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2. AUTÓPSIA NECRÓFILA

5.4. GUSTAVO FLÁVIO: O RETORNO

Mas a odisséia do Bufo não terminaria dessa forma, se não fosse a atitude do autor em lançar o romance E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu

charuto (1997). O título do romance é um verso que faz parte do Poema do Frade, de

Álvares de Azevedo, poeta romântico da segunda geração. Aliás, esse diálogo com a obra do escritor do mal do século não é gratuito. Além de haver toda a identificação com os sentimentos de Gustavo Flávio, há aquela singular apreciação ao charuto. Cabe lembrar que tanto Gustavo quanto Mandrake são fumantes inveterados, a todo o momento em que ambos conversam, fumam seus charutos e trocam idéias sobre o gosto, o aroma, favorecendo todas as conotações possíveis. A escolha do charuto não é nada aleatória. Visivelmente a nuance fálica do objeto funciona como alusão à impotência comprometida de Gustavo, talvez para compensar ou sublimar a aptidão sexual do herói.

Nesta obra surge uma nova proposta: aliar o conhecimento de Gustavo Flávio à destreza do detetive Mandrake, reunindo-os numa narrativa onde confissão e ficção se misturam. Pela primeira vez, Rubem Fonseca reuniu os dois mais importantes expoentes narrativos de sua obra. Cria uma combinação antitética, porém amistosa entre o detetive e o escritor, como se fechasse um ciclo em sua obra. Oferece ao leitor um novo e intrigante debate, também permeado por intertextos e discussões, entre os seus dois principais narradores. Mandrake, desde A Grande Arte (1983) instaurou-se como narrador dotado de senso de digressão. Naquele romance, por exemplo, ele relatava na

primeira pessoa as ações das quais participava, e usava a terceira pessoa para reconstruir acontecimentos suplementares, ou seja, já que o seu papel era o de desvendar mistérios, ele utilizava como matéria de narração os dados recolhidos, os testemunhos e documentos.

Gustavo Flávio surge, desta vez, um tanto desanimado com a carreira literária, depois de ter publicado cerca de 20 livros, dentre eles um chamado Foder e Comer. Seu estado de castração não o deixou impotente sexualmente, mas literariamente. Depois do episódio Delamare, o narrador entrou numa crise de impotência criativa, portanto deixara de escrever romances, agora escrevia apenas ensaios.

“(...) deixei de escrever romances e não me arrependo. Agora, além de ensaios, pretendo escrever minhas memórias. Dostoievski, pela boca de Aliosha Karamazov, diz que as memórias preservadas desde a infância e que carregamos durante nossa vida são talvez a nossa melhor educação; e se apenas uma dessas boas memórias permanece em nosso coração, ela talvez venha a ser, um dia, o instrumento da nossa salvação.”140

O propósito do encontro do escritor com o detetive é descobrir quem está matando as ex-namoradas de Gustavo Flávio. O texto vem disposto de forma fragmentada: um conjunto de pequenas anotações de Mandrake, declarações longas de Gustavo Flávio, assim como pequenos monólogos, trechos de diálogos pela Internet e ainda pareceres de várias de suas mulheres atuais como Luiza e Amanda, além, é claro, de seqüências narrativas, necessárias à história, dissolvidas nestes fragmentos.

Em semelhança a Paul Morel, Gustavo Flávio, que agora não é narrador exclusivo em primeira pessoa, tem relação com mais de uma mulher. Ele, a princípio, gostaria de levar essas relações abertas de forma natural, mas sempre há uma delas (no

140 FONSECA, Rubem. E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto. São Paulo:

Caso Morel era Joana) que não aceita a variedade, exigindo-lhe exclusividade: Luiza.

Os assassinatos que ocorrem antes e durante a história são de mulheres que já tiveram caso com o escritor. Geralmente, pouco antes de cada crime, ele recebia, pelo correio, fotos das vítimas, fotos que ele mesmo batera, em ocasiões diversas, quando ainda namoravam. Esse é o critério do assassino, lançar mão de índices que servissem não só como aviso de quem seria a próxima vítima, mas para fazer Mandrake, Raul (um outro delegado) e nós leitores desconfiarmos de Gustavo Flávio.

Uma de suas mulheres, Amanda, também queria ser escritora. Gustavo costumava dar algumas dicas de como ser um bom escritor. Seu autor predileto era o Marques de Sade141 que, segundo ele, enchia o coração e a mente dos leitores de medo e horror, porque a vida era isso, medo e horror. É muito pertinente essa referência a Sade, justamente por haver uma explícita identificação com o tipo de vida que levava Gustavo e suas mulheres. Quase no final do livro, conversando com Mandrake, Gustavo expõe o seu ponto de vista:

“Um dia eu estava conversando com Amanda sobre os pré-requisitos para alguém se tornar um bom escritor. E eu dizia para ela que entre esses requisitos devia ser incluída a coragem, a coragem de fracassar, a coragem de dizer aquilo que não pode ser dito, não importa a natureza do impedimento, a coragem de dizer aquilo que ninguém quer dizer, de dizer aquilo que ninguém quer ouvir – quem diz o que os outros querem ouvir, Mandrake, é a televisão, a coragem a que me refiro é a do Sade, que passou 27 anos de sua vida em asilos de loucos, Sade, que se manteve vivo duzentos anos não pelo seu estilo, mas pela sua coragem. (...) Então Amanda me perguntou, e a coragem de matar? Eu não entendi o que ela queria dizer, e Amanda acrescentou, eu tenho coragem de matar, isso me ajuda?”142

De maneira sintética é o autor quem nos dá a palavra a respeito da escolha da matéria narrada e do modo de narrar. Tema que ele apresentou para discussão desde O

141 Ver CARVALHO, Bernardo. Medo de Sade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 142 Op. Cit., p. 111.

Caso Morel e que continua até hoje em quase 40 anos de produção literária. Quem lê

um texto seu de 1963 e o compara com um de 2001, parece que, em nível de mentalidade e ousadia, o autor não envelhecera, pois o grotesco se mantém cada vez mais autorizado. Só se percebe a velhice do autor, a partir da depreensão de alguns temas relacionados a problemas de saúde como prisão de ventre, câncer de próstata e ao fantasma da impotência.

