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Jurisdição e sistemas jurisdicionais

A exigência de observância da norma jurídica como padrão de conduta e como fator de pacificação social conduziu o Estado a colocar à disposição da sociedade a função jurisdicional, cujo escopo é “garantir a eficácia prática e efetiva do ordenamento jurídico”. (LIEBMAN apud JAYME, 2001)

Segundo ressaltam Marinoni e Arenhart (2010), a insatisfação de um interesse, principalmente quando decorrente da resistência de alguém, pode gerar tensão aos contendores e até mesmo à sociedade, de forma que tange ao Estado a eliminação desses conflitos para que seja encontrada a paz social. Coibida a autotutela, surge o poder de o Estado dizer aquele que tem razão em face do conflito concreto, isto é, o poder de dizer o direito, o iuris dictio.

Jayme (2001) ensina que a jurisdição, na sua acepção constitucional, é expressão de soberania estatal, podendo ser definida como poder de que estão investidos determinados órgãos do Estado para decidir imperativamente e impor decisões, a fim de dar efetividade ao direito substantivo. Sob um ponto de vista dinâmico, a jurisdição é função do Estado, que se materializa através do processo.

Quanto à função jurisdicional, conceitua José Rubens da Costa (1996):

A função jurisdicional pode ser definida como a atribuição e o monopólio estatal de poder para solucionar um conflito intersubjetivo de interesse e impor coativamente a sua realização, com a finalidade maior de manter e preservar o sistema jurídico objetivo ou a ordem jurídica. A jurisdição também pode ser visualizada como o poder de concretizar ou realizar o ordenamento jurídico. (p. 341-342)

Nas palavras de José Frederico Marques (2000, p. 192), “a jurisdição pode ser definida como a função estatal de aplicar as normas da ordem jurídica em relação a uma pretensão. Nisso reside a essência e substância do poder jurisdicional.”

A jurisdição, como manifestação do poder estatal soberano, é, por princípio, una e indivisível. Contudo, há uma divisão orgânica de jurisdições, a exemplo da jurisdição comum e da jurisdição especial. Cumpre esclarecer que tal divisão, como dito, é meramente orgânica, visto que “existem, tecnicamente, múltiplas manifestações de uma só jurisdição, para atender à pluralidade e à especialização decorrentes dos ordenamentos jurídicos.” (BARACHO apud JAYME, 2001)

Traço essencial da jurisdição é a autoridade da coisa julgada. Os provimentos jurisdicionais se tornam definitivos, irrefragáveis para as partes, intocáveis para o juiz, e, assim, irretratáveis, tanto no provimento, quanto em seus efeitos. (FAZZALARI, 1996)

Em relação aos sistemas de jurisdição, existem atualmente dois modelos, quais sejam o Contencioso Administrativo e a Jurisdição Una.

3.1.1 O sistema do Contencioso Administrativo

Este sistema é também chamado de jurisdição dupla ou sistema francês, devido à sua origem. O referido sistema consagra duas ordens jurisdicionais, uma que cabe ao Judiciário e outra que tange a organismo próprio do Executivo, denominada Contencioso Administrativo. A essa segunda ordem judicante incumbe conhecer e julgar em caráter definitivo os litígios em que a Administração Pública é parte, autora ou ré, ou terceira interessada, cabendo o deslinde das demais demandas ao Poder Judiciário. As decisões do Contencioso Administrativo, assim como as do Judiciário, fazem coisa julgada. (GASPARINI, 2009)

O Contencioso Administrativo remonta ao absolutismo francês, ao Ancién Regime, ou Antigo Regime, época em que o Rei, como instância última de revisão das decisões, estableceu uma divisão entre a jurisdição administrativa e a jurisdição referente aos litígios privados. Após a Revolução Francesa e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, o contencioso administrativo passou a ter os traços que apresenta hoje na Fança, seu principal expoente. (TEIXEIRA DE MIRANDA, 2007)

O autor ainda explica que o contencioso administrativo tem por base a particular interpretação dada pelos franceses em relação ao pensamento de Monstesquieu. A maior parte das nações que adotaram a tripartição dos poderes, o fizeram sob a égide do controle mútuo entre poderes. Já a França adotou uma tripartição total de poderes, com a criação de três funções. Não existiria monopólio da função jurisdicional pelo Poder Judiciário, cabendo a cada um dos poderes praticar todas as três funções. Além disso, os Parlamentos - órgãos julgadores que remaneceram mesmo após a Revolução - eram instituições com origem no Antigo Regime, de forma que representavam forte ameaça aos revolucionários, estabelecendo mais um dos elementos que levaram à repartição da atividade jurisdicional. Os revolucionários, com o intuito de evitar qualquer espécie de ingerência, adotaram a jurisdição própria para o controle dos atos da administração, específica para discutir e analisar a legalidade dos atos administrativos.

