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Capítulo III: Um estudo do Cântico dos Cânticos a partir da psicologia

7. Atração sexual e libido

11 Eu sou do meu amado, seu desejo o traz a mim. 12 Vem, meu amado, vamos ao campo,

pernoitemos nas aldeias, 13 madruguemos pelas vinhas, vejamos se a vinha floresce, se os botões se abrem, se as romeiras florescem: lá te darei meu amor...

14 As mandrágoras exalam seu perfume; à nossa porta há de todos os frutos: frutos novos, frutos secos,

que eu tinha guardado, meu amado, para ti.

Esse poema inicia falando da exclusividade dos dois amantes como já vimos em 2,16 e 6,3, mas traz uma novidade no versículo 11: o desejo de um pelo outro, a inclinação para o outro. O vocábulo hebraico tsuqah tem os sentidos de ânsia, paixão, vontade.337 Pode também significar a atração de um amante pelo outro.338

A amada deixa claro que o homem é atraído para ela. O desejo dele o leva até ela. A amada está falando que não só ela ama, mas ela é amada, desejada, o amado anseia por ela, tem vontade de ir até ela, é atraído por ela. Como temos visto, a atração, o erotismo e o amor no Cântico dos Cânticos não assinalam domínio de um sobre o outro, mas sim a exaltação da ternura e da sexualidade.

A amada toma a iniciativa de convidar o amado para ir ao campo e passar a noite nas aldeias. Recordemo-nos de que em 1,8, ou seja, no 2º. poema, o coro indicava para a amada ir em busca do amado junto às tendas dos pastores. Aqui é ela que indica as aldeias. Ela convida para averiguar se a vida está florescendo no ambiente do campo, porque lá ela dará seu amor ao seu amado.

O perfume das mandrágoras e a existência de todos os frutos proporcionam uma atmosfera de entrega total ao amor.

337 Cf. ALONSO-SCHÖKEL, Luis, Dicionário bíblico hebraico-português, p. 710.

Psicologicamente, no texto estão presentes atração sexual e libido. A amada está toda cheia de desejo, sua libido está à flor da pele, ela convida o amado para lhe dar seu amor. Mas, a troca é clara no texto. Há uma correspondência; é disso que a amada fala: o amado se sente atraído sexualmente a ela. Já fizemos uma análise da atração sexual quando estudamos o 3º poema. Dissemos que a atração sexual é um sinalizador para a unio oppositorum (que está presente no 14º poema também) e vai possibilitar a união biológica em seu mais elevado nível. Quando acontecer o ato sexual haverá a unificação, elemento fundamental para a individuação.

Outro aspecto psicológico é sobre a passagem da noite nas aldeias, da madrugada vendo as mandrágoras e a chegada do amanhecer com a abertura dos botões e o florescimento da vinha e das romeiras. Von Franz nos auxilia nessa análise quando analisa o convite do amado da Aurora Consurgens para ir ao campo e, ao amanhecer, ir para a vinha. Lá a passagem da noite e a chegada do dia indicavam a mudança do reinado da mulher, simbolizado pela noite lunar, para o reinado do homem, simbolizado pelo sol que chega com o amanhecer. No Cântico

dos Cânticos, os símbolos psíquicos são os mesmos; psicologicamente temos o

reinado da mulher, representado pela noite lunar, pois foi a amada que convidou para passar a noite juntos e averiguar o florescimento da vida, além de oferecer o seu amor. E o amanhecer simboliza o reinado do homem; foi para ele que a amada deu o seu amor.

Simbolicamente temos um equilíbrio, o reinado da mulher e o reinado do homem, cada qual manifestando seus dons conforme as especificidades do ser mulher e as especificidades do ser homem. Só mediante dois reinados opostos é possível a unio oppositorum, com a qual dar-se-á a passagem pelo campo, com os amantes se amando, simbolizando a união com a natureza num estado de êxtase. E a conseqüente luz que surge na nova manhã simboliza psicologicamente um estado de consciência totalmente novo.

7.2 - 16º Poema: 8,1-4 8

1 Ah! Se fosses meu irmão,

Encontrando-te fora, eu te beijaria, sem ninguém me desprezar; 2 eu te levaria, te introduziria na casa de minha mãe, e tu me ensinarias;

dar-te-ia a beber vinho perfumado e meu licor de romãs.

3 Sua mão esquerda está sob minha cabeça, e com a direita me abraça. 4 Filhas de Jerusalém, eu vos conjuro:

não desperteis, não acordeis o amor, até que ele o queira!

Andiñach interpreta a fala da amada que gostaria que seu amado fosse seu irmão como a oportunidade que ela teria de beijá-lo em público, talvez porque a relação dos dois seja mal vista pela sociedade, como suspeitamos acima, ou pela família dela que a obriga a trabalhar na vinha para não encontrar o amado.

A mãe e casa da mãe da amada são mencionadas como sinais de amor, diferentemente da mãe de Salomão, como vimos em 3,11. A amada imagina que, após encontrar o amado, poderia acompanhá-lo à casa da mãe dela para lá, como num ninho de amor, viver a aventura do amor. Ravasi interpreta “tu me ensinarias” como “tu me iniciarias no amor” e que a amada também teria o que oferecer ao amado interpretando o vinho perfumado e o licor de romãs como “embriaguez da beleza feminina”.339

O versículo 8,3 repete 2,6. E o que foi pedido às filhas de Jerusalém em 2,7 e 3,5 repete-se aqui em 8,4, concluindo este poema com os dois amantes abraçados e o amado adormecido de êxtase de amor nos braços de sua amada.

Como diz Ravasi, este poema mistura tensão e distensão, pois começa com a tensão do convívio social ou familiar e conclui com o relaxamento nos braços da amada.

Psicologicamente retoma-se o que foi tratado sobre o 10º. poema, especificamente 4,9-10, quando o amado chama sua amada de irmã. Aqui é a amada que gostaria que o amado fosse seu irmão.

Como já dissemos, podemos suspeitar nessa relação amorosa o que Jung chama de aspecto incestuoso. Em nossa análise psicológica ao longo dos poemas temos constatado a possibilidade, o desejo e a efetivação da coniunctio. Já dissemos também que o incesto exerce um grande fascínio na vida psíquica. Neste poema é a amada que deseja ver no amado o irmão, ou seja, estamos diante de um indicativo de que o animus se identifica com o amado ao ponto de a amada considerar-se irmã dele. É um indicativo de incesto psíquico, que, como já dissemos, é um processo inconsciente. Ao dizer que o amado poderia ser irmão, a amada não tem consciência do incesto psíquico que o animus está vivenciando. A conseqüência psíquica, como Jung já nos orientou, é que o incesto simboliza a união do ser consigo mesmo, a individuação ou a auto-realização.

Já analisamos em 2,6 o significado psicológico de 8,3 sobre a mão esquerda, símbolo do lado sombrio, do inconsciente.

8 – O ENCONTRO COM O SI-MESMO E A CONTINUIDADE DO PROCESSO