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Atuação jurisdicional sobre as decisões dos Tribunais de Contas

Tomando por base o entendimento majoritário da doutrina acerca da não juridicidade das decisões dos Tribunais de Contas, debate-se se os órgãos jurisdicionais estariam autorizados a rever todos os pontos e, independente de qualquer circunstância, as decisões dessas Cortes.

Acerca da controvérsia se delineiam três correntes. A primeira, e mais radical, inadmite a revisão das decisões dos Tribunais de Contas por parte do Poder Judiciário. A segunda corrente restringe a atuação do Poder Judiciário aos casos em que haja ilegalidade no julgamento das contas. Já a terceira corrente acolhe a integral revisibilidade das decisões das Cortes de Contas, independentemente de ilegalidades. É o que se passa a considerar.

3.4.1 Impossibilidade de revisão

A ideia de negação quanto ao poder de revisão do Judiciário sobre as decisões dos Tribunais de Contas vem de tempos. Pontes de Miranda (1953), ao tecer comentários acerca da Constituição Brasileira de 1946, amparou a impossibilidade de revisão:

Hoje, e desde 1934, a função de julgar as contas está claríssima no texto constitucional. Não haveremos de interpretar que o Tribunal de Contas julgue e outro juiz as rejulgue depois. Tratar-se-ia de absurdo bis in idem. (...) Tal jurisdição exclui a intromissão de qualquer juiz na apreciação da situação em que se acham, ex hiphotesi, os responsáveis para com a Fazenda Pública. (p. 336)

Seguindo a mesma direção, Jorge Ulisses Jacoby Fernandes (1996) assinala que

o julgamento dos Tribunais de Contas é definitivo, observados os recursos previstos no âmbito desses colegiados. Esgotados os recursos previstos ou prazos para interposição, a decisão é definitiva e, em matéria de Contas especiais, não sujeita a revisibilidade de mérito pelo Poder Judiciário. (p. 25)

Na visão do referido autor, a separação das três funções estatais não é absoluta. Para tanto, exemplifica que o Poder Executivo exerce funções legislativas, quando lhe incumbe a iniciativa de leis, conforme previsão do artigo 84, III, da Constituição Federal, ou quando edita medidas provisórias com força de lei, nos termos do artigo 84, XXVI, do mesmo diploma, e ainda quando sanciona, promulga e veta leis (artigo 84, IV). Exerce também funções judiciais, ao comutar penas e conceder indulto (artigo 84, XII). Já ao Poder Legislativo, além das funções legislativas, foi constitucionalmente deferida competência judiciária para processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República e outras autoridades, consoante disposição do artigo 52, incisos I e II, além de funções administrativas, como dispor sobre sua organização (artigo 51, IV). No que tange ao Poder Judiciário, foi a este conferida competência administrativa, a exemplo de organizar suas secretarias (artigo 96, I, b), bem como competência legislativa, como impor a sentença normativa em dissídio coletivo.

Desse modo, para o citado autor, o Poder Judiciário não tem competência para a ampla revisibilidade dos atos não judiciais estritos. Segundo ele, os menos atentos, pautados no inciso XXXV, do artigo 5º, da Constituição, pretendem edificar o princípio da revisibilidade judicial como norma absoluta. Entretanto, o dispositivo em questão vedaria à lei excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão, mas não à Constituição.

Partilha do mesmo entendimento Miguel Seabra Fagundes (1967), na visão de quem, em caso de ampla revisibilidade do Judiciário, as atribuições constitucionais dos Tribunais de Contas estariam esvaziadas.

Jorge Ulisses (1998), assegurando que as decisões das Cortes de Contas, no Brasil, são procedimentos jurisdicionais, afirma:

Sem laivo de dúvida, funções das Cortes de Contas se inserem como judicantes, inibindo o reexame pelo Judiciário. Suas decisões transitam em

julgado e têm, portanto, natureza prejudicial para o juízo não especializado. (p. 92)

3.4.2 Revisibilidade adstrita aos casos de ilegalidade

Acerca da revisibilidade das decisões dos Tribunais de Contas, perfilha-se ainda uma corrente defensora da possibilidade de revisão tão-somente nos casos de ilegalidade no julgamento das contas.

Nesta senda, Dias Costa (2006) indica que parte da jurisprudência tem entendido o Tribunal de Contas da União como juiz natural das matérias de sua competência, de modo que as decisões da Corte de Contas restringem parcialmente a atuação do Poder Judiciário, devido ao fato de que têm o condão de fazer coisa julgada administrativa. Diante disso, as decisões dos Tribunais de Contas não podem ser revistas pelo Poder Judiciário quanto ao mérito, sendo essa revisão cabível tão-somente nos casos em que a decisão afrontar o devido processo legal ou for manifestamente ilegal.

