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Capítulo III: Um estudo do Cântico dos Cânticos a partir da psicologia

1. Cântico dos Cânticos: um livro da coniunctio do amado e da amada

O título do livro está no primeiro versículo (Ct 1,1): Cântico dos Cânticos de

Salomão ou, como na Bíblia de Jerusalém, O mais belo cântico de Salomão.293

1.1 - 1º POEMA: 1,2-4 A amada

2 Que me beije com beijos de sua boca! Teus amores são melhores do que o vinho, 3 o odor dos teus perfumes é suave,

teu nome é como óleo escorrendo, e as donzelas se enamoram de ti... 4 Arrasta-me contigo, corramos! Leva-me, ó rei, aos teus aposentos e exultemos! Alegremo-nos em ti!

Mais que ao vinho, celebremos teus amores! Com razão se enamoram de ti...

O livro do Cântico dos Cânticos começa com a amada expressando o seu desejo de ser beijada pelo seu amado. O que está sendo exaltado não são os dotes de amante dele, mas sim a capacidade de beijar a sua amada e de desfrutar o que acontece nela quando é beijada por ele. A amada distingue o sabor do amado e do vinho. Segundo Andiñach, o vinho tinha o significado da riqueza e do poder, tal como o ouro e o mármore,294 mas o amor é muito melhor do que tudo isso. Segundo Ravasi, saborear o vinho, na Bíblia, é símbolo de todo prazer e de toda delícia,295 mas a amada diz que os amores dele são melhores, ou seja, o prazer e a delícia que

291 Alguns poemas que se constituem de apenas um ou dois versículos na visão de Andiñach poderão ser reunidos num conjunto maior de versículos por nós, constituindo poemas maiores neste nosso estudo.

292 BÍBLIA de Jerusalém, nova ed. rev. ampl. São Paulo: Paulus, 2002.

293 Já fizemos nossa análise da referência ao nome Salomão, ver p. 13 da introdução desta pesquisa. 294 Cf. ANDIÑACH, Pablo, Cântico dos Cânticos: o fogo e a ternura, p. 51.

o amado lhe oferece são melhores que o prazer e a delícia simbolizados pelo vinho. Fica claro que o sentido do paladar está em ação: o sabor do beijo do amado. Recordamo-nos aqui da análise da teóloga Nancy C. Pereira que propõe a leitura do

Cântico dos Cânticos a partir dos sentidos, perguntando-se pelos corpos dos

protagonistas desse encontro de amor, escutando no texto os gemidos e sentindo os odores e os suores do homem e da mulher que se amam nas páginas do nosso texto bíblico.

O sentido do olfato é evocado quando a amada sente o odor dos perfumes do amado e também o sentido do tato, porque o nome com o óleo escorrendo significa a pessoa do amado com o óleo derramado sobre o seu corpo.

A amada reconhece que seu amado é desejável não só por ela, mas também por outras mulheres, tamanha é a sua beleza.

Mas ele está com ela, pois no versículo 4 podemos notar que os dois estão juntos. E ela pede que ele a leve aos seus aposentos e o chama de rei, uma forma verbal de exaltá-lo. Seu desejo é que ele a leve aos aposentos dele, ou seja, lugares fechados e privativos onde é possível o jogo erótico. Ali ela quer que exultem, alegrem-se nele (“Alegremo-nos em ti”), ou seja, a amada quer que haja uma ação de amor de ambos, uma reciprocidade amorosa. O verbo está na primeira pessoa do plural e no imperativo: nós exultemos, nós nos alegremos. O imperativo indica o desejo de que aconteça, mas ainda não aconteceu.

Podemos fazer a seguinte análise psicológica destes dois amantes concretos do Cântico dos Cânticos neste primeiro poema. Vimos que para Jung a sexualidade não é a única, mas é expressão fundamental da totalidade psíquica. Como pudemos observar, há um desejo sexual que pode ser percebido no convite da amada para que os dois se alegrem nele nos aposentos dele. Esse desejo de encontro entre mulher e homem para que se alegrem, completem-se na alegria, é um desejo de totalidade. As condições corporais, tais como o paladar do beijo, o olfato dos perfumes, o tato da textura do óleo percorrendo o corpo, instigam na amada o desejo para o encontro com o seu amado porque o seu corpo encontrar-se-á com o dele e haverá uma possibilidade de totalidade psíquica nesse encontro.

