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Justificativa e intencionalidade

No documento 000717678 (páginas 30-35)

I PRIMEIRA JORNADA: “APRESENTAÇÃO DO IAÔ”

1- Justificativa e intencionalidade

Devo justificar essa Tese em três questionamentos. Primeiro, porque esse tema? Segundo, porque ela é importante para a Comunidade Acadêmica? E terceiro, qual a sua relevância para a comunidade como um todo, ou melhor, para a Educação?

Ora, a escolha do tema é devido à minha própria iniciação pedagógica e religiosa no Candomblé, pois convivi boa parte de minha vida com o Povo do Santo, incluindo meu processo pedagógico de iniciação. Fui iniciado há 14 anos na cidade de Goiânia, Estado de Goiás, no Axé Oxumarê, cuja matriz se encontra em Salvador, hoje, sob a liderança religiosa de Babá Pecê (Silvanilton da Encarnação da Mata). Além de fazer parte diretamente de minha vida, penso que é de fundamental importância levarmos para o meio acadêmico o olhar do “nativo”, o olho “de dentro” da tribo, para esclarecermos algumas concepções que povoam as comunidades afro-brasileiras, principalmente em uma era de intolerância religiosa, onde as comunidades afro-brasileiras aumentam a cada dia, intensificando, assim, a cultura brasileira e a identidade nacional. Mas podemos justificar ainda por ser uma religião marginalizada onde o preconceito nunca deixou de fazer parte do quadro semântico ao se referir às religões de origem africana.

O fato de escolher a Educação para essa “amarração” textual, é por sempre acreditar nela como transformadora e transfiguradora do sujeito, pois ela deve se empenhar em professar saberes que nos fazem perceber o mundo com menos preconceito e mais respeito à diversidade. É na Educação intercultural que possamos problematizar um novo exercício do pensamento capaz de dar uma nova fisionomia à educação afro-brasileira, onde a guerra que foi um dia declarada contra os afro-religiosos, possa se transfigurar em educação afro-dialógica iluminada pelo Axé da Paz.

Assim, começaremos a fortalecer o elo entre os Terreiros e a Academia, abrindo para um possível diálogo intercultural, a fim de fortalecer e intensificar as alianças, levando essa cosmovisão afro-estética dentro de uma esfera pedagógica, fundindo a razão e a loucura, o alto e o baixo, o caos e o cosmo, o orun e o aiyê, em uma dobra que se estende ao infinito. No que diz respeito à comunidade como um todo, se faz necessária uma investigação que propõe fazer uma releitura do Candomblé, como um espaço pedagógico, pois em cada espaço, configurado como sagrado, habita a pedagogia afro-brasileira.

31 Assim, como estou fazendo uma proposta em um Programa de Pós Graduação em Educação, o que se espera é que façamos uma discussão que povoa o universo pedagógico, situando-nos em uma problemática que dança com a Linha de Pesquisa que acolheu o pré-projeto que se transformou em Proposta de Tese. Diante disso, tento fazer uma costura olhando de dentro e de fora ao mesmo tempo, em um jogo interminável de linguagem, como um tecelão, onde os fios vão se compondo e intensificando ainda mais esse cenário poético-afro-estético e afetivo, movido pelo móbil da criação, da imaginação e da invenção de novas possibilidades de vida. Dar voz ao Terreiro e ouvir sua própria voz é o meu Odú.

É possível justificar mais: embora muitos Estados no Brasil têm sido fonte fecunda de pesquisas afro-brasileiras, no Estado e Goiás carece de uma atenção especial, pois não tem ainda um olhar epistemológico que venha mapear o cenário afro-brasileiro que existe na capital goiana, pois parece que até hoje não tem levantado curiosidades dos antropólogos e demais estudiosos da religião Nagô em desvendar o Axé que se firmou no solo goiano. A intencionalidade maior é de fotografar o aspecto pedagógico, ético e estético do Povo do Santo.

