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Capítulo II: Pressupostos da psicologia junguiana para uma leitura do

1. Carl Gustav Jung: tópicos biográficos

Iniciamos apresentando Carl Gustav Jung. São as palavras de John Freeman, que faz a abertura do livro O Homem e seus símbolos e foi o responsável pela entrevista com Jung sobre sua vida e sua obra para a BBC (British Broadcasting Corporation) em 1959, que nos oferecem, neste primeiro momento, uma amostra do elevado conceito de Jung, o autor que escolhemos como guia de nosso estudo nesta pesquisa:

Carl Gustav Jung foi um dos maiores médicos de todos os tempos e um dos grandes pensadores deste século [século XX]. Seu objetivo sempre foi o de ajudar homens e mulheres a melhor se conhecerem para que através deste conhecimento e de um refletido autocomportamento pudessem usufruir vidas plenas, ricas e felizes.204

A obra Memórias, Sonhos e Reflexões de Jung surge aos seus oitenta e três anos de idade, quando ele concluía a sua obra científica, o que possibilita uma compreensão produtiva e positiva de sua vida. León Bonaventure, que prefaciou a edição brasileira das Memórias diz que Jung nos introduz no mundo da alma que se estende ao infinito. Estendendo-se o mundo da alma ao infinito, diz Bonaventure que “se Carl Gustav Jung, como qualquer outro, não é possuidor da Verdade, aparece porém mais como um inovador ao traçar um caminho novo para o conhecimento experimental das realidades vivas da alma”.205

León Bonaventure e Nise da Silveira206 explicam que Jung desenvolveu suas pesquisas a partir da observação de tudo o que acontecia consigo mesmo. O processo de individuação que ele introduzirá conceitualmente foi fruto da descoberta do processo de individuação que ele teve em sua vida, isto é, de sua própria experiência vivida.

204 JUNG, Carl Gustav, O Homem e seus Símbolos, p. 15. 205 IDEM, Memórias, Sonhos e Reflexões, p. 6.

Bonaventure diz também que, diante da situação psicológica de conflito em que vive o homem moderno, situação essa que tem como reflexo a crise da nossa civilização, Jung se sentiu obrigado a aprofundar as implicações de sua própria experiência, com base na sua experiência clínica e num rico material histórico. Ele não é apenas um dos fundadores da psicologia moderna e um dos maiores psiquiatras do século XX, mas é também um típico homem moderno que, por ter buscado, encontrou um sentido e uma solução para os seus conflitos.

Aniela Jaffé, analista, secretária particular de Jung e sua biógrafa, na introdução às Memórias, conta-nos que vários caminhos levaram Jung a confrontar- se com problemas religiosos, como suas experiências quando criança, filho de um pastor protestante; sua fome de conhecimento, que se apossava de tudo o que se referisse à alma; sua curiosidade de homem de ciência e sua consciência de médico. Sendo médico, Jung sabia também que a atitude religiosa interfere nos tratamentos dos males da alma. Descobria assim que a alma cria imagens de conteúdo religioso, ou seja, imagens de natureza religiosa e, portanto, para não se chegar às neuroses, era necessário levar em conta essas imagens de natureza religiosa no tratamento dos seus pacientes. Embora, como recorda-nos Jaffé, o conceito de religião de Jung não foi totalmente compreendido, uma vez que sua concepção de Deus não é somente a de um “protetor” ou a do “bom Deus”. Aniela confirma, no entanto, que Jung se declarava cristão, e que a maioria das suas obras tratam dos problemas religiosos do homem cristão. Claro que sua perspectiva não era teológica, mas sim do ponto de vista psicológico. “Em suas obras científicas Jung nunca fala de Deus, mas da imagem de Deus na alma humana.”207