Essa mulher quer sentir-se completa psiquicamente e sua capacidade de amar coloca-a em direção ao amado, que pode lhe oferecer um encontro íntimo da sexualidade, criando condições de realização desse sentimento de completude, o que a torna feliz. Como nos ensina Jung, a coniunctio é aquela ligação química que

atrai os corpos a serem ligados entre si. A fala da amada neste primeiro poema exprime seu desejo de coniunctio. Sabemos que coniunctio significa a união, mas estamos captando a união mística, ou melhor, o encontro psíquico de dois seres humanos que se amam.

Tanto Pablo Andiñach296 quanto Gianfranco Ravasi297 afirmam que nestes primeiros versículos no primeiro poema estão presentes os temas centrais do

Cântico dos Cânticos: o homem, a mulher e o amor. Entendemos psicologicamente

isto como o anúncio nestes primeiros versículos de que o Cântico dos Cânticos é um livro da coniunctio do amado e da amada.

1.2 - 2º. Poema: 1,5-8 A amada

5 Sou morena, mas formosa, ó filhas de Jerusalém,

como as tendas de Cedar e os pavilhões de Salma. 6 Não olheis eu ser morena: foi o sol que me queimou; os filhos de minha mãe se voltaram contra mim,

fazendo-me guardar as vinhas, e minha vinha, a minha... eu não a pude guardar.

7 Avisa-me, amado de minha alma, onde apascentas, onde descansas o rebanho ao meio-dia,

para que eu não vagueie perdida

entre os rebanhos dos teus companheiros. Coro

8 Se não o sabes,

ó mais bela das mulheres, segue o rastro das ovelhas, leva as cabras a pastar junto às tendas dos pastores.

É a amada quem abre este segundo poema. Ela está justificando a cor de sua pele, que está morena porque foi queimada pelo sol, uma vez que ela trabalha debaixo do sol tropical nas estepes cuidando das vinhas dos seus irmãos. Ela se justifica perante as filhas de Jerusalém, que são jovens de nascimento nobre, uma

296 Cf. ANDIÑACH, Pablo, Cântico dos Cânticos: o fogo e a ternura, p. 53 297 Cf. RAVASI, Gianfranco, Cântico dos Cânticos, p. 39.

vez que na Antigüidade a cor branca da pele era considerada sinal de nobreza e alto nível social enquanto a cor morena era sinal da escravidão e do povo trabalhador em geral. Ela justifica, mas não se envergonha; pelo contrário, faz comparações da sua cor com as tendas negras dos habitantes do deserto das tribos nômades de Cedar e Salma.

Andiñach afirma que os irmãos a obrigam a trabalhar como uma forma de retê-la para que não se encontre com o amado, pois a regra era que os pais procurassem o noivo para a filha, sem consultá-la, e não o que esta mulher está fazendo desde o início, ou seja, que ela quer ser beijada pelo seu amado e não por qualquer homem que ela não conheça.

Ravasi nos ajuda a entender quando a amada fala da sua vinha, esclarecendo que ela confessa ter abandonado a sua vinha, ou seja, ela deixou o trabalho para ir atrás do seu amado, o que provoca a ira dos irmãos. Não adiantou nada os irmãos colocarem-na para trabalhar, pois ela quebra esses laços familiares e vai à procura do seu amor. Ela está fazendo uma declaração de autonomia a respeito de seu corpo e de seu destino.

No versículo 7 a amada dirige-se ao amado e quer encontrá-lo ao meio-dia. Ela não quer ser confundida com uma mulher que esteja em busca de companhia sexual quando passar por entre os outros pastores, companheiros do seu amado; por isso, pede a ele que avise qual é o local certo onde ele descansa ao meio-dia. Andiñach fala também do modelo estilístico da composição do Cântico dos Cânticos que expressa sempre busca e encontro ao longo de todo o livro. É muito interessante o vocativo com que a amada se dirige ao amado, chamando-o de “amado de minha alma”. Ravasi esclarece-nos que

“alma” em hebraico (nefesh) não é tanto algo espiritual, é a própria respiração da pessoa, isto é, o seu próprio existir: o amado é a respiração da pessoa enamorada, à sua própria vida; sua ausência é morte, é a destruição do próprio “eu” do amante.298

No versículo 8 é o coro quem fala, indicando à amada que encontre o amado de sua alma junto às tendas dos pastores. O local está definido como ela pedira. Ravasi proclama que para a mulher abre-se uma esperança. O silêncio que predominava desde o início está para ser quebrado. O sol que antes queimava a

pele agora é “o sinal de uma luz interior”299: a de que em breve a amada e o amado de sua alma vão se encontrar. O encontro de amor é ainda uma expectativa. É somente uma indicação do coro.

