora utilize o tempo todo o termo pulsão, pura e simplesmente. Como os quatro elementos dessa montagem não se aplicam adequadamente às pulsões não-sexuais, o autor resolveu explicitar como devem consistir essas últimas. No artigo A

85 Idem, Op. Cit. P. 85. 86 Ibidem, p. 95.

perturbação psicogênica da visão segundo a psicanálise (1910), Freud distingue as

pulsões sexuais das pulsões de autoconservação, as primeiras que servem à sexualidade, à ganância de prazer sexual, e as outras que têm por meta a autoconservação do indivíduo, as pulsões do eu. Estes dois termos, pulsões de autoconservação e pulsões do eu foram muito utilizadas, também, como sinônimos, apesar de designar processos que não se superpõem necessariamente. O primeiro refere-se às necessidades ligadas às funções corporais, cujo objetivo é conservação da vida do indivíduo como por exemplo procurar comida e defender-se. O segundo diz respeito não tanto à função, mas ao objeto, já que se supõe que o eu esteja a serviço da conservação do indivíduo. Só que o eu não está, verdadeiramente, nessa proporção. O eu é visto por Freud como um dos objetos privilegiados de investimento libidinal.

Em Para introduzir o narcisismo, Freud aponta a ideía de que o eu também é objeto de investimento das pulsões sexuais. Apesar de alguns impasses, o autor continua distinguindo as pulsões de autoconservação ou pulsões do eu das pulsões sexuais, admitindo que interesse e libido podem coexistir no que tange às funções do eu.88 Até que em 1920, com o texto Para além do princípio do prazer, Freud postula sobre o conceito de pulsão de morte, substituindo a anterior oposição dualista pulsões sexuais x pulsões do eu pelo novo binômio pulsões de vida x pulsões de morte, sendo que as primeiras envolveriam tanto as sexuais quanto as do eu.

É possível considerar, também, que toda essa confusão sobre o conceito de pulsão foi resultado de uma de suas hipóteses levantadas em textos que falavam sobre o ‘apoio’ inicial das pulsões sexuais sobre as funções corporais que servem, então, à conservação da vida individual, o que facilitou a aproximação ou identificação da pulsão com o instinto. É somente em O mal-estar na cultura (1930) que Freud vai

87 Ib., p.96. 88 Idem, p. 101-102.

firmar a autonomia do conceito de pulsão de morte, entendida como pulsão de destruição, consistindo em disposição pulsional autônoma, originária, do ser humano. Ele próprio fazia-nos crer que a pulsão de morte é invisível e silenciosa, invisível e indizível, isto é, a pulsão de morte estaria para além do princípio do prazer, para além do próprio aparato psíquico.

“A pulsão não tem objeto próprio(ou objeto natural), seu objeto será oferecido pela fantasia, o que implica a sua submissão à articulação significante, e é em termos de significantes que as pulsões sexuais vão se constituir como diferença. Isto porque a sexualidade constitui-se a partir da captura das pulsões pela rede significante, o sexual pertence ao registro do desejo, portanto implica além do imaginário, o simbólico.”89

Na prática, o que o conceito de pulsão de morte introduziu na teoria psicanalítica é a possibilidade de se pensar uma região do campo psicanalítico concebido como o caos pulsional, oposto à ordem do aparato psíquico. A pulsão de morte, enquanto potência destrutiva(ou princípio disjuntivo) é o que impede a repetição do mesmo, ou seja, a permanência das totalidades constituídas, provocando a emergência de novas formas. A solução para tudo isso estaria na concepção desse dualismo pulsional não como um dualismo de natureza das pulsões, mas como um dualismo de modos de pulsão. Desta forma, as pulsões seriam todas qualitativamente da mesma índole, a diferença entre elas seria dada pelos seus modos de presentificação no aparato anímico. Se a pulsão se faz presente no aparato anímico promovendo e mantendo uniões, conjunções, ela é dita pulsão de vida; se ela se presentifica no aparato anímico disjuntivamente, fazendo furo, então ela é dita pulsão de morte. Assim, tanto pulsão de

vida quanto pulsão de morte seriam modos de presentificação da pulsão no psiquismo e não qualidades das pulsões elas mesmas.90

Encara-se, portanto, que pelo menos no âmbito psicanalítico freudiano, a pulsão é um conceito fronteiriço entre o anímico e o somático, por um lado apontando para o corpo, entendido como fonte de estimulação constante e como medida de exigência de trabalho imposta pelo anímico; e por outro aponta para o psíquico, enquanto sede das representações. E a originalidade de Freud consistiu na não consideração dessa ordem corporal na determinação das pulsões. Quando ele propôs o conceito de pulsão, não era o corpo que importava, enquanto totalidade organizada. Os estímulos corporais são tomados apenas enquanto pura dispersão. Mas a pulsão não seria pulsão se não fosse o aparato psíquico, entendido como um aparato de linguagem, ou como aparato simbólico. Assim, quando o aparato captura o disperso pulsional, ou seja, algo oriundo do esquema corporal, transformando-o e impondo-lhe uma ordem, essa ordem é a da linguagem.