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1.3 Atuais estudos Afro-brasileiros: Breve literatura da área

No documento 000717678 (páginas 37-44)

38 Vários antropólogos, sociólogos e educadores têm se interessado pelos estudos da religiosidade afro-brasileira. Roger Bastide (2001) no clássico O Candomblé na Bahia, mostra um compromisso com o espaço e o tempo sagrado, dentro da estrutura do mundo, revelando o sentido do êxtase, do homem e o reflexo dos deuses. Reflexos estes que já vinham de uma tradição fotografada pelo pioneirismo de Raymundo Nina Rodrigues, do qual Artur Ramos (2007: 4), com seu protesto e reivindicação, já declarava: “Eu não me canso, em meus estudos atuais sobre o negro brasileiro, de chamar a atenção para os trabalhos de Nina Rodrigues, na Bahia, ponto de partida indispensável ao prosseguimento de um estudo sistematizado e sério sobre a questão”. Para Arthur Ramos, devemos muito a Nina Rodrigues, pois com ele, já começávamos a perceber que foi um escritor “fecundíssimo no seu tempo”. Tal fecundidade é tão notória que iluminou os caminhos de toda geração. Monique Augras (1983), nessa trilha, não deixa de enfatizar em O Duplo e a Metamorfose que, dentro dos estudos antropológicos, antes de Nina Rodrigues, o que existia eram apenas relatos de viajantes preocupados com os aspectos pitorescos.

Arthur Ramos surge como parte da chamada segunda geração de antropólogos e seu grande mérito é, nas palavras de Augras (1983:46), “ter introduzido a antropologia moderna e despertado o interesse de nova geração de pesquisadores”. Mas vale ressaltar que em Arthur Ramos, já havia em seus estudos sobre O Folclore Negro no Brasil, uma abordagem acerca da sobrevivência mítico-religiosa, inserindo os orixás fálicos, o ciclo do diabo, sem deixar de lado a sobrevivência da dança e da música, pois para Ramos, as danças são todas associadas à música e aos atos mágicos.

Da mesma forma, os estudos de Pierre Verger em Orixás (1981) dão vários sinais sobre o Candomblé na África e no Brasil. Embora tenha sido um fotógrafo, não deixa de testemunhar uma África que se abrasileirou no Brasil. Pierre Verger com seu fôlego fotográfico, nos mostrou em Orixás um importante e valioso documento, abrindo nossos olhos acerca dos Orixás no Novo Mundo, o poder do sincretismo, o aparecimento dos primeiros terreiros de Candomblé, os arquétipos, envolvendo todo um complexo de iniciação na África e no novo mundo, mostrando assim suas variações de cultos. Pierre Verger tornou-se assim, O “Fatumbi” (aquele que nasceu de novo pela graça de Ifá). Em Verger/Bastide: dimensões de uma amizade (2002) trata-se de uma seleção de escritos organizados por Ângela Lühning sobre as diversas publicações escritas pelos amigos e parceiros Roger Bastide e Pierre Verger. Segundo Lühning, por mais que ambos tenham sido discutidos na academia, pouco se tem falado da dimensão

39 dessa amizade que, segundo ela, muito tem contribuído para os estudos acadêmicos e é necessário assim, levar essa relação para um público maior.

Reginaldo Prandi (1991), em seu livro Os candomblés de São Paulo: a velha magia na metrópole nova tenta mostrar como se deu a passagem da Umbanda para o Candomblé na metrópole paulista situando a velha magia na metrópole nova. Logo depois, surge o monstro mítico, que é a Mitologia dos Orixás (2001), onde, de forma concisa e bem elaborada, retoma os mitos de Exu a Oxalá, apresentando um conjunto de fotos que mostram a beleza estética do terreiro. Os Orixás, artisticamente vestidos, compõem a ópera dos deuses. Ao enveredar pelos caminhos dos segredos do Candomblé, de forma séria e concisa, publicou Segredos Guardados: orixás na alma brasileira (2005). Nessa obra, Prandi evidencia a grande quantidade de cânticos e danças, vasculhando baús guardados, mostrando que o Candomblé, assim como todas as religiões, muda em muitos sentidos. O Candomblé, como um “panteão em mudança”, está sempre em movimento. Isso se deve ao fato de que o mundo é um processo intenso, um puro devir e esse devir se revela na alma brasileira. Mudar não é próprio simplesmente dos Terreiros, mas da vida e do mundo.

