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O caráter arquetípico do amor e a continuidade do processo psíquico do

Capítulo III: Um estudo do Cântico dos Cânticos a partir da psicologia

3. O caráter arquetípico do amor e a continuidade do processo psíquico do

3.1 - 5º Poema: 2,4-7

4 Levou-me ele à adega e contra mim desfralda sua bandeira de amor.

5 Sustentai-me com bolos de passas, dai-me forças com maçãs, oh!

que estou doente de amor... 6 Sua mão esquerda

está sob minha cabeça, e com a direita me abraça. 7 – Filhas de Jerusalém,

pelas cervas e gazelas do campo, eu vos conjuro:

não desperteis, não acordeis o amor, até que ele o queira!

Andiñach afirma que a adega é lugar privativo para as relações íntimas305 e Ravasi diz que é câmara nupcial para celebrar o banquete do amor.306 O termo militar bandeira nada traz de guerra, mas sim o amor. As feridas (a amada está doente) que aparecem são provocadas pelo amor. Para Andiñach este versículo 4 trata da união sexual em que a mulher está recebendo as carícias do seu amado; os bolos de passas e as maçãs, considerados como afrodisíacos, não devem ser entendidos como recursos externos para aumentar o prazer, mas como uma forma de afinar o gosto e refinar o paladar para que possam continuar saboreando a festa dos corpos.

A mão esquerda do amado está debaixo da cabeça da amada e ele a abraça com a outra mão. Há uma troca de ternura, afeto, delicadeza, posse, proteção e atração física. Ravasi assim interpreta a cena erótica: a mão esquerda levanta o

305 Cf. ANDIÑACH, Pablo, Cântico dos Cânticos: o fogo e a ternura, p. 66. 306 Cf. RAVASI, Gianfranco, Cântico dos Cânticos, p. 63.

rosto dela e a mão direita aperta o corpo dela contra o corpo dele. A cena é de profunda troca de carinho e ternura, a ponto de levar o amado ao sono.307 Enquanto isso, a mulher contempla seu homem que adormeceu de tanto carinho nos braços dela. Por isso, ela apela para que as filhas de Jerusalém não despertem o amor. Concordamos com Ravasi que afirma que a amada nomeia o amado com o substantivo Amor. Ravasi diz que o Amor se faz pessoa, se encarna na pessoa.308

Começamos a vislumbrar psicologicamente nesta última afirmação o caráter arquetípico do amor e da relação amorosa no Cântico dos Cânticos. Contrariamos, assim, Andiñach que, sobre Ct 2,2, dizia que o homem e a mulher não estão presentes como arquétipos de um casal ideal, mas como pessoas reais de carne e osso. Para nós, o homem e a mulher são pessoas reais de carne e osso, e arquetípica é a situação psíquica que estão vivendo por se amarem. Quando Ravasi afirma que é a encarnação do Amor, embora refira-se ao Amor eterno e infinito, está dizendo que em cada homem e em cada mulher que se amam e realizam o encontro amoroso, o Amor se encarna. Em nossa opinião, todos os casais de amado e amada experienciam essa situação de amor arquetípica.

Dissemos, acima, junto com Ravasi, que na Bíblia o vinho é símbolo de todo prazer e toda delícia. Neste 5º. poema vemos que a adega é o lugar do encontro íntimo com a troca de carícias e a degustação dos corpos dos amantes. Nessa intimidade, vemos a mão esquerda do amado segurando a cabeça da amada. Dissemos acima que para Jung o lado esquerdo é o lado sombrio, o lado do inconsciente, o lado do coração, de onde saem o amor e também os maus pensamentos. No poema anterior vimos a amada recorrendo à sombra; aqui vemos o amado indo na direção do inconsciente, pelo símbolo da mão esquerda assim como pelo símbolo do sono profundo. Sono é ausência de consciência. A relação amorosa caminha cada vez mais para a profundidade do seu significado psíquico no território do inconsciente.

3.2 - 6º Poema: 2,8-17 A amada

8 A voz do meu amado!

307 Cf. RAVASI, Gianfranco, Cântico dos Cânticos, p. 64. 308 Cf. Ibid., p. 65.

Vejam: vem correndo pelos montes, saltitando nas colinas!

9 Como um gamo é meu amado... um filhote de gazela.

Ei-lo postando-se atrás da nossa parede, espiando pelas grades, espreitando da janela.

10 Fala o meu amado, e me diz: “Levanta-te, minha amada, Formosa minha, vem a mim! 11 Vê o inverno: já passou! Olha a chuva: já se foi!

12 As flores florescem na terra, o tempo da poda vem vindo, e o canto da rola

está-se ouvindo em nosso campo. 13 Despontam figos na figueira e a vinha florida exala perfume. Levanta-te, minha amada, Formosa minha, vem a mim!

14 Pomba minha,

que se aninha nos vãos do rochedo, pela fenda dos barrancos...

Deixa-me ver tua face, deixa-me ouvir tua voz, pois tua face é tão formosa e tão doce a tua voz!” 15 Agarrai-nos as raposas, as raposas pequeninas que devastam nossa vinha, nossa vinha já florida!...

16 Meu amado é meu e eu sou dele, do pastor das açucenas!

17 Antes que a brisa sopre e as sombras se debandem,

volta! Sê como um gamo, amado meu, um filhote de gazela

pelas montanhas de partilha.

