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O narrador de O Buraco na Parede (1995) vive em condições semelhantes ao funcionário público Luís da Silva, de Angústia, de Graciliano Ramos, na mesma linhagem de narradores universais como Mersault, O Estrangeiro, de Camus, e Raskolnikov, em Crime e Castigo, de Dostoievski, todos homicidas por eventualidade. É um homem que mora sozinho no cubículo de uma pensão e que está sempre a observar a vida dos demais vizinhos, assim como espiar a garota Pia trocando-se no banheiro ou Tânia tomando banho de sol no terraço, analogamente a Luís da Silva quando espiava Marina. Aliás, existe esse voyeurismo semelhante ao do personagem Norman Bates, de Alfred Hitchcock. O nosso narrador também tinha em seu quarto, atrás de um quadro, um buraco na parede, o principal signo do conto. Olhando por esse buraco, ele via a banheira, o chuveiro e uma parte do vaso sanitário. Essa seria a sua prática observatória e, por decorrência, onanista, durante a narrativa.

Sua primeira frase já é essa: "Nunca pensei que um dia me pediriam para matar uma pessoa, mas isso aconteceu ontem." Ele demonstra sempre estar entrando num caminho que poderá levá-lo, posteriormente, à ruína, isto é, cada vez que avança em seu ‘retrocesso’, tem presságios de que algo de ruim irá acontecer. Exemplo disso é a menção à tragédia grega, quando o mesmo está a espiar Tânia no terraço, dizia ele que na tragédia “os personagens também agem assim, sentem que estão se enfiando numa

voragem e continuam agindo do mesmo jeito”172. São personagens vulneráveis, que raciocinam, mas se sujeitam às circunstâncias, com olhar contemplativo ou de revolta, e não mudam de direção, prosseguem.

Pia era uma garota, no inflamar de sua puberdade. Tânia, uma mulher já bem vivida, que tinha amantes, vivia com Armando, na pensão, mas assediava o nosso narrador. Este, no princípio, negava, pensava somente em Pia. Até que um dia, levado pela situação, ele cai na rede de Tânia. E ela passa a manipulá-lo, mantendo-se inquisidora e ameaçadora. Sabia da existência do buraco na parede, todos sabiam, obviamente, aquele lugar era uma pensão, o nosso narrador que era meio desligado. Por isso, Tânia passou a transar furtivamente com ele, coagindo-lhe quanto ao voyeurismo que exercia, ameaçando contar a dona Adriana, acusando-o de tarado, onanista, pedófilo, ou o que fosse. Enquanto isso, o tempo ia passando, o destino se inscrevia dentro dele, e ele ficava deitado, trancado no seu cubículo, pensando: “Alguma coisa de grave estava acontecendo comigo.”173

Ele detestava qualquer paisagem, tanto de mar, de montanha, quanto de florestas. O Jovem Escritor, das Agruras, também tinha aversão ao mar. Um dia dissera a Pia que escrevia, fazia poemas. Mais um índice que não nos impede de relacioná-lo à galeria dos narradores, escritores, assassinos, que estão voltados mais para uma perspectiva existencialista, do que, sem dúvida, para a hiperrealista. O nosso narrador começava a sentir que as coisas se armavam em volta de si como um “cipoal de plantas carnívoras”. Ia para a Biblioteca da cidade e:

“Pesquisei assuntos no computador, vendo o que havia para ser consumido, como se fosse o menu de um restaurante. Ler era melhor do que comer. Ler era melhor do que andar. Ler era melhor do que criar sonhos inconscientes, ler era (grifo

172 FONSECA, Rubem. O Buraco na Parede. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 139. 173 Op. Cit., p. 143.

dele)criar sonhos conscientes. Ser surdo era melhor do que ser cego. Ser cego era melhor do que ser paralítico? Ensinei um rapaz estudante de curso noturno a encontrar um livro que o colégio mandara pesquisar, ele não entendia os comandos do computador. Eu gostava de ajudar as pessoas, gostava de mexer no computador, se tivesse dinheiro comprava um computador. Bem que gostaria de trabalhar na Biblioteca, seria o homem mais feliz do mundo se pudesse trabalhar ali.”174

