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7.1 A categorização dos atos administrativos inválidos

7.1.1 Atos inexistentes

Os atos administrativos possuidores de vícios de legalidade, tidos como gravíssimos, devem ser enquadrados e categorizados como atos inexistentes. São considerados gravíssimos os vícios que desviam o ato administrativo para um sentido contrário aos objetivos traçados pela República Federativa do Brasil, bem como, os que desrespeitam os direitos e princípios fundamentais dos indivíduos, dentre os quais se incluem, porém, sem a eles se limitar, os princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da livre manifestação do pensamento, da vida e de outros que podem se mostrar, de equivalente importância, perante determinados casos concretos.

8 Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, quando possível, não se pode negar o saneamento de atos administrativos viciados: ―O grau de intolerância em relação a eles há de ser compassado com o tipo de ilegalidade. Se esta é suscetível de ser sanada, recusar-lhe em tese a possibilidade de suprimento é renegar a satisfação de interesses públicos em múltiplos casos. (BANDEIRA DE MELLO, 2009, p. 472)

Em outras palavras, os atos categorizados como inexistentes são aqueles desrespeitosos quanto aos mais importantes princípios e normas de nossa Constituição Federal. Com este conceito, pode-se vislumbrar o objetivo pretendido, ou seja, o de identificar os atos que merecem repulsa mais intensa por parte da ordem jurídica, mas, como o referido conceito se utiliza de expressões valorativas e pouco precisas, não é possível identificar com exatidão quais são os atos administrativos ilegais pertencentes a esta categoria.

Por este motivo, seria interessante fazer uma melhor definição sobre quais os princípios e normas que estamos considerando como sendo os mais importantes da nossa Constituição Federal. Cabe ponderar que a eleição destes mais importantes princípios e normas perfaz um trabalho árduo, exigindo um estudo absolutamente complexo e de extensão equivalente, ou até maior do que este que estamos desenvolvendo na presente dissertação; por isso, o consideramos como inadequado aos fins objetivados.

Assim, para resolver a questão, optamos por utilizar o instituto da analogia ao caso e adotar a mesma eleição feita pela própria Constituição Federal, quando selecionou as suas cláusulas constitucionais pétreas9. É claro que estas cláusulas pétreas, selecionadas pelo artigo 60, § 4º, são bem específicas; por isso, para algumas delas, pretendemos fazer um trabalho de colheita de seus espíritos e objetivos, para ampliar um pouco mais as suas respectivas abrangências. Referimo-nos às cláusulas pétreas indicadas nos três primeiros incisos do parágrafo 4º do artigo 60, que, a nosso ver, precisam ter os seus respectivos conteúdo ampliados, para que, com a captação de seus valores, seja possível interpretá-las como protetoras indiretas dos objetivos da República Federativa do Brasil, estabelecidos no art. 3º. da Constituição Federal10.

9 Art. 60. […] § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado;

II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes;

IV - os direitos e garantias individuais. […]

10 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Neste sentido, os atos administrativos desrespeitosos ou tendentes a prejudicar os direitos fundamentais dos cidadãos, o sufrágio universal, a forma federativa nacional, a separação dos poderes e os objetivos do Brasil (art. 3º da Constituição Federal), serão categorizados como inexistentes. Convém ressaltar, antes de qualquer dúvida, que estes atos, por nós categorizados como inexistentes, são os mesmos assim categorizados pela doutrina francesa, embora com duas importantes diferenças. A primeira é de que os reconhecemos como existentes para o mundo jurídico, e a segunda é de que estabelecemos um critério preciso para sua identificação11. Sobre a questão do reconhecimento desses atos, como juridicamente existentes, disso trataremos em breve, porque antes aprofundaremos um pouco mais a questão da identificação destes atos.

A identificação destes atos, a que nos referimos acima, que atentam contra os princípios fundamentais de proteção aos cidadãos, também é feita pela doutrina nacional, a qual, na maior parte das vezes, utiliza-se também do rótulo proposto pelos

11 Neste sentido, na França: ―Segundo René Chapus, a jurisprudência francesa considera, por exemplo, como juridicamente inexistentes atos: a) emanados de órgãos sem existência legal; b) manifestamente insuscetíveis de serem referidos a um poder detido pela Administração; c) cujo autor não tem poder de decisão; d) que impliquem invasão na competência judiciária; e) de ―nommination pour ordre‖, ou seja atos de nomeação que se destinam, na verdade, não a prover determinado cargo público mas a permitir que o interessado obtenha benefícios pessoais com tal nomeação, por lhe ensejar acesso a outra posição ou a outras vantagens; f) que ignoram o limite de idade para a permanência no serviço público e mantêm o funcionário no cargo.‖

