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Capítulo II: Pressupostos da psicologia junguiana para uma leitura do

2. Jung e Freud: amizade e ruptura

Uma primeira pista de reflexão que poderemos tirar do ensinamento de Carl Gustav Jung para a nossa pesquisa sobre o amor humano é a partir do que ele nos conta nas Memórias sobre sua relação e seu rompimento com Sigmund Freud.212

Jung conta que diante do seu interesse pelos doentes com casos paranóides, de loucura maníaco-depressiva e de perturbações psicógenas, sentiu-se estimulado a ler os estudos de Freud e de outros autores. Entre esses estudos, teve importância decisiva para Jung o trabalho de Freud Interpretações dos Sonhos, que Jung lera em 1900 e retomou em 1903 e no qual Freud buscava um método de análise e interpretação dos sonhos, que ofereceu a Jung componentes para compreender as formas de expressão esquizofrênicas e o mecanismo de recalque. Encontrou nesse livro a concordância entre o que Freud afirmava teoricamente e o que ele observava nos doentes na prática clínica. Porém, já nesse início Jung esclarece que discordava de Freud quanto ao conteúdo do recalque, pois este apontava como causa do recalque o trauma sexual, enquanto Jung achava essa resposta insatisfatória, pois

211 JUNG, Carl Gustav, Memórias, Sonhos e Reflexões, p. 20. 212 Ibid., pp. 133-151.

dizia que em muitos casos que atendera na clínica a sexualidade tinha desempenhado papel secundário, havendo outros fatores principais, como por exemplo, problema de adaptação social e sofrimento por acontecimentos trágicos da vida.

Nas Memórias Jung insiste em dizer que, embora fosse amigo de Freud, não podia concordar que todas as neuroses fossem causadas por recalques ou traumas sexuais.

Jung achava Freud um homem extraordinariamente inteligente, penetrante e notável sob todos os pontos de vista, mas não compreendia, talvez por ser mais jovem e com pouca experiência diante de Freud, se a ênfase de Freud na apreciação da sexualidade estaria ligada a seus próprios preconceitos subjetivos ou se ele teria realizado experiências objetivamente demonstráveis. Mais problemática, na visão de Jung, foi a atitude de Freud diante da espiritualidade. Jung conta que toda expressão de espiritualidade numa pessoa ou numa obra de arte era interpretada por Freud como sexualidade recalcada. Freud falava da psicossexualidade.

Jung avalia que quando Freud tocava no tema da sexualidade seu tom era insistente e sua atitude crítica desaparecia, sua fisionomia se modificava; a sexualidade era uma realidade numinosa.213

Em 1910 numa conversa Freud provocou um choque que abalou o cerne da amizade deles. Freud pedira a Jung que nunca abandonasse a teoria da sexualidade tornando-a um dogma e um baluarte contra o que ele chamou de lodo negro do ocultismo. Jung procurava entender o que Freud pensava do ocultismo e chegava à conclusão de que para Freud ocultismo se referia a tudo o que tanto a filosofia, como a religião e também a parapsicologia diziam a respeito da alma, com

213 Numinoso é um termo precioso para Jung, a partir do qual, na sua obra Psicologia e Religião Vol. XI/1 das Obras Completas, explica o que entende por religião. “Religião é – como diz o vocábulo latino religere – uma acurada e conscienciosa observação daquilo que Rudolf Otto acertadamente chamou de ‘numinoso’, isto é, uma existência ou um efeito dinâmico não causados por um ato arbitrário. Pelo contrário, o efeito se apodera e domina o sujeito humano, mais sua vítima do que seu criador. Qualquer que seja a sua causa, o numinoso constitui uma condição do sujeito, e é independente de sua vontade. De qualquer modo, tal como o consensus gentium, a doutrina religiosa mostra-nos invariavelmente e em toda a parte que esta condição deve estar ligada a uma causa externa do indivíduo. O numinoso pode ser a propriedade de um objeto visível, ou o influxo de uma presença invisível, que produzem uma modificação especial na consciência. Tal é, pelo menos, a regra universal.” JUNG, Carl Gustav. Psicologia e Religião, p. 9, o itálico é do autor. Veja-se também OTTO, Rudolf. O Sagrado. Trad. João Gama. Lisboa: Edições 70, 2005, passim.

o que Jung não concordava, pois a teoria sexual era uma hipótese não demonstrada e parecia-lhe também tão oculta. Jung avalia que Freud, que tinha origem judaica e que vivia proclamando sua irreligiosidade, tinha substituído Deus por outra imagem que se impusera a ele, a da sexualidade. Jung diz: “a ‘libido sexual’ se revestira e desempenhara nele o papel de um deus oculto”.214 Para Jung, Freud era cego em relação ao paradoxo dos conteúdos do inconsciente. Ele diz que “se Freud tivesse apreciado melhor a verdade psicológica que faz da sexualidade algo de numinoso – ela é um Deus e um Diabo – não teria ficado prisioneiro de uma noção biológica mesquinha”.215