Algumas observações devemos fazer sobre sua fala. A primeira é a de que o seu discurso é híbrido, no que se refere aos outros narradores. Este aqui, além das características de escritor, mantém a mesma postura dos enfermeiros sobre a leitura. Notamos, também, o grifo que dera no tempo verbal do verbo ser, para dar a idéia de que deixara de atrair-se por leitura, aludindo a um passado, muito próximo. Cronologicamente, se este narrador fosse, ipsis litteris, o ex-enfermeiro de velhos, este episódio O Buraco na Parede teria ocorrido depois do Livro de Panegíricos e antes de

O Anjo da Guarda. Mas sabe-se que as analogias não se efetivam tão simplesmente. O

segundo ponto diz respeito a algumas afirmações ambíguas das quais ele lança, como o fato de dizer que ‘gostava de ajudar as pessoas’. Realmente, se fôssemos analisar o seu comportamento do princípio ao fim da narrativa, com o exceção do assassinato que pratica, poderíamos vê-lo como uma pessoa caridosa e amável. Mesmo dentro de sua lógica, quando Pia lhe pediu para matar a sua própria mãe, dona Adriana, ele passou a ser firmemente literal. Ele resolveu matar a velha porque achava que estaria ajudando a menina, que tanto amava.

Antes desse pedido, muita coisa aconteceu, suas observações pelo buraco na parede tornaram-se mais freqüentes, pra não dizer que se transformou numa dietética de prazeres:

“Mas naquele dia olhei pelo buraco e lá estava Pia. Não tirei os olhos. Observei Pia se limpando com o papel higiênico, contemplei seu corpo sendo molhado, o sabão sendo passado pelo corpo, ela se enxugando com a toalha. Peguei novamente o caderno de poesia e escrevi sobre o corpo de Pia.(...) No dia seguinte constatei qual parte do corpo de Pia mais me atraía. Ao espiá-la tomando banho, ao olhar atentamente cada parte do seu corpo – agora a bunda, que palavra horrível essa, pensei, meu corpo ardendo, agora o rosto, agora os seios, eu me masturbava, agora a barriga, o púbis, as coxas, a bunda, surpreendia-me com tantos músculos no seu corpo, e olhava o rosto, o rosto – era o rosto, o rosto de Pia o que mais me excitava. Meu corpo estremeceu e dei um gemido forte, afastei-me da parede, sobressaltado, sentei-me na cama. Notei a parede manchada com meu sêmen, senti-me sujo. Limpei-me, e à parede, com um lenço.”

Eis a pulsão narrativa. Por enquanto essa pulsão vem inscrita nessa descrição anátomo-libidinosa do corpo de Pia, ainda não é a pulsão do mal. O objeto de desejo ainda se encontra como alvo da pulsão sexual. O onanismo não é apenas inferido aqui, como se estivéssemos tentando forçar relações de sentido, o onanismo é fundamentado dentro da própria fala de Armando, que um dia resolve chamar a atenção do narrador, contando-lhe toda o episódio de Onan, provocando-o para uma discussão acerca das diferenças de abordagem entre Bíblia Católica e Protestante. Dizia ele que a Bíblia é um livro cheio de crimes, torpezas, violências, aberrações, iniqüidades, traições, ardis usados para enganar e obter vantagens, prevaricações de todos os tipos. Exemplo disso era a história de Onan, cheia de acontecimentos execráveis. E assim, Armando vai contando ao narrador a história de Onan, declarando que a Bíblia Protestante era menos eufemística do que a Bíblia Católica, menos metafórica, mais literal, denotativa. Traça parte da teoria do coitus interruptus.