Carl Gustav Jung tinha o mesmo nome de seu avô paterno que fora um ilustre médico e professor na Faculdade de Medicina da Universidade de Basiléia, na Suíça. Seu pai era Johann Paul Achilles Jung, pastor que se tornou teólogo. Sua mãe era Emilie Jung, filha de uma família protestante. Jung nasceu aos 26 de junho de 1875, em Kesswil, na Turgóvia, Suíça, mas aos quatro anos de idade a família mudou-se para Klein-Hüninguen, perto de Basiléia, um dos mais importantes centros culturais da Europa, na segunda metade do século XIX, onde Jung fez seus estudos de medicina. Quando tinha nove anos de idade, nasceu sua irmã Gertrud Jung, que viveu de 1884 a 1935. Jung conseguiu bolsa de estudos na Universidade para

cursar medicina, pois sua família não tinha recursos para mantê-lo nos estudos, e concluiu o curso médico em 1900, quando deixou Basiléia e foi trabalhar no hospital Burghölzli da Universidade de Zurique, como segundo assistente.

Jung conta nas Memórias como foi que optou pela carreira de psiquiatra, assim que leu o prefácio do livro Lehrbuch der Psychiatrie (Manual de Psiquiatria) de Krafft-Ebing.

Algumas linhas adiante, o autor denominava as psicoses “doenças da personalidade”. De repente, meu coração pôs-se a bater com violência. Precisei levantar-me para tomar fôlego. Uma emoção intensa tinha se apoderado de mim: num relance, como que através de uma iluminação, compreendi que não poderia ter outra meta a não ser a psiquiatria. Somente nela poderiam confluir os dois rios do meu interesse, cavando seu leito num único percurso. Lá estava o campo comum da experiência dos dados biológicos e dos dados espirituais, que o encontro da natureza e do espírito se torna realidade.

Produziu-se em mim uma reação violenta quando li em Krafft-Ebing o que dizia respeito ao caráter subjetivo do manual de psiquiatria. Esta última – pensava eu – é em parte a confissão pessoal de seu ser e que subentende a objetividade de suas constatações. O psiquiatra só pode responder à “doença da personalidade” pela totalidade de sua própria personalidade. Meus professores de clínica nunca me haviam dito algo de semelhante. Apesar do manual em questão não se distinguir dos outros livros do mesmo gênero, tais esclarecimentos iluminaram o problema da psiquiatria me atraindo irremediavelmente para sua trilha.208

Em 1902 o brilhante Jung passava a ser o primeiro assistente e defendia sua tese de doutorado: Zur Psychologie und Pathologie sogenannter occulter

Phaenomene (Sobre a psicologia e a patologia dos assim chamados fenômenos ocultos).209

Sua tese era o resultado das suas observações de uma jovem médium espírita de pouco mais de quinze anos de idade; interpretou os espíritos que a jovem manifestava como personificações de aspectos diferentes e até opostos da própria jovem e classificou-os em dois tipos, o grave-religioso e o alegre-libertino.210

Jung se casou em 1903 com Emma Rauschenbach, cujo nome de casada passou a ser Emma Jung. Tiveram cinco filhos: Agathe, Gret, Franz, Marianne e Helen, e muitos netos.

208 JUNG, Carl Gustav, Memórias, Sonhos e Reflexões, p. 104. 209 Ibid., p. 102.

Ao escrever o prólogo das Memórias, Jung se refere ao conteúdo do seu interior, o que ele sempre levou em conta no desenvolvimento das suas pesquisas. Ao explicar que está contando a sua história, ele diz

Em última análise, só me parecem dignos de ser narrados os acontecimentos da minha vida através dos quais o mundo eterno irrompeu no mundo efêmero. Por isso falo principalmente das experiências interiores. Entre elas figuram meus sonhos e fantasias, que constituíram a matéria original de meu trabalho científico. Foram como que uma lava ardente e líquida a partir da qual se cristalizou a rocha que eu devia talhar.211

É este homem, tão aberto e disponível ao mundo interior, ao inconsciente, que nos dará pistas, que como ele mesmo nos ensina, não são as únicas, mas são possibilidades, de reflexão acerca da relação íntima de amor entre o homem e a mulher que encontramos nas páginas do poema bíblico do amor, o Cântico dos

Cânticos.