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Capítulo III: Um estudo do Cântico dos Cânticos a partir da psicologia

5. O arquétipo da persona e o incesto psíquico

8 Vem do Líbano, noiva minha, Vem do Líbano

e faz tua entrada comigo. Desce do alto do Amaná,

do cume do Sanir e do Hermon, esconderijo dos leões,

montes onde rondam as panteras. 9 Roubaste meu coração,

minha irmã, noiva minha, roubaste meu coração

com um só dos teus olhares, uma volta dos colares.

10 Que belos são teus amores, minha irmã, noiva minha;

teus amores são melhores do que o vinho, mais fino que os outros aromas

é o odor dos teus perfumes.

11 Teus lábios são favo escorrendo, ó noiva minha,

tens leite e mel sob a língua, e o perfume de tuas roupas é como o perfume do Líbano.

Neste poema o amado chama a amada de noiva e de irmã. Sobre o termo noiva, Andiñach apresenta duas possibilidades de interpretação. A primeira seria a de que o termo noiva seria uma forma figurada, um modo carinhoso de falar diante da possibilidade de que eles mantenham uma relação clandestina, contrária à vontade dos irmãos dela. A segunda seria a de que eles estivessem prometidos em

casamento, noivos, portanto; porém teriam iniciado a vida sexual ocultamente, contrariando os costumes sociais.320

Sobre o termo irmã quem nos oferece uma interpretação é Ravasi, explicando que a amada é irmã porque, no contexto oriental, a relação entre irmãos é tida como sinal de intensidade e de totalidade. É como se os amantes resumissem todas as relações interpessoais chamando-se de irmãos.321

As localidades citadas no poema estão no Líbano, ou seja, ao norte de Israel. O amado chama a amada para vir de lá, isto quer dizer que a amada está ausente. Mas ela está nos lugares dos leões e das panteras. Como temos visto, os animais são utilizados no Cântico dos Cânticos para simbolizar a beleza, a sensualidade, o erotismo.

Por outro lado, no versículo 9 temos a impressão de que a amada chegou bem perto do seu amado e de que ele sussurra para ela que ela roubou o coração dele com apenas um olhar e com uma única volta do colar. Ravasi interpreta o verbo, que no poema está traduzido como “roubaste”, aliado ao vocábulo “coração” como a indicação das batidas aceleradas do coração, sua dilaceração e quase sua parada atônita. Por isso podemos interpretar como “feriste o meu coração” ou “cativaste o meu coração” ou até como “transpassaste o meu coração”. Parece que ele sussurra para sua amada que a força do que sente por ela após ser cativado pelo olhar dela é uma força avassaladora.

No primeiro poema era a amada quem dizia que o amor dele é melhor do que o vinho, agora ele, como que numa devolutiva, responde que o amor dela é melhor do que o vinho. Quanto aos lábios escorrendo mel e a presença do mel e do leite debaixo da língua, Ravasi nos explica que “beijar é como sugar néctar ou mel puríssimo (...); a língua, isto é, as palavras, é saborosa como se destilasse ‘mel e leite’”.322

Psicologicamente, podemos observar que a distância e a proximidade, que nos parecem estar presentes no poema, indicam o aspecto da continuidade do processo amoroso, que é a mesma continuidade do processo psíquico. Ou seja, o amor ora está se desabrochando em cenas de profundo encontro íntimo ora está no

320 Cf. ANDIÑACH, Pablo, Cântico dos Cânticos: o fogo e a ternura, p. 95. 321 Cf. RAVASI, Gianfranco, Cântico dos Cânticos, p. 98.

desejo de ser alcançado, daí, compreendermos a presença dos animais símbolos da sensualidade e do erotismo no lugar distante de onde está o amado gritando para que sua amada desça do norte para ir para junto dele.