Abrimos um parêntese para o pensamento de Sade (1740-1814) que, por intermédio de algumas criaturas de romance, desenvolveu uma teologia do ser supremo em maldade. Autor de Justine e Os 120 Dias de Sodoma, este último escrito na Bastilha em 1785, e no século XX levado às telas brilhantemente por Pier Paolo Pasolini, Sade era considerado um filósofo do mal, aquele que fazia apologia ao crime e à crueldade. Talvez por isso sua obra, e sua vida, fosse admitida enquanto categoria psicológica ou exemplo sociológico, mas negada enquanto texto143. Seu ateísmo desafiou a Deus e, por isso, desfrutou do sacrilégio, padecendo na Bastilha.

Seus personagens praticavam crimes por amor, por prazer, muitas vezes sem qualquer sentimento, era a gratuidade do mal que fundamentava os seus prazeres. A essência de suas obras era a destruição, não somente dos objetos, das vítimas, dos cenários, mas de si mesmo. Foi herdeiro de toda uma tradição literária como o

Decameron, de Boccaccio, e do Livro das Mil e Uma Noites. Sade achava que o crime

tinha por si mesmo um tal encanto que, independentemente de toda a volúpia, ele podia bastar para inflamar as paixões. “A alma sádica só toma consciência de si própria pelo objeto que exaspera sua virilidade e a constitui no estado de virilidade exasperada, a

143 Ver SADE, Donatien Alphonse François. Os Crimes do Amor e A arte de escrever ao gosto do

qual se torna igualmente uma função paradoxal de viver: ela só se sente viver na exasperação.”144

Os personagens de Sade são meros elementos mecânicos de uma máquina sexual, parecem buscar o prazer como alguém que corre risco de vida, seu desregramento alucinado é uma necessidade. Daí a equivalência de perfis e de concepções aos personagens de Rubem Fonseca. Justifica-se a necessidade do autor em mencioná-lo, e a nossa facilidade em inferi-lo, também, em O Caso Morel e Bufo &

Spallanzani.

Enfim, quem matou as três ex-namoradas de Gustavo Flávio? Hilde, Regina e Sílvia? No desfecho, é Luiza, uma de suas atuais amantes, a responsável pelas mortes. Ela, nos momentos finais, discutira com Gustavo e ainda conseguira dar-lhe dois tiros. No epílogo, está Gustavo Flávio, após uma operação, em estado grave, mas fora de perigo, a conversar com Mandrake sobre a doença de Luiza, que matara-se após o disparo dos tiros. Raul, o outro delegado, ainda consegue cogitar que Luiza, no passado, havia matado o próprio pai, isto é, seria simultaneamente uma parricida, homicida e suicida. É claro que este desfecho era precipitado e provisório, mas nem Mandrake e muito menos Gustavo gostariam de levar a discussão até o fim. O problema é que a perícia descobriu que a arma que disparou os tiros em Gustavo não era a mesma que tinha sido usada para o assassinato das outras vítimas. Restava uma pergunta: será que foi mesmo Luiza quem matou as demais? A pergunta não é respondida. Gustavo e Mandrake desviam do assunto e preferem ficar falando sobre charutos.

Percebe-se, mais uma vez, que o Bufo não estaria acima de qualquer suspeita, poderia ter sido ele o autor dos crimes. Só quem já o conhecia do Caso Delamare é que poderia não ficar satisfeito com o veredicto final. Pelo que se observa no descaso de ambos, escritor e detetive, em não quererem prosseguir naquele assunto, tudo indica que

Gustavo Flávio ainda era suspeito, embora uma outra versão da história já estivesse traçada, com o aval da polícia e da justiça. Então pergunta-se: um narrador que já ludibriara a crença do leitor na obra de 1985, por que não continuaria a envolvê-lo na teia narrativa? Talvez seja porque o próprio leitor não quisesse acreditar, o leitor preferiu calar e consentir.

Gustavo Flávio matara por amor, um assassino passional. Se ele mente à polícia, é porque sabe que a verdade cronológica e factual seria insuficiente para ilustrar a realidade, despertando no processo investigativo uma série de suspeitas onde ele estaria perdido. E conforme colocou Deonísio da Silva: “Mas, ético acima de tudo, ele não deixa de confessar ao leitor a verdade verdadeira. O leitor sabe quando o narrador precisa mentir ou quando mente apenas por gosto,(...)o leitor sabe que o verdadeiro amor está entre Gustavo e Delfina, e que o adultério, além de não prejudicar a ninguém, acaba sendo a única alternativa para aquele amor.”145

Não podemos deixar de admitir que esta opção narrativa é muito bem sucedida, porque, de alguma forma, nos leva às tentativas de justificação de qualquer medida que seja extrema. E realmente, os personagens e/ou narradores trangressores não se explicam, e quando se explicam, são capazes de forjar a verdade. Essa tarefa é a do narrador em primeira pessoa, que tem grande poder de persuasão, tal a infinidade dos argumentos discorridos. Na ficção de Rubem Fonseca, o narrador é um dos personagens que, ao narrar, presentifica os acontecimentos, onde e quando tenham ocorrido. O leitor, assim, acaba tendo uma perfeita ilusão do real, já que a verossimilhança foi deslocada para o interior da narrativa, de acordo com todas as normas literárias inerentes.