Marie-Louise von Franz oferece-nos uma colaboração para a interpretação psicológica do início deste segundo poema. Ao analisar a Aurora Consurgens quando a amada se declarava negra e escura, como vimos, von Franz explica que a pele morena toca no tema da nigredo, que se refere ao obscurecimento da consciência. Podemos interpretar junto com von Franz que a amada passa por um obscurecimento da consciência, tanto do ponto de vista social, pois ela vive sob o domínio dos irmãos que a obrigam a trabalhar, assim como do ponto de vista psicológico, pois recordando-nos da nigredo como a umbra solis (sombra do sol) podemos afirmar que essa mulher está vivendo como sombra do ambiente familiar. Ela é a sombra de um sistema patriarcal que esconde a exploração da mulher na aparência de trabalho de cuidar das vinhas, o que na verdade esse trabalho forçado é para tentar impedi-la de ir atrás do homem que venha a amar e, assim, terá de aceitar a decisão do pai que escolherá o homem para ela. Enquanto essa mulher fica debaixo do sol, a opressão que ela vive mancha a sua pele com a queimadura do sol; ou seja, a nigredo, o obscurecimento da consciência, se apresenta como a pele morena, escurecida pelo sol. Como vimos, a sombra se refere aos aspectos obscuros da personalidade, aquilo que é rejeitado pelo eu consciente e pelo convívio social. Sendo assim, a opressão na qual vive essa mulher, mesmo que aparentemente como padrão de relações sociais, é algo que fica na sombra, queimando debaixo do sol, escurecendo a pele.

Quando a amada se justifica perante as filhas de Jerusalém, vemos a ação do ego que tenta a aprovação social, levantando comparações de sua cor com as tendas negras das tribos nômades. É o ego entrando em ação perante a possibilidade da não-aceitação social representada pelas filhas de Jerusalém.

Quando a amada conta que não pôde guardar a vinha, pois ia atrás do seu amado, podemos ver psicologicamente a presença do impulso natural da psique para a libertação, isto é, para a conscientização; a natureza humana se constitui de princípios básicos para a efetivação da conscientização, da saída da sombra, em direção ao que chamamos anteriormente de processo de individuação. Vemos que a

amada quer encontrar-se ao meio-dia, horário do sol forte, o que poderia parecer um paradoxo, pois é o horário em que ela poderia queimar-se mais. Porém, a luz do sol não é vista mais pela amada como fonte de escurecimento, pelo contrário, é a presença de sol que dará a oportunidade do encontro de amor, ou seja, daquela autonomia pela qual a amada grita. A luz tem o papel de proporcionar chances de individuação. Ela que se tornar um ser único (individuação), realizada e feliz, a tal ponto que não quer ser comparada com outras mulheres.

Com a expressão “o amado de minha alma” a amada sinaliza para o seu estado psíquico de desejo de individuação através da coniunctio, pois, como vimos, a individuação é um processo objetivo de relação com outra pessoa. Se, ao dizer “amado de minha alma” a mulher está expressando que o amado é a respiração dela, e a ausência desse amado é a destruição do eu dela, podemos entender psicologicamente que “amado de minha alma” é a expressão de íntima relação entre dois seres humanos cujos rumo e direção são a individuação, pois eles têm a condição relacional que possibilitará a cada um tornar-se único.

A esperança que se abre com a voz do coro, o sinal de luz interior, são indicações de que o encontro do amado e da amada no Cântico dos Cânticos será uma realização da coniunctio.

Com a expectativa psicológica que estes dois poemas iniciais despertam, caminhemos rumo ao poema seguinte.

2 – O DESEJO SEXUAL E A UNIO OPPOSITORUM