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Capítulo III: Um estudo do Cântico dos Cânticos a partir da psicologia

2. O desejo sexual e a unio oppositorum

O amado

9 Minha amada, eu te comparo à égua atrelada ao carro do Faraó!

10 Que beleza tuas faces entre os brincos, teu pescoço, com colares!

11 Far-te-emos pingentes de ouro cravejados de prata.

Dueto

12 – Enquanto o rei está em seu divã meu nardo difunde seu perfume. 13 Um saquinho de mirra

é para mim meu amado

repousando entre meus seios; 14 meu amado é para mim cacho de cipro florido entre as vinhas de Engadi.

15 – Como és bela, minha amada, como és bela!...

Teus olhos são pombas.

16 – Como és belo, meu amado, e que doçura!

Nosso leito é todo relva.

17 – As vigas da nossa casa são de cedro, e seu teto, de ciprestes.

O amado compara sua amada à égua do carro do Faraó, explorando o símbolo da beleza e da sexualidade impressos na égua; ou seja, além de utilizar a comparação com vários animais ao longo do texto para exaltar a beleza, o amado quer expressar que sua amada o atrai sexualmente. Andiñach esclarece que os carros do Faraó não eram puxados por éguas, mas por cavalos que ficavam em abstinência sexual durante as campanhas promovidas pelo rei do Egito. Quando esses cavalos voltavam e viam uma égua brotava neles uma força incontrolável animada pelo impulso sexual.300 Ou seja, a fêmea era a causadora do despertar sexual. O amado, portanto, pode estar dizendo à sua amada que a compara porque ela faz despertar nele a força do desejo sexual.

Este sentido deste poema continua no símbolo seguinte, o do adorno com brincos e pingentes de ouro, que exaltam a beleza erótica da mulher. O amado utiliza o verbo no plural, ou seja, “faremos para ti” brincos e pingentes de ouro pode significar que os dois farão com que, através do amor deles, os pingentes terão valor tão alto como alto é o valor do ouro naquela sociedade.

Diferentemente da cena anterior vislumbrada como um encontro junto às tendas dos pastores, agora a amada diz que seu amado é como um rei que está sentado no divã. O ambiente não é de uma tenda, mas sim um ambiente reservado. Enquanto o amado compara sua amada a uma égua, ela aqui o compara aos perfumes da natureza, quais sejam, do nardo e da mirra. Ela deixa claro que o nardo é dela (“meu” nardo), o que nos leva a entender o sentido de pertença e de exclusividade. Por isso, falamos acima que no Cântico dos Cânticos um dos elementos característicos é a fidelidade; esse homem e essa mulher se pertencem unicamente um ao outro.

É uma imagem erótica a do amado repousando entre os seios de sua amada. “Ele é abandonado ternamente sobre o corpo da sua mulher.”301 O amado foi comparado ao perfume da mirra. Quer dizer que ele tem um perfume que cativa a sua amada. O perfume do homem é tão provocante à mulher que, em seguida, ela compara seu amado com um cacho de flores perfumosas. Engadi, conta-nos Andiñach, é um oásis localizado à margem do mar Morto, cujo refúgio e beleza e a presença de água potável contrastam com a águas salgadas do mar Morto e a aridez do deserto.302 A cena erótica é bela: o homem passa a noite no refúgio dos seios da amada.

O dueto com elogios e cantos de comparações da beleza recíproca utilizando imagens de animais e de elementos da natureza fazem-nos pensar que homem e mulher estejam deitados juntos trocando carícias e afetos, pois até a respeito da cama eles falam. Do divã passaram para a relva; a natureza se torna o palco para o ambiente de amor; sua casa não tem paredes, mas vigas de cedro e teto formado pelo entrelaçar-se dos vértices oscilantes dos ciprestes, ou seja, o ambiente natural está preparado para o amor acontecer. Lembremo-nos de que dissemos acima que o cenário do Cântico dos Cânticos é o do amor no campo.