Em A morte branca do feiticeiro negro: umbanda e sociedade brasileira (1999), Renato Ortiz nos abriu um quando sócio-histórico narrando a metamorfose da memória coletiva africana, situando o código e a legitimação da Umbanda e sua prática dentro desse cosmo religioso. É um trabalho interessante na medida em que nos ajuda a pensar as fronteiras existentes entre o Candomblé e a Umbanda.

Evidentemente, vários estudos recentes vieram também abrindo várias possibilidades de diálogo como o surgimento de várias revistas. É o caso de

Faraimará: o caçador traz alegria (2000), revista publicada para fazer uma grande homenagem aos 60 anos de iniciação de Mãe Stella de Oxosse no Ilê axé Opô Afonjá em Salvador, onde reúne variados olhares e perspectivas sobre as religiões afro-brasileiras. Essa revista foi organizada por Raul Lody e Cléo Martins. Um conjunto de escritores tiveram a oportunidade de se encontrar e fazer um elogio ou homenagem a Mãe Stella que é uma das Mães de Santo mais conhecidas no Brasil.

Obras espantosas também são as de Raul Lody que vem tanto em “O Povo do Santo: religião, história e cultura dos orixás, vodus, inquices e caboclos”

(1995) quanto em “Jóias de axé: fios de conta e outros adornos do corpo: a Joalheria afro-brasileira” (2001) articulando o valor afro estético dos fios de contas, fazendo uma espécie de taxionomia e morfologia das mesmas. Ao

40 articular o papel das pencas de balangandãs na vida do Povo do Santo, recupera sua alegria, seu brilho, fé expressiva e criativa, sempre dando seu toque ao mostrar o charme das indumentárias que enriquece ética, estética e politicamente os Terreiros, recuperando os conceitos e tendências estéticas do fazer e do ser da arte africana. Raul Lody, a todo tempo nos chama a atenção em seus escritos ora pelo seu charme estético, ora pela curiosidade que nos aguça a olhar para a intensidade e a multiplicidade dos adereços que compõem esse cenário afro, apontando a indumentária de gala, o valor estético e simbólico do pano da costa, dos bordados de richelieu. Outra obra do autor foi “O negro no Museu brasileiro: construindo identidades” (2005). Nessa obra, Lody mapeia os vários museus espalhados no Brasil pedindo agô e com isso, ele mostra o poder das máscaras e dos personagens africanos nos terreiros, ampliando, por sua vez, a noção de museu.

Também Juana Elbein dos Santos, em Os nagô e a Morte (1986), nos deixou um registro conciso do sistema dinâmico do Axé dentro de todo um complexo cultural nagô, contribuindo assim, para um estudo sério e cuidadoso em torno da multiplicidade que existe na figura de Exu e do culto de Egun na Bahia. A autora nos insere dentro da Filosofia Nagô ampliando o nosso olhar para um dinamismo, onde o princípio da existência individualizada toma lugar central no sistema religioso. Assim, o complexo Nagô se evidencia em uma concepção de mundo dividida entre o Aiyê e o Orun e tudo que constitui a existência dinâmica do terreiro.

Dessa magia fez parte Alexandre de Salles, pois com ESU ou EXÙ: da demonização ao resgate da identidade (2001) fez concretizar um estudo sobre a figura de Exu, entregando-se constantemente à escuta do outro, desmitificando o mito que se criou em torno dessa figura, mostrando como é atual e que é um Orixá, assim como um dos seus elementos, cheio de encruzilhadas. Esse autor tem seu mérito nessa pesquisa pelo fato de não podermos falar em Candomblé sem falar em Exu, pois como o princípio dinamizador do mundo, é ele a força e a potência da vida.

Outro estudioso que teve uma relação estreita entre a academia e os terreiros, foi Vagner Gonçalves da Silva em seu livro O Antropólogo e sua Magia (2006), fruto de suas demoradas vivências e experiências, até um certo ponto como adepto do Candomblé e como cientista, onde começou a discutir os problemas de santo na sua Dissertação de Mestrado. Em seu livro, o autor privilegiou a pesquisa participante mostrando a magia do antropólogo ao discutir a sua presença no campo, e como se dá a passagem do campo empírico ao texto

41 etnográfico. Assim, nessa perspectiva do observador e observado, ele constrói toda uma paisagem, reunindo alguns etnógrafos contemporâneos, mantendo um contato pessoal, registrando suas etnografias, através de diálogos gravados. São antropólogos que tiveram uma relação estreita com o Candomblé, vivenciaram a relação do antropólogo com sua magia.