Já na Alemanha: ―A resultados práticos semelhantes, mas trilhando outros caminhos e adotando outros pressupostos teóricos, chegou o Direito Administrativo Alemão. A Lei do Processo Administrativo, de 1976, consigna, no art. 44, alínea I a, uma cláusula geral, a propósito do ato nulo (nichtig), assim entendido o viciado por falha grave e manifesta à luz de correta apreciação de todas as circunstâncias que deveriam ter sido tomadas em consideração. […]‖. Dentre outros mecanismos, os alemães aplicam a teoria da evidência para identificação destes atos nulos de extrema gravidade. Sobre isso explicam os doutrinadores alemães: ―Nesse sentido é que se manifestam os reputados comentaristas da Lei de Processo Administrativo, Stelkens, Bonk e Sachs, ao sustentarem, com apoio na jurisprudência germânica, que, por si só, a hostilidade a um importante preceito jurídico, até mesmo a uma norma constitucional como a do art. 20, § 3º da Lei Fundamental, ou a um direito fundamental, não leva à nulidade. A contrariedade deve ir além da equivocada interpretação e ser insuportável para o ordenamento jurídico, desse modo ferindo no mais alto grau, a tal ponto que ninguém seria capaz de reconhecer força vinculativa ao ato administrativo assim exarado.‖

Já no Direito Italiano: ―Também lá a nulidade dos atos administrativos ou dos provvedimenti

administrativi, é excepcional e comumente identificada, como na França, com a inexistência. Sandulli

arrola diversas hipóteses de inexistência, decorrentes, por exemplo, da indeterminação do conteúdo do ato (v. gr., delegação a particular de competência que só pode ser exercida por entidade pública) ou da licitude do objeto (v. gr. ordem de submeter um detento a tortura), de incompetência absoluta do agente (v.gr. invasão de agente administrativo na competência do Poder Legislativo ou do Poder Judiciário). Esses atos subordinam-se ao mesmo regime dos atos nulos no Direito Civil: não produzem qualquer efeito; pode sua invalidade ser argüida, a qualquer tempo, por qualquer pessoa ou ser pronunciada de ofício pelo juiz, o que importa também afirmar que a eles não se aplicam as normas sobre prescrição e decadência.‖ (COUTO E SILVA, 2004, p. 60-62)

franceses. Vale nesta oportunidade relacionar os atos que vêm sendo enquadrados nesta hipótese.

Segundo o Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello, os atos inexistentes são aqueles que estão no campo do impossível jurídico; portanto, são comportamentos que o Direito radicalmente inadmite. Enquadrando-se neste campo os crimes que atentem contra a dignidade da pessoa humana, como, por exemplo, as instruções baixadas por autoridade policial para que subordinados torturem presos, autorizações para que agentes administrativos saqueiem estabelecimentos dos devedores do Fisco ou para que alguém explore trabalho escravo12.

No mesmo sentido, a Prof. Weida Zancaner entende como inexistentes os atos que têm por objeto a prática de crime, ou seja, de comportamentos a que o Direito atribui sanção extrema. Diz ainda, que a relação jurídica, que se proponha neles se fundar seria natimorta, porque a própria pretensão ali calcada é havida pelo Direito como radicalmente inadmissível. Para demonstrar na prática quais atitudes se enquadrariam nesta hipótese, a professora relata os seguintes eventos: ordem de uma autoridade para que seu subordinado torture um preso, autorização para explorar trabalho em regime de escravidão, licença de funcionamento de casa de lenocínio, autorização para prática de eutanásia e autorização para um agente saquear as propriedades dos devedores do Fisco13.

Com efeito, os atos considerados, por nós, como inexistentes, assemelham-se bastante aos selecionados pelos professores Celso Antônio Bandeira de Mello e Weida Zancaner, e, pelo critério que adotamos em relação aos mesmos, é possível apontar uma abrangência maior do que a dos relacionados pelos referidos professores. Pelo fato da semelhança entre os atos abrangidos, nota-se que a diferença maior entre o conteúdo que estamos empregando e aqueles adotados pela maior parte da doutrina não está no critério de identificação, mas sim no reconhecimento destes atos como existentes para o Direito.