Psicologicamente podemos destacar primeiramente o contraponto das imagens masculinas e femininas. Adentramos, portanto, o tema do animus e da

anima. O homem que ama profundamente sua mulher projeta a anima carregada de

conteúdo da beleza feminina. Esse homem é capaz de assimilar a beleza da amada porque a anima projeta esses conteúdos da beleza. Jung já nos ensinou que o homem é capaz de compreender a mulher porque, sendo homem, tem conteúdos femininos no inconsciente, ao que chamamos de arquétipo da anima. O mesmo podemos dizer da mulher: ela projeta qualidades do animus no amado. Ela é capaz de compreender seu homem porque o animus a auxilia, uma vez que tem conteúdos masculinos no seu inconsciente. Quando animus e anima são projetados há um encontro. E aqui é o encontro de amor e de ternura. Dissemos a respeito do primeiro poema que o Cântico dos Cânticos é um livro da coniunctio, essa união em que os arquétipos da anima e do animus projetados processam o encontro. Essa projeção é inconsciente; é o que Jung chamou de transferência. Essa projeção de conteúdos

301 RAVASI, Gianfranco, Cântico dos Cânticos, p. 58.

inconscientes promovida pelo animus e pela anima faz-nos recordar o que Jung comentou sobre a projeção do rei e da rainha como coniunctio solis et lunae (união de sol e lua), como união suprema dos opostos inimigos, como amado e amada que se aproximam para celebrar o encontro de amor. Pois, como vimos, quando um homem e uma mulher se unem, o amor que os une quer possibilitar o encontro íntimo da anima e do animus. A expectativa de que falávamos vai cedendo lugar à realização progressiva do encontro de amor.

Este 3º poema é todo carregado de situações eróticas, atração sexual e encontro amoroso. É interessante notar que, neste 3º poema, o amado expressa o desejo sexual que a amada lhe provoca após a amada ter deixado claro no 2º poema que ele é o amado da sua alma. Ou seja, há amor entre esse homem e essa mulher. Por isso, pudemos afirmar no parágrafo anterior que o amor os une e quer possibilitar o encontro da anima e do animus. A atração sexual é um sinalizador para a unio oppositorum (união dos opostos). Os opostos se atraem. A atração sexual vai possibilitar a união biológica em seu mais elevado nível. Isto quer dizer que a atração sexual, quando leva à união dos dois amantes, está encaminhando para o processo que é análogo ao da natureza: a energia dos instintos é deslocada para a produção de um símbolo. Ou seja, quando o poema chegar ao ato sexual realizado teremos o que na psicologia junguiana é a unificação do símbolo ou, melhor, a realização do símbolo em que os dois amantes se tornam o um só, isto é, o símbolo unificador. Teremos a coniunctio.

Entendemos aqui a atração sexual como um passo colaborador para a unificação psíquica que se dará no ato sexual quando concretizado.

Outro elemento do poema sinalizador para essa unificação é a utilização do verbo na primeira pessoa do plural pelo amado. Ele diz “faremos para ti” pingentes de ouro. Dissemos acima que ele está expressando que, com o amor de ambos, farão os pingentes. Fazer pingente de ouro lembra a alquimia, o processo de fusão dos metais. O pronome “nós” lembra o processo de fusão das pessoas “eu” e “tu”. Fusão do amor de ambos. Unificação de ambos no amor. Símbolo da unificação.

Há um processo de passagem do ambiente reservado para o ambiente natural, a cama debaixo do teto de ciprestes. Von Franz fala da união com a natureza. O amor desse casal ilustra essa união com a natureza, pois o cenário do

livro todo é permanentemente campestre. Por isso entendemos, o que já afirmamos com base em von Franz, que a celebração do amor é uma celebração do homem natural que une o espiritual com a natureza.

2.2 - 4º Poema: 2,1-3 2

1 – Sou o narciso de Saron, o lírio dos vales.

2 – Como açucena entre espinhos é minha amada entre as donzelas. 3 – Macieira entre as árvores do bosque, é meu amado entre os jovens;

à sua sombra eu quis assentar-me, com seu doce fruto na boca.