Jung conta que em 1909, por ocasião da viagem aos Estados Unidos, quando passaram juntos sete semanas, ambos analisavam seus próprios sonhos. Ele considerava as análises importantes e a sua relação com Freud preciosa. Numa dessas interpretações, Jung pedira a Freud que lhe revelasse algo a mais de sua vida particular para poder aprofundar a interpretação do sonho que Freud tivera. Mas este deu a Jung uma resposta que prefigurou a iminência do fim de suas relações, a de que não podia arriscar sua autoridade contando-lhe mais detalhes. Jung revela que naquele momento Freud perdia diante dele essa autoridade. Foi a partir de um desses sonhos que Jung formulou a noção de inconsciente coletivo. E é a partir daí que Jung diz que tomou consciência da grande diferença que separava a atitude mental de Freud da sua. Jung diz:

Nunca pude concordar com Freud que o sonho é uma “fachada” atrás da qual seu significado se dissimula, significado já existente, mas que se oculta quase que maliciosamente à consciência. Para mim, os sonhos são natureza, e não encerram a menor intenção de enganar; dizem o que podem dizer e tão bem quanto o podem como faz uma planta ou uma animal que procura pasto.216

Mais adiante Jung afirma que enquanto elaborava seu livro Metamorfoses e

Símbolos da Lidido teve sonhos que indicavam a sua ruptura com Freud. Sobre os

conteúdos de seus sonhos, Jung afirma: “esse era o meu mundo, no mais íntimo

214 JUNG, Carl Gustav, Memórias, Sonhos e Reflexões, p. 137. 215 Ibid., p. 139.

sentido da palavra, sem relações com o de Freud. Tudo em mim buscava essa parte ainda ignorada, que pudesse dar sentido à banalidade da vida”.217

Na busca incessante da cura das neuroses, Jung se deu conta de que Freud sofria de uma neurose e daquilo que o próprio Freud lhe ensinara: de que todas as pessoas têm alguma neurose. Nem Freud nem seus discípulos conseguiam compreender que era importante para o estudo da psicanálise o fato de que Freud não conseguia sair da sua própria neurose. Quando Freud tenta estabelecer a teoria da sexualidade como um dogma, Jung tomou a decisão de afastar-se dele. A exposição de suas concepções, distintas das de Freud, no livro Metamorfoses e

Símbolos da Libido custou a Jung a amizade de Freud.

Jung afirma que a sexualidade é expressão fundamental – não a única – da totalidade psíquica. Ele diz que sua preocupação essencial era aprofundar a sexualidade além de seu significado pessoal e de sua função biológica, explicando o seu lado espiritual e o seu sentido numinoso. Portanto, para Jung sexualidade e religião não são incompatíveis.

Enquanto Freud lança a sexualidade para o âmbito da repressão, pois a vê como a causadora dos traumas ou recalques psíquicos, Jung abre o diálogo para a compreensão da relação entre o instinto sexual e a capacidade de experienciar o numinoso.

Esta intenção de Jung é muito interessante para esta pesquisa que estamos empreendendo, uma vez que vislumbramos em um livro sagrado, que é o Cântico

dos Cânticos, a sexualidade do homem e da mulher que se amam e se relacionam

mutuamente.

Jung diz que seus livros Psicologia da Transferência e Mysterium

coniunctionis expõem suas idéias sobre o tema. Assim se refere Jung a estas duas

obras enquanto descreve as Memórias; o texto de Psicologia da Transferência está publicado dentro da obra Ab-reação, Análise dos Sonhos, Transferência como o volume XVI/2 das Obras Completas de C. G. Jung, que é muito importante para esta nossa pesquisa e uma das bases deste segundo capítulo. Mysterium coniunctionis é uma obra publicada em três volumes: XIV/1, XIV/2, XIV/3 das Obras Completas. Os três volumes serão por nós pesquisados, porém, o volume XIV/3 é particularmente

importante porque, como veremos, contém o texto da Aurora Consurgens, que é ligado ao Cântico dos Cânticos, e o comentário junguiano de Marie-Louise von Franz, que se constituirão como mais uma das bases deste capítulo. Outras obras valiosas de Jung serão citadas e fornecerão importantes contribuições para esta nossa pesquisa, como veremos.

3 – A CONIUNCTIO E OUTROS CONCEITOS DA PSICOLOGIA JUNGUIANA