Não destoa o pensamento de Aguiar Filho (2009). O autor afirma que julgar é apreciar mérito e, assim, mesmo que a Constituição não tivesse empregado o termo “julgar” no texto do artigo 71, II, as decisões das Cortes de Contas seriam irrevisáveis pelo Poder Judiciário. Caso eivada de manifesta ilegalidade, a decisão poderia ser cassada por meio de mandado de segurança, mas jamais poderia se permitir ao Magistrado substituir-se nesse julgamento de mérito. O juiz deve refrear sua atuação nos limites da lei, vez que a Carta Magna deu a competência para julgar as contas a uma Corte instrumentalizada e tecnicamente especializada para tanto. Dessa forma, mesmo as decisões não tendo natureza jurisdicional e configurando-se apenas como ato administrativo, seu mérito jamais poderia ser revisto pelo Poder Judiciário.

Existem decisões bastante antigas das altas cortes pátrias nesse sentido. Acerca da revisão das decisões do Tribunal de Contas pelo controle judicial, já se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça:

É logicamente impossível desconstituir ato administrativo aprovado pelo Tribunal de Contas, sem rescindir a decisão do colegiado que o aprovou; e para rescindi-la é necessário que nela se constatem irregularidades formais ou ilegalidades manifestas. (Recurso Especial 8970/SP – Relator Ministro Humberto Gomes de Barros, Diário da Justiça 09.03.93, p. 2533)

E o Supremo Tribunal Federal:

Ao apurar o alcance dos responsáveis por dinheiros públicos, o Tribunal de Contas pratica ato insuscetível de revisão na via judicial a não ser quanto a seu aspecto formal ou tisna de ilegalidade manifesta. (Mandado de Segurança 7280 – Relator Ministro Henrique D’Ávila, julgado em 20/06/1960)

Conforme se verifica, no entendimento dos autores que se filiam a essa corrente, as decisões dos Tribunais de Contas proferidas quando estas Cortes exercem a competência constitucional deferida pelo artigo 71, II, não tem natureza jurisdicional, mas caráter de ato administrativo que julga mérito. E, portanto, se se trata de mérito, este campo do ato administrativo não pode ser adentrado pelo Poder Judiciário.

3.4.3 Revisibilidade ilimitada

O princípio da inafastabilidade da jurisdição, cuja previsão legal está no art. 5°, XXXV, da Constituição, é o argumento basilar daqueles que defendem a possibilidade de revisão ilimitada das decisões dos Tribunais de Contas pelo Poder Judiciário, independentemente da existência de ilegalidades no julgamento das contas. O sistema de jurisdição uma confere ao Poder Judiciário exclusividade da tutela jurisdicional, não podendo ser afastado da apreciação da decisão que condenou o administrador por irregularidade na gestão pública.

Nesse diapasão, ensina MEDAUAR (1990):

Nenhuma lesão de direito poderá ficar excluída da apreciação pelo Poder Judiciário; qualquer decisão do Tribunal de Contas, mesmo no tocante à apreciação de contas de administradores, pode ser submetida ao reexame pelo Poder Judiciário se o interessado considerar que seu direito sofreu lesão; ausente se encontra, nas decisões do Tribunal de Contas, o caráter de definitividade ou imutabilidade dos efeitos inerentes aos atos jurisdicionais. (p.124)

Para Galvão Barros (2010), ante a unicidade da jurisdição brasileira, não há como afastar as decisões das Cortes de Contas da apreciação do Poder Judiciário, mesmo quando esses órgãos exercem a sua competência precípua, atribuída pela Constituição, de julgar as contas dos administradores.

Marçal Justen Filho (2009), na mesma linha, assinala que o Tribunal de Contas não dispõe de competência jurisdicional, “ainda que o artigo 71, II, aluda a “julgar” a propósito de contas. O julgamento pelo Tribunal de Contas segue os princípios jurisdicionais, mas é passível de revisão pelo judiciário.” (p. 1003)

Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (1974) rechaça a possibilidade de bis in idem quando da apreciação das decisões dos Tribunais de Contas por parte do Poder Judiciário. Afirma o jurista:

Não se trata de rejulgamento pela Justiça Comum porque o Tribunal de Contas é órgão administrativo e não judicante, e sua denominação Tribunal e a expressão julgar ambas são equívocas. Na verdade, é um conselho de contas e não as julga, sentenciando a respeito delas, mas apurada veracidade delas para dar quitação ao interessado, em tendo-as como prestadas, ou promover a condenação criminal e civil dele, em verificando o alcance. Apura fatos. Ora, apurar fatos não é rejulgar. (p. 172)

Em relação à tese defendida pela segunda corrente, insta salientar, primeiramente, que, nas palavras de Hely Lopes Meirelles (2010, p. 159), “o mérito administrativo consubstancia-se na valoração dos motivos e na escolha do objeto do ato, feitas pela Administração incumbida de sua prática (...)”.

Di Pietro (2009) assevera que os atos discricionários sujeitam-se a apreciação judicial, desde que não se invadam os aspectos resguardados ao exame subjetivo da Administração Pública, conhecidos sob a denominação de mérito (oportunidade e conveniência). Entretanto, a jurista ressalta que não há invasão do mérito quando o Judiciário aprecia os motivos, isto é, os fatos que precedem a elaboração do ato. A ausência ou a falsidade do motivo caracteriza ilegalidade, aí sim suscetível de invalidação pelo Poder Judiciário.