A parir daí, a Administração Pública francesa, como ainda atualmente, se submete apenas à jurisdição especial do contencioso administrativo, cujo órgão máximo é o Conselho de Estado. Os tribunais administrativos são sujeitos ao controle direto ou indireto do Conselho de Estado, que funciona como juízo de apelação (juntamente com as Cortes Administrativas de Apelação), de cassação e excepcionalmente como juízo originário de determinadas contendas administrativas. Como instância de cassação, o Conselho do Estado controla a legalidade das decisões de três órgãos: Tribunal de Contas, Conselho Superior da Educação Nacional e Corte de Disciplina Orçamentária. (MAFRA FILHO, 2004)

O referido autor ressalta ainda que existem exceções ao cabimento da jurisdição administrativa para o julgamento de contendas administrativas. É incumbência da Justiça Comum julgar as lides decorrentes de atividades públicas realizadas em caráter privado, os litígios que envolvem questões de estado, capacidade da pessoa e repressão penal e as demandas atinentes à propriedade privada.

No modelo francês, o acesso ao contencioso administrativo ocorre, basicamente, por duas vias: o recurso de jurisdição plena (recours de pleine juridiction) e o contencioso de anulação ou recurso por excesso de poder (recours pour excès de

pouvoir). Ambos os recursos têm como requisito o prévio exaurimento da instância inferior, sem maiores requisitos formais. Trata-se do chamado recours administratif, verdadeiro pedido de reconsideração formulado perante o agente público competente. (TEIXEIRA DE MIRANDA, 2007)

Nos países que adotaram o contencioso administrativo – tendo, assim, a justiça administrativa como ordem judiciária, específica e autônoma em relação à justiça comum (civil e penal) -, os Tribunais de Contas são de fato tribunais, consistindo em uma das justiças administrativas especializadas. Destarte, os Tribunais de Contas encerram em verdade uma jurisdição, fazendo parte do poder jurisdicional, inserindo-se na ordem judicante administrativa, autônoma e independente em relação à jurisdição comum. (FERREIRA MELO, 2011)

O contencioso administrativo não encontrou lugar no ordenamento constitucional pátrio. Seus exemplos mais notáveis estão na França e na Itália. (JAYME, 2001)

3.1.2 O sistema da Jurisdição Una

No sistema de Jurisdição Una, também chamado de sistema inglês, em razão da origem, ou sistema judiciário, as funções de julgar e administrar são exercidas por órgãos diversos, que pertencem a Poderes diferentes. Dessa forma, os órgãos do Executivo administram enquanto os órgãos do Poder Judiciário julgam, de forma que os litígios são solucionados, em caráter definitivo, por este último poder. Independentemente de as lides se formarem entre particulares ou entre um particular e a Administração, ou até mesmo entre duas entidades públicas, serão resolvidas por tribunais do Poder Judiciário, não importando a matéria de direito ou o fato em que se fundam. (GASPARINI, 2009)

De acordo com Di Pietro (2009), o direito brasileiro adotou o sistema da jurisdição una, por meio da qual o Poder Judiciário tem o monopólio da função jurisdicional. Isto significa que é exclusivo do Judiciário o poder de apreciar, com força

de coisa julgada, a lesão ou ameaça de lesão a direitos individuais e coletivos. Assim sendo, restou rechaçado o sistema da dualidade de jurisdição em que, conjuntamente com o Poder Judiciário, os órgãos do Contencioso Administrativo desempenham função jurisdicional sobre lides de que a Administração Pública seja parte interessada.

O sistema de jurisdição una se amolda ao princípio da tripartição das funções do Estado, segundo o qual cada Poder há de exercer função própria. O Poder encarregado de uma atribuição não pode desempenhar outra. Atualmente, tal sistema vige na Inglaterra, seu berço, nos Estados Unidos, no Brasil, entre outros países. (GASPARINI, 2009)

O aporte constitucional do sistema da unidade de jurisdição é o artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, que dispõe:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;

O dispositivo supratranscrito consagra, conforme já oportunamente mencionado, o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, também chamado de princípio do controle jurisdicional, quando estabelece que a lei não excluirá lesão ou ameaça a direito da apreciação do Poder Judiciário.

O princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, consoante ensina Ada Pellegrini Grinover (2007), foi se robustecendo em todos os Estados modernos, assinalando o monopólio estatal na distribuição da justiça (ex parte principis) ao passo em que também indica o amplo acesso de todos à referida justiça (ex parte populi). A previsão legal do referido princípio é anterior ao atual texto constitucional, uma vez que a Constituição Brasileira de 1946 já o havia consagrado.

Nesta senda, Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2007, p. 190) indica que a relevância do artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal

está em vedar que sejam determinadas matérias, a qualquer pretexto, sonegadas aos tribunais, o que ensejaria o arbítrio. Proíbe, pois, que certas decisões do executivo, que devem estar jungidas à lei, escapem ao império desta, eventualmente, sem a possibilidade de reparação. (2007, p. 190)

Assim, assiste exclusivamente ao Poder Judiciário, decidir com força definitiva, toda e qualquer lide acerca da acertada aplicação do direito a um caso concreto, sejam quais forem os litigantes ou a índole da relação jurídica controvertida. (CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, 2010)