Em Candomblé e Umbanda: caminhos da devoção brasileira (2005) Vagner Gonçalves nos possibilitam fazer uma releitura dessas duas devoções recuperando a organização da família de santo, o universo social e religioso das nações e todo complexo que une e separa ao mesmo tempo essas duas religiões de origem afro-brasileira. Revistas curiosas também são exemplos de uma coleção “Memória afro-brasileira” organizada por Vagner Gonçalves (2007), intitulada

Imaginário, Cotidiano e Poder (2007), Artes do Corpo (2004) e Caminhos da Alma (2002), onde vários pesquisadores tecem as microrrelações de poder estabelecidas no cotidiano das comunidades afro-brasileiras.

Nessa trilha antológica, Edison Carneiro (2005) fortaleceu um tipo de discurso em Antologia do negro Brasileiro: de Joaquim Nabuco a Jorge Amado,

onde o autor recupera o pioneirismo de Nina Rodrigues, perfazendo uma trilha das religiões africanas e da figura do negro nesse contexto de reações, de escravidão e de abolição.

Mãe Beta de Yemonjá em Caroço de dendê; a sabedoria dos terreiros: como Ialorixás e Babalorixás passam seus conhecimentos a seus filhos (2008), traz uma variedade de estórias, envolvendo lendas, contos, mitos, costurando pedaços e relatos de toda uma sabedoria de vida que foi tecida no cotidiano da vida de santo. Entre o dito e o não dito, a Ialorixá recolhe do vivido e da capacidade imaginadora o fluxo vital que povoa sua vida nos terreiros que, ao lermos nos identificamos e nos faz perceber que somos afro-brasileiros e que, de fato, o Terreiro é o Brasil.

Gisèle Omindarewá Cossard, em Awó: o mistério dos Orixás (2008) tem o seu lugar ao falar de “dentro” sobre o universo dos orixás, revelando suas experiências como Ialorixá no Candomblé e como pesquisadora. A autora foi inicidada por Joãozinho da Goméia e, a partir dessa obra relata seus encontros e desencontros com os Terreiros. Faz assim, uma fotografia de seu “Axé”, revelando as origens e a vida após a iniciação.

Outra valiosa contribuição foi a trajetória percorrida por Rita Laura Segato (2005), em Santos e Daimones: o politeísmo afro-brasileiro e a tradição arquetipal. A autora traz uma contribuição relevante na medida em que ela mapeia o panteão nagô de Recife, recuperando o “Eu”, a configuração da “pessoa”

42 fortalecendo uma discussão que povoa a tensão monoteísmo-politeísmo, envolvendo o santo e a pessoa, fazendo um contorno no universo místico e mítico dos Orixás, mostrando como reconhecê-los dentro desse universo plural da pessoa, bebendo em águas junguianas para abordar a tradição do Xangô no Recife.

Dentro dessa tradição de estudos em torno da noção de pessoa e do pensamento antropológico, Márcio Goldman (1996) faz uma abordagem instigante sobre a possessão no Candomblé. O autor, ao tentar dar uma explicação verdadeiramente antropológica para o transe, nos mostra que o corpo é o meio onde a experiência com o sagrado se mostra nesse universo da possessão, havendo uma interdependência entre a possessão e a noção de pessoa, onde o Filho de Santo é encarado como uma multiplicidade.

Rita Amaral (2005) tem seu lugar na medida em que problematiza a noção de festa e o prazer no Candomblé. Em Xirê! O modo de crer e de viver no Candomblé a autora recupera a festividade do Candomblé tendo o ethos do Povo do Santo como o móbil fundante que exprime todo um complexo modo de ser, de viver e crer no Candomblé, dentro de uma estrutura cosmológica do grupo, recuperando um traço jocoso que faz parte da essência do Povo do Santo.

Dentre os vários pesquisadores que falaram “de dentro” e passaram por todo um ritual de iniciação, e que vieram dessa tradição Verger-Bastide, muitos trabalhos passaram a ter o respeito da academia, pois perceberam que são trajetórias nada desprezíveis como é o caso de José Beniste (2006) que foi iniciado em 1984 pela Ialorixá Cantu de Airá Tola de Axé Opô afonjá. Em Òrun e Àiyé: o encontro de dois mundos: o sistema de relacionamento nagô-yorubá entre o céu e a terra”, Beniste traça um mapa recuperando as línguas, os cânticos e as rezas, penetrando na classificação das divindades e abordando os valores éticos e morais da religião.