Outro aspecto psicológico que queremos abordar é quanto ao termo noiva empregado pelo amado. Se concordarmos com Andiñach que é uma forma figurada para esconder a relação clandestina, fugidia ao olhar dos irmãos da amada, assim como se concordarmos com Ravasi que eles teriam iniciado a vida sexual fora do casamento, contrariando os costumes, teremos aqui os elementos persona e

sombra. A persona é a aparência de que ela é noiva na linguagem poética, uma

forma de dizer algo aceito pela sociedade da época, talvez até para que o poema pudesse ser aceito ao término de sua redação. O amado precisa se dirigir a sua amada com algumas palavras, além de toda a sua linguagem carregada de sensualidade, erotismo e amor, que indiquem alguma situação sustentável aos olhos da sociedade. É verdade que o texto pode ser uma crítica ao modelo de sexualidade da corte que se sustenta com o padrão salomônico, mas é verdade também que o ego necessita ser reconhecido socialmente. Os dois amantes necessitam de alguma coisa que os torne duas pessoas aceitas socialmente, apesar de poderem estar sendo transgressores de costumes de sua época. Não há ego que suporte viver somente na clandestinidade. Por isso, Jung nos fala do caráter apriorístico dos arquétipos, ou seja, o espírito humano prepara-se para o desenvolvimento psíquico, utilizando as possibilidades humanas psíquicas que estão no bojo da totalidade da psique. Uma dessas possibilidades é a criação da persona pelo ego para a suportabilidade da existência de todos os sentimentos, pensamentos e conteúdos da alma humana.

A sombra seria justamente a realização às escondidas do ato sexual, ou seja, realizado na sombra, enquanto a sociedade vê os dois “noivos” prometidos para o casamento, preparando-se para o grande momento de suas vidas em que finalmente se tornarão uma só carne, conforme Gênesis 2,24.323

323 Gênesis 2,24 diz: “Por isso um homem deixa seu pai e sua mãe, se une à sua mulher, e eles se tornam uma só carne”. BÍBLIA de Jerusalém, Nova ed. rev. ampl. São Paulo: Paulus, 2002.

Por isso, concordamos com Andiñach quando propõe que um dos temas do

Cântico dos Cânticos seja de que o amor se legitima a si próprio a partir dos

sentimentos e da sinceridade.324

Outro aspecto psicológico que podemos suspeitar nessa relação amorosa é quanto ao que Jung chama de aspecto incestuoso da relação. Quando Jung fala da transferência irmão-irmã, ele nos diz, como vimos, que

neste aspecto incestuoso escondem-se os sentimentos mais secretos, mais constrangedores, mais intensos e cheios de ternura, mais pudicos e vergonhosos, angustiantes e despropositados, os sentimentos mais imorais e ao mesmo tempo mais sagrados, que constituem a multiplicidade indescritível e inexplicável das formas de relacionamento humano e as revestem de compulsividade. 325

Observamos que Jung nos fala sobre a transferência do irmão sobre a irmã, mas estamos diante de um casal no Cântico dos Cânticos que, neste poema, o amado chama sua amada de irmã (em 8,1 ela vai utilizar o termo irmão, como veremos). E o que nos atrai a atenção é que o amor dos dois pode contribuir para que se efetive a coniunctio e a auto-realização de cada um no processo de individuação. Psicologicamente, Jung já nos esclareceu que o incesto simboliza a união do ser consigo mesmo, ou seja, a individuação, a auto-realização. É isto que esperamos dos dois amantes do poema. Jung continua a nos esclarecer que o incesto exerce um grande fascínio na vida psíquica, embora seja um tabu e não se concretize na maioria das sociedades. Então, a atitude do amado de chamar sua amada de irmã é um indicativo de que a anima se identifica com a amada ao ponto de o amado considerar-se irmão dela. É um indicativo de incesto psíquico, que é um processo inconsciente. Ao dizer que amada é irmã, o amado não tem consciência do incesto psíquico que a anima está vivenciando.

Vimos que o incesto simboliza a união do ser consigo mesmo, a individuação ou a auto-realização. Por ter essa auto-realização um significado extremamente vital, mesmo que o incesto não ocorra nas relações entre as pessoas, ele exerce um fascínio na vida psíquica controlada pelo inconsciente. Podemos notar a atuação do

324 Cf. ANDIÑACH, Pablo, Cântico dos Cânticos: o fogo e a ternura, p. 94.

325 JUNG, Carl Gustav, Ab-reação, Análise dos Sonhos, Transferência, p. 49. (Obras Completas XVI/2).

inconsciente, por exemplo, na informação do teólogo Ravasi de que no contexto oriental, a relação entre irmãos é tida como sinal de intensidade e de totalidade.

Mais um aspecto que gostaríamos de abordar é o paladar do amado que sente o gosto de leite e mel debaixo da língua da amada. Temos aqui uma revelação da expressão arquetípica do amor que ele sente, pois ele consegue sentir doçura na boca da amada identificada com o sabor do leite e do mel.

6 – O PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO E O ARQUÉTIPO CENTRAL DO SI-