O dueto prossegue. A amada se apresenta como o narciso e o lírio dos vales. O amado diz que ela é açucena entre espinhos. Interessante notar que essas três flores são espécies das liliáceas (relativas ao lírio) e suas cores podem ser branca ou amarela. De acordo com Ravasi, esses esboços florais indicam o desejo de vida, de novidade e de frescor que caracterizam toda poesia amorosa.303

O amado compara a amada com a açucena entre espinhos, ou seja, há um contraste entre a beleza, a doçura e a umidade da açucena e a opacidade, agressão e secura dos espinhos. Esse contraste é posto também entre a amada e as donzelas. Para o amado sua mulher é como a açucena. Andiñach afirma que se trata da identificação do ser amado.304 A amada é identificada entre as outras mulheres. Entendemos que quem ama não se confunde; retomam-se os temas da exclusividade e da fidelidade.

Em seguida é a amada quem faz a comparação. O amado é para ela macieira entre as árvores. Ele é também identificado entre os jovens. A amada não se confunde, localiza-o entre os demais homens.

Andiñach auxilia-nos na interpretação deste versículo 3. A amada quer recostar-se no amado que é uma macieira. Ela come o fruto dessa macieira e este é

303 Cf. RAVASI, Gianfranco, Cântico dos Cânticos, p. 61.

doce em sua boca. Isto quer dizer que a mulher sente o sabor do corpo do amado. Ela explora o corpo do amado por meio da boca.

Nossa análise psicológica aborda primeiramente o desejo de vida inspirado pelas flores. O desejo de vida refere-se à consciência, assim como a morte refere-se à ausência de consciência. O eu consciente indica que ainda não houve o encontro psíquico de animus e anima, mas sim um desejo de encontro. Jung já nos ensinou, quando analisava a gravura do rei e da rainha mortos, que a coniunctio é seguida de uma estagnação semelhante à morte. Portanto, neste 4º poema, ainda não ocorreu a coniunctio. Temos refletido até aqui que há um desejo de coniunctio.

Além disso, von Franz nos ajuda a entender o simbolismo psicológico das flores. Recordemo-nos de que ela diz que as flores representam uma vida suprapessoal anímica ou uma vitalidade que floresce com a coniunctio. Mas ela diz também que as flores simbolizam o sentimento. Interpretamos neste versículo esse simbolismo do sentimento da ternura que o homem sente pela mulher e ela por ele.

Outro aspecto psicológico que chama nossa atenção é o que está indicado pelo desejo da mulher de assentar-se à sombra do amado. A sombra, de acordo com a psicologia de Jung, refere-se aos aspectos obscuros da personalidade, rejeitados pelo eu e pelo convívio social. A amada quer sentar-se sob a sombra do amado. O eu (no caso a amada) quer lançar para a sombra tudo aquilo que não convém socialmente. A sensação de conforto com os conteúdos inconvenientes lançados para a sombra é uma sensação egóica (de predominância do ego = o eu). Dissemos acima que o eu consciente é quem está agindo até o momento. O encontro de amor que poderá significar um encontro psíquico destas duas almas humanas ainda está “sendo preparado” ou “desejado”. Almas humanas, leia-se, seres humanos completos.

Tocamos no tema da sombra psicológica porque é confortável para o eu enviar para a sombra os conteúdos que não lhe agradam. Numa relação amorosa que não é aprovada pela sociedade, mas sim, como vimos acima, reprovada pelos irmãos, nem todos os conteúdos poderão ficar expostos. A amada explora o corpo do amado com a boca e avalia-o como fruto doce. Ela sabe que esta atitude não está de acordo com os padrões convencionais de sua sociedade. O eu entra em

ação e envia para o arquétipo da sombra tal conteúdo que o recebe e o mantém no inconsciente.

3 – O CARÁTER ARQUETÍPICO DO AMOR E A CONTINUIDADE DO PROCESSO