Percorrendo Trajetórias, práticas e concepções das religiões afro- brasileiras na Grande Florianópolis, Cristiana Tramonte (2001) reafirma Com a bandeira de Oxalá! As práticas religiosas, indo à cata dos primeiros terreiros de Umbanda em Florianópolis, recuperando uma história que originou do universo cosmológico das benzedeiras, curandeiros e “feiticeiros”, fazendo assim, um contorno, buscando interpretar a trajetória histórica que tem um papel importante na formação social e cultural das religiões afro-brasileiras da Ilha da Magia.

Ainda em “Cantando para os Orixás”, Altair B. Oliveira (2007) reuniu um considerável número de cantigas de santo, testemunhando o aprendizado que

43 extraiu durante seus mais de vinte anos de iniciação, da língua Yorubá. O autor, inspirado nas cuidadosas leituras feitas pelo Os nagô e a Morte de Elbein dos Santos, recupera o significado das cantigas, revelando a complexidade da língua e, de certa forma, nos faz perceber que faz parte da beleza estética do terreiro, pois sem música, não há Candomblé. É a música, os sons dos atabaques que trazem os deuses em terra e mostra a beleza do santo. Entrar no Candomblé, assim, implica aprender todo um repertório musical que compõe o cenário estético dos deuses.

Percorrendo o aspecto da beleza “odara” do Povo do Santo, nessa trilha estética a socióloga Patrícia Ricardo de Souza defendeu em 2007 a Tese de Doutorado intitulada “Axós e Ilequês: Rito, Mito e a Estética do Candomblé”, orientada pelo professor Reginaldo Prandi e na mesma, a autora defende a importância do mito na plasticidade estética, voltando o olhar assim, para a experiência visual no terreiro, onde os axós ganham contornos mais definidos na medida em que eles revelam a beleza odara na vida do Povo do santo. A autora mostra assim, o valor estético dos colares, o sentido da roupa de gala, o traje da baiana, fazendo um panorama dos trajes e da riqueza visual que povoa os terreiros de Candomblé e Umbanda. Para a autora, Axó-orixá, é orixá-odara. É brilho, é festa, é alegria.

Ari Pedro Oro, em Axé Mercosul: as religiões Afro-brasileiras nos países do prata ( 1999), a partir de uma ótica conflitante, Oro traz uma grande contribuição acerca do Batuque, mostrando o caráter complexo e problemático da formação de identidades coletivas, envolvendo os processos de transnacionalização no Mercosul, bem como seu aspecto conflitivo como uma das características marcantes entre os praticantes das religiões afro-brasileiras.

Outro olhar nesse universo do Batuque gaúcho, foi o de Francisco de Assis de Almeida Júnior (2002), intitulado “Aprontando Filhos-de-santo”: Um estudo antropológico sobre a transmissão/reinvenção da tradição em uma rede de “Casas de Batuque” de Porto Alegre”. O autor propõe pensar a tradição batuqueira a partir da noção de pessoa, recuperando assim, o aprendizado de um conjunto de práticas rituais, incorporando uma visão de mundo calcada na hierarquia e na reciprocidade, buscando compreender desde o vínculo do batuqueiro com seu orixá pessoal às relações de aprendizado. Assim, Almeida Júnior busca um aprendizado dos “fundamentos” batuqueiros.

Na trilha dos Batuques, Ana Paula Lima Silveira (2008) apresentou em sua Dissertação do mestrado intitulada “Batuque de Mulheres”: Aprontando Tamboreiras de Nação nas Terreiras de Pelotas e Rio grande/RS”. Trata-se de

44 um estudo etnográfico envolvendo trajetórias de três tamboreiras de Nação que são mulheres batuqueiras nas cidades de Pelotas e Rio Grande/RS. A autora procura compreender as redes e significados que a música adquire nesse contexto religioso e as implicações de gênero nessa tradição percussiva buscando assim, compreender como essas tamboreiras se aprontam nesse universo sonoro- musical do Batuque gaúcho.

É claro que essas referências bibliográficas são apenas o começo de uma dança que nunca termina, pois a literatura na área é grande.

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