Uma coisa que chama a atenção para estes atos, está no fato de que comumente nos deparamos com autorizações desse tipo, como constatado nos exemplos citados

12 (BANDEIRA DE MELLO, 2009, p. 478) 13 (ZANCANER, 2008, p. 117-118)

acima. Nos dias de hoje, costumeiramente nos esbarramos com notícias de torturas, milícias, casas de lenocínio, exploração de menores, ações públicas que aumentam a marginalização, atos públicos de racismo ou que, de forma direta ou indireta, acabam por agravar a questão das desigualdades sociais.

A enumeração destes fatos não quer passar a impressão de que estamos fundamentando um trabalho científico em dados na imprensa, mas quer afirmar que estes fatos são notórios e evidentes em nossa sociedade. Por exemplo, as diversas casas de lenocínio e de prostituição, espalhadas nas grandes cidades brasileiras, contam certamente com alvará de funcionamento. Provavelmente os referidos alvarás não digam expressamente que estão autorizando a exploração de prostitutas ou de menores, mas mesmo sem expressar de maneira clara este absurdo, no fundo todos sabem os verdadeiros fins a que se destinam.

O exemplo dado enquadra-se na categoria de ato inexistente, porque a expedição de alvará depende de uma série de atos materiais da Administração, dentre os quais estão a visita e a fiscalização do local. Se fossem efetivamente realizados, não seria permitida a expedição das autorizações e, por via de consequência, os mesmos não ficariam protegidos com atos administrativos que gozam de presunção de verdade. Assim, a exploração, pelos donos destes estabelecimentos, acontece aos olhos de todos, inclusive, da Administração Pública, sem que isso provoque qualquer atitude por parte das autoridades públicas, o que mantém incólume os efeitos destes atos autorizativos.

Além deste exemplo, também podemos citar as torturas ocorridas em presídios ou em ações de poder de polícia, desrespeitosas quanto aos direitos de dignidade dos cidadãos por parte de autoridades públicas, que, em grande parte das vezes, são, sem dúvida nenhuma, ordenadas por agentes públicos hierarquicamente superiores aos seus executores. Estas ordens, a nosso ver, configuram atos administrativos, pois cumprem com aqueles requisitos de existência dos atos, quais sejam, objeto e pertinência ao Direito Administrativo. Por isso, enquadrando-se no seleto e repugnante grupo dos atos inexistentes.

Apenas para ligar o suposto exemplo com a realidade, é válido relembrar o verdadeiro extermínio que ocorreu no presídio de São Paulo, chamado de ―Carandiru‖. Caso concreto que já passou pela Justiça, tendo como resultado, na primeira instância, a

constatação de que houve realmente uma ordem do capitão da Polícia Militar, tanto para a invasão quanto para recomposição da ordem no local, independente da vida das pessoas14.

Grande parte da doutrina reconhece que atos deste tipo são, por vezes, realizados pelas administrações públicas dos entes políticos federados, mas pela intensidade com que aviltam e desrespeitam as normas fundamentais do ordenamento jurídico, entendem que eles estejam fora da ordem jurídica, de tão absurdos que são. E, justamente por este motivo, consideram-nos como inexistentes.

Como já mencionamos em breve relato, não compartilhamos deste entendimento pela concepção de que estes atos, mesmo que absurdos para o universo de nosso ordenamento jurídico vigente, cumprem com os requisitos mínimos necessários à caracterização de suas existências. São eles: o objeto e a pertinência à função administrativa.

Segundo o ensinamento do professor Carlos Ari Sundfeld, a existência do ato inválido não decorre, pois, de qualquer característica intrínseca da declaração, nem de sua conformidade com o sistema jurídico dominante, mas do efeito que lhe é atribuído socialmente. Assim, uma declaração poderá ou não existir como ato jurídico, dependendo do acolhimento que lhe for dado por seus destinatários15.

Com base nas palavras do professor Carlos Ari Sundfeld, não há de se duvidar da existência de ato administrativo nas hipóteses mencionadas acima, por se tratar de autorizações e ordens com objetos ilegais, que estão sempre acontecendo e sendo atendidas pelos seus destinatários, sejam eles destinatários privados ou agentes públicos. Acerca do objeto do ato administrativo, vale lembrar que dedicamos um título sobre o assunto no Capítulo 4, item 4.1 - Pressupostos de existência, deste trabalho.

14 Dos acusados do chamado massacre do Carandiru, nenhum foi preso. Apenas um — o coronel Ubiratan Guimarães — chegou a ser condenado em primeira instância, por decisão do 2º Tribunal do Júri que aplicou a pena de 632 anos de detenção. Mas o militar recebeu o benefício de recorrer da sentença em liberdade, por ser réu primário.

