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Natureza jurídica das decisões dos Tribunais de Contas

No que respeita à natureza jurídica das decisões proferidas pelos Tribunais de Contas, Cicco Filho (2007) esclarece que há uma corrente de pensamento sustenta a função jurisdicional, enquanto outra restringe as decisões à mera manifestação de vontade administrativa. Segundo o autor, a questão apresenta relevantes consequências práticas no que concerne, especialmente, aos limites de revisibilidade das decisões dos Tribunais de Contas pelo Poder Judiciário. Para a corrente defensora da função jurisdicional, somente caberia o exame extrínseco do ato e a verificação de sua conformidade, ou não, com a lei, pelo Judiciário. Para a segunda, a revisão poderia, inclusive, adentrar no mérito do ato deliberativo da Corte.

Os Tribunais de Contas possuem, dentre outras competências, como visto, a função de julgamento de contas, inclusive das contas do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e das próprias Cortes, conforme disposição do inciso II, do artigo 71, da Constituição Federal. A expressão utilizada pela Constituição é "julgar das contas" e não "apreciar das contas", o que leva alguns doutrinadores a imputar uma característica jurisdicional a essa função. (TAKEDA, 2009)

Nesse norte, assinala Ricardo Lobo Torres (1991) que o Tribunal de Contas desempenha alguns atos típicos da função jurisdicional em sentido material, haja vista que julga as contas dos administradores com todos os requisitos materiais da jurisdição, quais sejam independência, imparcialidade, igualdade processual, ampla defesa, produção plena das provas e direito a recurso.

O argumento precípuo trazido à baila pela corrente doutrinária que defende o exercício de competência jurisdicional pelos Tribunais de Contas é o de que a própria Constituição, ao empregar o termo técnico "julgar", atribuiu função jurisdicional aos Tribunais de Contas.

Galvão Barros (2010) defende que, no caso do artigo 71, inciso II, tendo a Constituição empregado expressamente o termo “julgar”, essa foi a vontade do legislador constituinte, uma vez que, do contrário, teria utilizado outro termo. O autor acrescenta ainda que em ocasiões diversas a Constituição atribuiu a outros órgãos a competência para julgar definitivamente determinados fatos e autoridades, a exemplo do artigo 49, inciso IX e artigo 52, incisos I e II.

Rodolfo de Camargo Mancuso (1997) segue o mesmo entendimento, caracterizando os Tribunais de Contas como Cortes Judicantes:

(...) a Constituição Federal reteve [os Tribunais de Contas] como Cortes diferenciadas, exercentes de uma jurisdição sobremodo especializada, como deflui à leitura do art. 70 da Constituição Federal. Conquanto as Cortes de Contas não figurem no rol dos órgãos componentes do Poder Judiciário (CF, art. 92, I a VII), é indisputável que elas exercem com independência, autonomia e exclusividade o segmento específico da Jurisdição em matéria de fiscalização ‘contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial’ (art. 70), como órgão de controle externo, acoplado ao Legislativo (art. 71). A circunstância de suas decisões poderem, eventualmente, ser objeto de contraste ulterior pelo Poder Judiciário (por exemplo, em ação popular em que se discuta matéria antes decidida por Tribunal de Contas) não enfraquece o caráter coercitivo de seus julgamentos, porque, de um lado, aquele contraste advém por outra razão, a saber, a inafastabilidade do controle jurisdicional (dito princípio da ubiquidade da Justiça: CF, art. 5º, XXXV); de outro lado, sendo certo que impende preservar a desejável harmonia entre as competências constitucionalmente estabelecidas, é forçoso admitir que aquela revisão judicial não se dá necessariamente, e quando ocorra, não poderá implicar uma singela ‘substituição’ dos critérios adotados pelo juiz de contas, por aqueles que acodem o juiz togado. (p. 75)

Para Ferreira de Melo (2011), parte da doutrina entende que o Tribunal de Contas exerce função jurisdicional, não somente pelo emprego da palavra "julgar" no texto constitucional, mas pelo sentido definitivo da manifestação da Corte. Para tanto, cita Seabra Fagundes, que, malgrado admitir que os Tribunais de Contas não integram o Poder Judiciário, defende que estes foram parcialmente investidos de função judicante quando julgam as contas dos responsáveis por valores públicos.

A função judicante não decorre do emprego da palavra julgamento, mas sim pelo sentido definitivo da manifestação da Corte, pois se a irregularidade das contas pudesse dar lugar a nova apreciação (pelo Judiciário), o seu pronunciamento resultaria em mero e inútil formalismo (SEABRA FAGUNDES, 1967, p. 142)

Para Jorge Ulisses Jacoby Fernandes (1996), as decisões das Cortes de Contas, no Brasil, são expressão da jurisdição. Para o autor, não se trata de jurisdição especial ou seguida de qualquer adjetivação que pretenda minorar sua força, mas apenas jurisdição, a qual se pode, em tributo ao órgão prolator, chamar de jurisdição de contas. Uma vez que o constituinte, copiando Constituições anteriores, utilizou o termo julgar em relação a determinadas manifestações do Tribunal de Contas e, considerando que, conforme Maximiliano (1988, p. 109), quando "são empregados termos jurídicos, deve crer-se ter havido preferência pela linguagem técnica", os julgamentos dos Tribunais de Contas devem ser acatados pelo Poder Judiciário, eis que não se pode rejulgar o que já foi julgado.