Percebe-se, também, que o narrador, apesar de não esquivar-se de seu regime de prazeres, sofria a consciência pós-ato, se culpava e atribuia a si uma série de adjetivos degradantes como ridículo, abjeto, imbecil, infame e reles. Tinha talvez a mesma vileza que um dos heterônimos de Fernando Pessoa, era impulsivo como qualquer narrador

fonsequiano e obsessivo como Alexander Portnoy175, personagem norte-americano que procurava refúgio do excesso de amor doméstico em solitárias práticas sexuais. A diferença é que o nosso herói em questão não tinha amor doméstico algum, o doméstico para ele eram todos que estavam ao seu redor na pensão, principalmente Pia e Tânia. Ele até podia dizer que amava Pia, mas ninguém o queria, a não ser como trâmite de outras metas. E assim, o narrador vai se enterrando cada vez mais naquele pantanal que a sua vida tinha se tornado: transava com Tânia por obrigação e masturbava-se por Pia por prazer. Até que numa frase ele sintetiza o que estaria para ocorrer: “Então aconteceu. É sempre assim, nas tragédias, o mundo desaba de repente.”176

Numa das abordagens a Pia, ela lhe confessa que era virgem. Para estarrecê-lo ainda mais, Pia disse que queria perder a virgindade com ele, desde que ele lhe fizesse uma coisa. Neste instante não há leitor que fique em dúvida, pois sabe que o narrador faria qualquer coisa, até mesmo matar, para conseguir obter Pia como troféu, possuí-la, de fato. Objetivamente ela impõe: “Eu quero que você mate a minha mãe”. Então Pia não era tão ingênua e inofensiva, o quanto esperávamos. Manifestava-se dentro de si a pulsão do mal, tinha um objeto pelo qual alimentava um ódio, muito oculto, muito perverso. Encontrara alguém que pudesse efetivar a sua vontade, sem precisar sujar as próprias mãos. Pia tinha a alma matricida e estava diante da pessoa certa para ajudá-la. Assim, por coincidência ou não, o narrador, à luz das práticas dos personagens de Camus e Dostoievski, e da atmosfera trágica, acaba por executar a velha dona da pensão.

"Com cuidado levantei a cabeça de dona Adriana, retirei o travesseiro, segurei-o com as duas mãos e comprimi-o sobre o seu rosto. O corpo privado de ar foi sacudido por violentas convulsões, ela tentava se livrar da asfixia, debatia-se com energia inesperada numa velha doente, feria com as unhas os meus braços. Tive que subir na cama e sentar sobre sua

175 Ver ROTH, Philip. Complexo de Portnoy. Série Grandes Sucessos. São Paulo: Abril Cultural, 1982. 176 FONSECA, Rubem. Op. Cit., p. 155.

barriga, para poder dominá-la. Demorou muito tempo até que dona Adriana deixasse de lutar. Depois, exausto deitei meu corpo sobre o dela, sempre pressionando-lhe o rosto com o travesseiro." 177

O comportamento do narrador é tão igual ao de Luís da Silva, de Graciliano Ramos. Ele não consegue enxergar além do que acabara de fazer, ele só pensa em Pia. Após o crime, ela diz para ele esperá-la na Biblioteca. O narrador, cegamente, feito Édipo, segue o seu destino e termina refletindo sem querer refletir: “Agora estou aqui, no banco da estação rodoviária. Penso em Pia. Não penso no que vai acontecer, penso no que aconteceu e aconteceu tanta coisa que parece que não vai acontecer mais nada. Espero a manhã chegar, para ir à Biblioteca.”178

Ele tem consciência. Sua consciência lhe diz que não convém ter consciência naquele momento. Serve-se da presentificação, a memória se fixa apenas no que fez no presente. Não tem visão do futuro, nem memória do futuro. Deixa-se levar pelas vicissitudes das pulsões, entrega-se a elas. Esse é o itinerário de um narrador homicida de perspectiva existencialista, com vestígios hiperrealistas. Um coiote, andante e proveniente sabe lá de onde, que se deixou levar pelo impulso sexual. Da possibilidade para a satisfação de seu maior desejo, abriu-se a porta para o crime, só restou-lhe, então, entrar, com todas as honras a que tivesse direito. A consciência - ou o que resta dela, quando há - o aproxima dos existencialistas, a impulsividade é própria do hiperrealistas. A violência em Rubem Fonseca não é apenas um pretexto temático, mas é o eixo que move vários elementos narrativos, personificado em narradores angustiados e bem familiares. Matar é viver.

177 Idem, p. 159. 178 Idem, p. 159.