O caráter estético e ético foi se configurando na medida em que o referencial teórico foi aparecendo. Através de Michel Maffesoli, tive a possibilidade de estabelecer uma relação com o Candomblé e com a estética que, para ele, não se separa da ética. Pude conhecer uma teoria que fala do Cotidiano, da vivência, da ética e da estética do estar–junto. Para isso, as disciplinas que fiz com a professora Malvina do Amaral Dorneles foram essenciais, pois pude fazer esse entrelaçamento entre a tribo do Candomblé, a ética e a estética da convivência e apontar uma sensibilização ou sensibilidade pedagógica que se dá nessa sensação coletiva e nessa comunhão dos santos.

Podemos justificar também esse título que veio de uma “exaltação nervosa”, de um empurrão e de um afeto. A gestão porque se cruza, se dialoga e se religa à Linha de Pesquisa. A Jornada veio porque está relacionada à marcha, à caminho (odu), e ele está sempre sendo feita e refeito. É uma jornada que pode ser mudada de rumo, de direção e ser lançada nas encruzilhadas de Exu a qualquer momento, pois são essas encruzilhadas do imaginário que estão em jogo. Eis a minha intenção nessas jornadas: levantar curiosidades, abrir uma paisagem afro-estética que testemunhe a vida de um povo, que tem um forte elo com a minha vida, com a nossa vida, pois todos nós carregamos, de certa forma, essa fusão afro-estética. Enfim, pactuar com a Comunidade Religiosa, mostrar e ocultar, velar e desvelar ao mesmo tempo, pois as coisas de santo nem sempre devem ser revelados. A intenção, em outras palavras, parte de uma fotografia,

32 de um vivido, de um experimentar em comum o saber e o sabor da tribo. Para isso é preciso, lembrando Monique Augras5, manter uma forte aliança com ela.

Quando olho para mim mesmo enquanto iniciado no Candomblé e tentando ao mesmo tempo compreender epistemologicamente esse universo multifacetado e complexo, não me causa estranheza nenhuma, uma vez que os célebres estudos de Roger Bastide e Pierre Verger, que são consagrados clássicos dos estudos afro-brasileiros, são, nas palavras de Vagner Gonçalves da Silva, “as experiências de inserção de autores tidos como clássicos no estudo do Candomblé, como Roger Bastide e Pierre Verger, são modelares.” 6. No entanto, com todo estranhamento e distanciamento que devo ter, sinto-me à vontade em exprimir a “minha magia”, que é de certa forma, vivida dionisiacamente em conjunto.

1.2 Encruzilhadas metodológicas

Procurarei discutir as narrativas do Povo- do- Santo, evidenciando o caráter pedagógico dos Terreiros, perguntando a todo instante que Pedagogia ou que Pedagogias instauram nessa vida inquietante e complexa que são esses Oris

(cabeças) de santo e que povoam os Terreiros de Candomblé. Irei trabalhar com entrevistas gravadas, a fim de dar visibilidade aos “sujeitos”, pois, na ótica de Malinowski, essa é a essência de uma etnografia “o relato honesto de todos os dados” (Malinowski 1984, p18). De tal honestidade tento ocupar-me na medida em que, ao entrar no Terreiro, tento mostrar a todo instante que assumo ali um outro devir que é a de pesquisador e, como tal, devo observar, descrever e

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AUGRAS, Monique. O Terreiro na Academia. In: Faraimará: o caçador traz alegria: mãe Stella, 60 anos de iniciação/ Cléo Martins e Raul Lody (org). - Rio de janeiro: Pallas, 2000. Para Augras, dentro da riqueza e complexidade do campo, o pesquisador deve privilegiar um aspecto, de acordo com a sua formação, suas preferências pessoais. Ressalta ainda que as alianças devem ser estabelecidas e o campo deve concordar em ser estudado. No meu caso, antes mesmo do Candomblé se transformar em um problema epistemológico, já havia criado um laço afetivo com a tribo e a mesma, pela confiança que sempre depositou em mim, sempre concordou em se transformar em “objeto” ou “sujeito” de estudo especulativo, em rede de pensamento. Mas mesmo sendo “de dentro”, tenho a consciência das leis e éticas do terreiro que me impedem de dizer certos “fundamentos” ou segredos que fazem parte da essência da religião. Se essa acolhida e confiança existiram, elas devem perpetuar até mesmo para eu ir e vir à tribo de alma aberta, beijar as mãos dos mais velhos, pedir agô aos deuses, bater a cabeça e ser eternamente acolhido no Axé. Por isso a aliança entre o terreiro e a academia deve permanecer nessa eterna dobra, abertura, confiança e respeito à alteridade.