Depois, com mandato parlamentar, levou o processo para o Órgão Especial do Tribunal de Justiça paulista, que anulou o julgamento e o absolveu. Os desembargadores que integravam o colegiado entenderam que Ubiratan Guimarães agiu em estrito cumprimento da ordem e em legítima defesa. A mesma tese é levantada pela defesa dos demais réus. (http://www.conjur.com.br/2010-fev-09/tj-sp- manda-juri-116-policiais-acusados-massacre-carandiru, acesso em 27/02/2011).

Quanto à pertinência à função administrativa, admite-se a possibilidade de controvérsia sob este aspecto, principalmente, quando se alega a ausência de previsão legal para este comportamento administrativo. Porém, não vislumbramos isso como um óbice à manutenção do pensamento ora exarado, em virtude de que a ausência de leis mandatórias ou autorizadoras não impede o Estado de utilizar Princípios Fundamentais de seu regime jurídico, quais sejam: a Supremacia do Interesse Público sobre o Interesse Privado e a Indisponibilidade dos Interesses Públicos pela Administração Pública. Assim, a simples utilização destes princípios pelo Estado concede ao seu ato jurídico força de autoridade, caracterizando-o como administrativo16.

Assim, apesar de vislumbrarmos um problema lógico nesta nomenclatura17, uma vez que estamos nos referindo a atos devidamente existentes para o Direito, segundo os critérios usados na avaliação da existência dos atos administrativos, permaneceremos adotando o referido rótulo, por ser este um nome jurídico já consagrado, inclusive, pela doutrina brasileira.

Por tudo isso, fomos obrigados a dedicar tantas linhas para explicar os atos que categorizamos como inexistentes, para evitar dúvidas sobre o motivo pelo qual estamos mantendo o rótulo de atos inexistentes e, principalmente, sobre quais as diferenças que imputamos ao seu conteúdo, em relação ao conteúdo adotado pela doutrina em geral.

16 A inexistência pode ser declarada, através de ação ordinária declaratória de inexistência de relação jurídica, porém a mesma deve ser promovida antes da constituição da declaração jurídica estatal, caracterizadora do ato administrativos ilegal. Apesar de não possuir entendimento semelhante ao nosso, sobre a questão da diferença entre atos inexistentes e atos inválidos, Almiro do Couto e Silva entende que: ―[...] A distinção que, no campo processual, se estabelece entre atos inexistentes juridicamente e atos inválidos, é que, no concernente aos primeiros, a sentença que reconhece não terem eles ingressado no mundo jurídico é meramente declaratória, enquanto que a sentença que pronuncia a nulidade é constitutiva-negativa.‖ (COUTO E SILVA, 2004, p. 63)

17 Sobre isso explicação, a explicação do professor Carlos Ari Sundfeld: "Não faz sentido, por isso, falar em 'ato jurídico inexistente': o que inexiste para o Direito, não pode ser jurídico. Por tal razão, não se pode acolher a doutrina que chama de inexistentes atos cuja invalidade seja considerada extremamente grave. A invalidade é um atributo exclusivo de normas, isto é, de atos jurídicos."

E complementa: "A teoria dos 'atos inexistentes" surgiu para responder a um problema específico de Direito Privado, onde, vigorando a regra pas de nullité sans texte, e surgindo casos, como o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo [...], a solução parecia ser a de reconhecer validade a atos que, visivelmente, afrontavam a ordem jurídica. Os 'atos inexistentes' constituíram, assim, uma válvula de escape para a excessiva rigidez com que a lei civil tratou da matéria. Contudo, nem no Direito Civil seria o caso de falar em 'ato inexistente', bastando que a doutrina se dispusesse a elabora a idéia de invalidade implícita. No Direito Administrativo, onde o princípio que vigora é 'não há validade sem norma' e onde não há lei - ao menos no caso brasileiro - arrolando hipóteses de 'nulidade' e 'anulabilidade', a teoria dos 'atos inexistentes', sobretudo como formulada em outros campos, não faz nenhum sentido." (SUNDFELD, 1990, p. 22)

Assim, em resumo, vislumbramos duas diferenças fundamentais no conteúdo dos nossos atos inexistentes, quais sejam, o primeiro se volta para o critério de identificação, e que, pela analogia, escolhemos como sendo os valores protegidos pelas cláusulas pétreas, e o segundo diz respeito ao entendimento de que as ordens administrativas, extremamente agressivas ao ordenamento jurídico, implementam as condições necessárias e suficientes para existirem como atos administrativos.

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