Fazendo apertada síntese da divergência doutrinária acerca da natureza das decisões dos Tribunais de Contas, Takeda (2009) aduz:

Existe discussão antiga acerca do caráter jurisdicional ou não do julgamento das contas dos administradores ou responsáveis por bens públicos. O que se verifica é que uma corrente minoritária da doutrina defende a força judicante das deliberações das Cortes de Contas que julgam as contas em comento. O argumento mais expressivo da corrente que defende essa força judicante é o de que a própria Constituição, ao estabelecer o termo técnico "julgar", também conferiu competência jurisdicional aos Tribunais de Contas.

Não obstante a tese do exercício da função jurisdicional por parte dos Tribunais de Contas seja amparada por renomados doutrinadores, a doutrina majoritária e a jurisprudência dos Tribunais Superiores conferem natureza administrativa às suas

decisões, com fulcro na disposição contida no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal. (TAKEDA, 2009)

Conforme ensinamento de José Afonso da Silva (2008), o Tribunal de Contas

se apresenta como órgão técnico, e suas decisões são administrativas, não jurisdicionais, como às vezes se sustenta, à vista da expressão “julgar as contas” referida à sua atividade (art. 71, II). A mesma expressão é também empregada no art. 49, IX, em que se dá ao Congresso nacional competência para julgar anualmente as contas prestadas pelo Presidente da República, e nem por isso se dirá que ele exerce função judicante. (p.752-753)

José Cretella Junior, ao definir a natureza jurídica dos Tribunais de Contas no Brasil, corrobora o entendimento de José Afonso da Silva. Cretella Junior (1992, p. 56) aponta que a instituição “não é um tribunal de justiça, não é uma corte de justiça, não tem funções judicantes, não é órgão integrante do Poder Judiciário, pois todas as suas funções, sem exceção, são de natureza administrativa.”

Ao se manifestar acerca do tema, preleciona Oswaldo Aranha Bandeira de Melo:

O Tribunal de Contas julga as contas, ou melhor, aprecia a sua prestação em face de elementos administrativo-contábeis, e, igualmente, a legalidade dos contratos feitos, bem como das aposentadorias e pensões. A Justiça Comum julga os agentes públicos ordenadores de despesas e os seus pagadores. E ao julgar os atos destes, sob o aspecto do ilícito penal ou civil, há de apreciar, também, os fatos que se pretendam geraram esses ilícitos. Repita-se, a função jurisdicional é de dizer o direito em face dos fatos. Jamais de apreciar fatos simplesmente. Mesmo se aceitasse como definitiva esta apreciação, não corresponderia a uma função de julgar. (1992, p. 14)

Lúcia Valle Figueiredo (2008), se posiciona indicando que o termo “julgar” parece inadequado, uma vez que, levando-se em consideração o monopólio de jurisdição pelo Judiciário, o mais acertado seria dizer “apreciar para homologar”, “glosar” (rejeitar) e, consequentemente “sancionar”. O vocábulo “julgar” não pode denotar atividade excludente da apreciação do Poder Judiciário.

Também não destoa o entendimento do professor José Rubens Costa (1996):

Em havendo o sistema de unidade de jurisdição, pouco importa se a órgãos não-judiciários se atribui competência assemelhada a judicante ou jurisdicional, dado a que o conflito de interesses somente obterá solução final com a manifestação do Poder Judiciário. O cometimento de funções julgadoras a

órgãos não-judiciários, mas sem o caráter da exclusividade ou exclusão do órgão judiciário, não se enquadra, com rigor, no conceito de função jurisdicional, embora a ela se assemelhe. (p.342)

Perfilha-se a esse entendimento, além dos já referidos doutrinadores, Eduardo Lobo Botelho Gualazzi (1992), dando relevo ao perfil de “corporação administrativa autônoma” que o Tribunal de Contas assume, julgando e verificando, mas não exercendo a jurisdição privativa do Poder Judiciário, cujas decisões produzem coisa julgada com definitividade.

Takeda (2009) salienta ainda que no Brasil não prevalece o sistema de jurisdição do contencioso administrativo. Assim, é possível inferir que as decisões proferidas pelos Tribunais de Contas não se conformam como atividade jurisdicional, pois nelas não se verificam partes, nem propositura de ação, tampouco inércia inicial, e, ademais, não se observa a presença de órgão integrante do Poder Judiciário.

Em complemento, Takeda (2009) assinala que o julgamento das contas se consubstancia em examinar e avaliar se estão regulares ou irregulares. A partir daí, é elaborado um parecer dotado de valor técnico, todavia tal provimento não se revela definitivo tal qual uma sentença judicial. Reconhece-se que tais julgamentos tenham caráter definitivo dentro do seu âmbito de atuação, conforme competências específicas, mas isso, por si só, não lhes assegura o exercício da jurisdição.

Desse modo, infere-se que a função julgadora cominada aos Tribunais de Contas pela Carta Magna tem caráter administrativo, ante o tratamento constitucional do princípio da separação dos poderes e a unidade de jurisdição adotada no Brasil. É válido salientar ainda dois aspectos, quais sejam o fato destes Tribunais exercerem sua função de ofício, sem que haja provocação, e a ideia de linearidade da relação existente entre esta Corte e o responsável pelas contas, rechaçando qualquer acepção de triangularidade das partes envolvidas. (CHAVES DE RESENDE, 2008)