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SILVA, Vagner Gonçalves da. O Antropólogo e sua Magia: trabalho de campo e Texto Etnográfico nas Pesquisas etnográficas sobre Religiões afro-brasileiras.-1a. ed.,1a. reimpr.- São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. p. 94.

33 estranhar. Faço uso da observação participante que teve como característica o meu envolvimento/participação e iniciação propriamente dita no Terreiro, e enquanto seguidor efetivo da Comunidade- candomblé, uma vez que quase todas as vezes que estava no Terreiro era como crente, “de dentro”. Assim, me vejo sempre nas encruzilhadas entre o crente e o não crente. A coleta de dados se deu através de entrevistas, de estudo de caso, onde as perguntas se configuraram em torno dos saberes e aprendizados no Candomblé, as relações entre Pais e Filhos de Santo, a convivência no Ilê, o aspecto visual, o valor estético e simbólico das contas e adereços que enriquecem e dão uma plasticidade ornamental à beleza nos Terreiros. É o aspecto estético-pedagógico.

Termo de Consentimento. Aspecto ético da pesquisa: O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi lido por todos os entrevistados do Ilê Axé Oyá Gbembale e encontra-se no Anexo. Os colaboradores foram convidados a participar da pesquisa que seria gravada em fitas cassete, as festas seriam filmadas e as fotos seriam colocadas na Tese. Todos concordaram e assinaram o Termo. Foi o que me deu possibilidade ética para testemunhar a vida do Povo do Santo, vasculhar seus baús e guardados. Boa parte da Tese foi escrita no Terreiro. Ali foram batidas mais de cem fotos e selecionadas por mim e por eles que acompanharam todo percurso do trabalho.

Quanto à política das fotos, confesso que tive dificuldades em selecionar a numerosidade de fotos que tenho em mãos desde quando eu conheci o Candomblé e que me iniciei. Em muitas Casas de Candomblé não é aceito tirar fotos. Não é o caso da maioria das Casas de keto, pois a maioria dos estudos sobre a religião afro-brasileira, carrega uma grande quantidade de fotos. No Batuque, como nos ensinou Francisco de Assis de Almeida júnior (2002), é proibido fotografar as pessoas em transe e dizem que eles não podem se ver fotografados. No Ilê Axé estudado, tive abertura suficiente para atravessar as cortinas e as portas do Ilê para fazer as fotografias. Mas mesmo assim respeitei não somente a vontade do Povo do Santo, como também não abusava de tal abertura, pois sendo um “de dentro” devo ter a consciência ética de que certos “fundamentos” e rituais que são abertos somente para os iniciados, ou àqueles que são “guardados”, devem assim permanecer. Foto no Candomblé é documento pois comprova que a pessoa foi de fato iniciada. As fotos estão dispostas no interior do texto para dar uma suavidade, valorizar o aspecto visual, estético, a beleza “odara” ou um rápido processo de associação da imagem com o que está sendo falado para facilitar a leitura. Em alguns momentos, apresento algumas fotos que foram tiradas por mim e pelos Filhos da “Casa’ Alan Pereira e Bruno