Este 6º poema inicia trazendo a voz do amado por meio da fala da amada. Ou seja, o homem não é protagonista, ele fala pela boca da mulher. Isto confirma o que

defende Andiñach de que o Cântico dos Cânticos privilegia a mulher.309 Por outro lado, manifestam-se a voz, a fala, e também o canto da rola. É um elemento importante na relação amorosa: a fala que é instrumento para elogiar, para expressar carinho, para convidar ao amor.

Outro aspecto que notamos é que a mulher aprecia-se a si mesma pondo na boca do homem a frase de que ela é “formosa minha” e a beleza do amado é apresentada comparando-a com a beleza de alguns animais como o gamo e a gazela. A beleza é exaltada em imagens naturais. Ou seja, contrastando com o luxo da corte, a beleza aqui é exaltada pelo que é naturalmente e não pelos adornos luxuosos que contrastavam com a realidade da maioria do povo. Ficar atrás da parede, espiar pelas grades e espreitar da janela podem indicar uma cena diferente do que temos visto, ou seja, os dois amantes estão separados. Até o último poema notávamos que estavam juntos. Andiñach interpreta essa distância como a possibilidade de um laço que une os dois que se amam.

No versículo 14 um aspecto interessante é a amada ser chamada de pomba que se aninha nos rochedos e ser-lhe solicitado que deixe que ele possa ver sua face, que ele ouça sua voz. A amada está longe. Observemos que as pombas são aves que não deixam ninguém aproximar-se delas. Andiñach interpreta esse aspecto como a atitude da amada de se apresentar como enigmática e de difícil acesso, de ser solicitada e ter o poder de decidir se se mostra ou não.310

Nem tudo na natureza é apreciado como belo, por exemplo, as raposas são animais devastadores das vinhas. Amada e amado pedem juntos que elas sejam agarradas, isto é, caçadas. Já dissemos que o vinho simboliza prazer e delícia. A afirmação de ambos de que têm “nossa vinha” e “nossa vinha” está florida, pode implicar em todo prazer e delícia da relação de amor deles. Porém, a devastação da vinha pelas raposas pode ser interpretada com as palavras de Ravasi.

Contra a pureza do amor, desencadeia-se, pois, a força da luxúria, da violência, do ódio e, como numa vinha os predadores fazem estragos, assim o mal pode atentar contra o esplendor do amor. O homem se dirige ao coro e convida-o a criar uma espécie de defesa em torno da vinha maravilhosa do amor no qual ele está imerso, feliz e sereno. A cena do Ct é, então, atravessada por uma faísca de

309 Cf. ANDIÑACH, Pablo, Cântico dos Cânticos: o fogo e a ternura, p. 70. 310 Cf. Ibid., p. 72.

medo; um fio de tragédia se introduz na serenidade dulcíssima da primavera; todo amor tem seus inimigos.311

Porém, no versículo seguinte, o poema afirma a exclusividade do amor e força da unidade dos amantes. Encontraremos no Cântico dos Cânticos três vezes esse estribilho: “Meu amado é meu e eu sou dele”. Interessante notar que neste momento os dois amantes não utilizam recursos, como os da natureza, por exemplo, para expressar sua união. Na primeira frase deste versículo eles são o próprio recurso que expressa que se amam. Na segunda, o amado é o pastor das açucenas; açucena é a amada, como ele dizia no 4º poema. Então ela está afirmando que ele apascenta a ela mesma, isto é, o seu corpo e a sua intimidade. Então, já não estão mais separados. A cena dentro deste 6º poema alterou-se do estar separados para agora estar juntos. Se a amada permite que ele a apascente simboliza que ela se deixa ser acariciada para que ambos dêem e recebam prazer.

Psicologicamente observamos que, após o poema do sono profundo em que se encontrava o amor, neste 6º poema, temos o amado saltitando pelo campo e convidando a ver a vida que brota na primavera. Podemos entender o significado do processo psíquico que não é acabado, ou seja, o processo é contínuo. Daí, compreendermos as dificuldades, como as grades, as pombas que não se deixam acessar, as raposas que devastam a vinha. Eles elementos conflituosos remetem à possibilidade de chegada ao inconsciente, repleto de conteúdos sombrios. Recordamo-nos aqui de que o amor chegara ao sono, isto é, a um ponto de intimidade que atingiria o inconsciente, porém, viver o amor é mais do que completar uma jornada, é percorrer a jornada do amor, quer dizer, é viver continuamente amando e progredindo no processo interior de realização psíquica na relação amorosa.

Quando a amada faz o amado dizer “formosa minha” estamos diante do caráter individual da persona. De acordo com a psicologia de Jung, pode ser que neste indivíduo, que é a mulher, esteja ocorrendo uma identificação do ego com a

persona, embora o Si-Mesmo inconsciente, o que Jung chama de verdadeira

individualidade, não deixe de estar presente. Como vimos a persona é uma aparência. Daí, podermos ouvir a amada se auto-apresentando como “formosa” do

seu amado. Podemos constatar que a amada está sempre apresentando tudo o que é bonito no amado e nela mesma. Há uma identificação como a persona. Como acabamos de afirmar, o Si-Mesmo não está ausente totalmente, ele está impulsionando para que amado e amada cheguem ao momento de despir-se das vestimentas da persona.

Quando a amada afirma a exclusividade do amor e a força da unidade, psicologicamente podemos perceber a energia do ego, a consciência presente. O ego é quem diz: “Meu amado é meu e eu sou dele”.

4 – PROJEÇÃO DOS ARQUÉTIPOS DA ANIMA, DO ANIMUS E DA SOMBRA