34 Pimenta que se dispuseram em fazer as fotos, uma vez que, em vários momentos, eu estava nos rituais e não podia revelar meu devir-fotógrafo, embora estava sempre com olhos atentos e fazendo uma radiografia de tudo. E eles, como são do Candomblé, sabiam o que poderia e o que não poderia fotografar e até que ponto poderia revelar esse mundo multifacetado, enigmático e complexo. Tem ainda fotos de um amigo e irmão de Axé que se dispôs a tirar algumas para mim em sua excelente máquina para captar a beleza estética do Terreiro que foi Warly Oliveira que conheci na casa de Pai Raimundo de Oyá. Selecionei algumas e as lancei aqui. O critério de seleção das fotos foi o aspecto estético, afro, religioso e da convivência. Falar da iniciação de outras pessoas foi a forma que tive de manter um maior distanciamento, pois observando e participando da iniciação de outras pessoas no Santo, fez de mim um pesquisador e me deu mais possibilidade para olhar de “fora”. Ative em “fotografar” mais os deuses no Terreiro que são nossos maiores personagens, pois como diz o Povo do Santo, “é o Orixá o brilho do Candomblé”. Assim, deixei esse “brilho” mostrar por si só. As fotos da capa foram batidas por Warly Oliveira e Alan pereira e, juntos, fizemos uma “montagem”: Sou eu em transe (Oxosse), meu Orixá, Pai Altair de Iemanjá à direita, eu no meio vestido de Pai de Santo, abaixo e , acima, eu e irmãos de santo dançando na roda. No “fundo”, objetos sagrados do Candomblé

Nas jornadas de entrevistas, tentei obedecer à hierarquia do Povo do Santo: primeiro quem fala é a Mãe, a mais velha, a matriarca. O fio condutor dessa Tese é a voz de Mãe Jane de Omolu e, através de sua narrativa pude tecer um diálogo com os Filhos de Santo Rodolfo de Xangô, Solimar de Oxum e Ana Paula de Oxum. A Mãe Pequena da casa, Lúcia de Oxum optou em não dar entrevista e eu respeitei beijando sua mão e dizendo, “Agô, Ialorixá. Minha bênção”. Com outras pessoas da “Casa” e fora pude colher várias informações em situações informais como nos intervalos das “Festas”, dos encontros informais que inclusive eu fazia a vários Pais de Santo para falarmos de coisas de santo e também de outras coisas que não são de religião, pois antes de fazer do Povo do Santo “objeto” de pesquisa, eu já havia criado um laço de amizade e afeto. E essa relação não posso e não quero perder pois não gostaria de ser um Filho ingrato que chega, faz a pesquisa e nunca mais volta, deixando lágrimas nos olhos dos informantes-amigos-irmãos. Dessa forma, eu nunca quis apenas chegar em suas “Casas” com um caderninho na mão, com um gravador ou até mesmo preparando a máquina fotográfica ou retirando meu celular para fotografar, pois às vezes, como não freqüentava os Terreiros apenas como pesquisador, não levava sempre a máquina, nem papel. Às vezes, os momentos em que mais aprendia e percorria os

35 subterrâneos mais profundos do Povo do Santo, eram nesses eternos instantes de informalidades. Usei do bom senso e às vezes da intuição, pois o Povo-do- Santo, como o ser-no-mundo, tem seus dramas e sentimentos.

Realizei uma entrevista com Pai Raimundo de Oyá, bordador de

rechilieu e personagem importante para a beleza “odara” do Povo do Santo. Além das conversas informais que pude manter nos “intervalos” das demoradas Festas de Candomblé com os mais velhos que geralmente não conseguíamos nunca nos encontrar, seja por estarem muito ocupados jogando búzios, atendendo “clientes”, fazendo “ebós” seja em algum ritual interno como Bori ou outros “fundamentos”. Tive que aproveitar esses momentos da “Festa” para dialogar com essas pessoas.

Como pretendo trabalhar com narrativas e relatos de experiências, o melhor referencial é a vivência, pois esse trabalho é uma Pesquisa Participante. Faço uso de gravações e tento transcrever as entrevistas da forma mais fiel e séria possível, pois o teor ético do trabalho já me arrasta para esse olhar. É o mundo vivido que passa a ser o fundamento de toda teoria. Às vezes me sinto como Vagner Gonçalves da Silva ao relatar em O Antropólogo e sua magia que lhe causava certa estranheza em ter que entrevistar pessoas com quem ele havia estabelecido um forte vínculo. Assim me sinto e, às vezes, quando especulava o modo-de-ser do Povo do Santo, eles me diziam: “Odesse, disso você está cansado de saber”. Mas aqui começa a luta, pois nunca cansamos de saber, de perguntar, de especular. A ignorância do pesquisador está justamente nesse movimento de distanciamento e de escuta ao “outro”.

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