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4 TERREIRO: ESPAÇO DO MOVIMENTO, DAS CONTRADIÇÕES E DA COMPLEXIDADE

No documento 000717678 (páginas 141-146)

Filhos de Santo dançando na roda. Foto: Alan Pereira. Data: 16/09/2008.

Um pensamento que reconhece o movimento e a imprecisão é mais potente do que um pensamento que os exclui e os desconsidera. Morin, 2003:53

O Terreiro de Candomblé, dentro de suas complexidades38 existenciais e ontológicas, revela-se como um espaço que se ocupa com as cabeças. Elbein dos Santos assinala que o “terreiro” é um espaço onde se organiza uma comunidade - cujos integrantes podem ou não habitá-lo permanentemente” (Elbein, 1986:37). Assim, a Comunidade-terreiro é o espaço onde se celebram as “Festas” dos

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A noção de complexidade é retomada aqui no sentido usado por Edgar Morin. Para o autor da complexidade, o complexo é aquilo que é tecido junto. Pensar a complexidade é pensar o pensamento, a relação entre o todo e a parte. É, enfim, religar os saberes. No entanto, educar na era planetária significa se colocar à caminho do pensamento complexo como método de aprendizagem pelo erro e incerteza humana, dentro de uma pensar onde não se separa a sociedade do mundo. Cf. Morin. Educar na era planetária: o pensamento complexo como método de aprendizagem no erro e na incerteza humana. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2003.

142 Orixás. É o espaço onde acontece todo princípio dinâmico, portanto complexo, onde os rituais acontecem e as relações se intensificam entre o Povo do Santo. É no Terreiro que acontece o processo de aprendizagem. Os mais antigos contam que as “Casas” mais tradicionais exigiam que o Filho morasse no Terreiro durante muito tempo para aprender a etiqueta dos deuses e, apartir desse aprendizado, começarem o processo pedagógico de iniciação. É no Terreiro que os Pais de Santo ficam sabendo, através dos búzios, acerca da complexidade que cada ori

carrega. Quando a Mãe de Santo chega a dizer que “existe cabeça e cabeças”, é porque algumas cabeças guardam em si uma certa complexidade:

Bom. Eu fui raspada Omolu. Mas eu sou de Iansã com Omolu. E eu fui raspada para Omolu. Com o passar dos anos eu tive um problema sério na espiritualidade por essa razão eu tive vários pais de santo, zelador de Orixá. Porque eles não aceitavam a atual situação que eu me encontrava com essa Iansã. Que no caso seria realmente a dona do meu Ori, da minha cabeça. (...) Omolu tomava conta de mim. Omolu tomava conta de mim e a zeladora que me raspou. Estela de Omolu também que era de Omolu, também ela via Omolu. Ela me fez Omolu. Não tenho nada o que queixar não porque fui muito sucedida com essa obrigação que eu dei. Eu fique sadia, graças a Deus, graças a Omolu e graças à mão dessa senhora mãe Estela do Omolu que me ajudou muito na época. Mas fiquei satisfeita com essa obrigação também. Até que um dia eu achei Luis Ricardo de Omolu e ele foi atrás do conhecimento, dos fundamentos desse Orixá que é de Iansã. Duma vez que ele fez, tudo o que ela queria. Graças a Deus hoje estou em paz com ela e com Omolu, porque eu zelo dos dois. Da mesma forma que eu zelo de Omolu eu zelo de Iansã. O que eu dou pra um, eu dou pra outro. Então tudo aquilo que eles me pedem, tanto um quanto o outro eu cumpro, dentro da lei. Eu cumpro dentro daquilo que é determinado pela hierarquia, pelo direito, pelo certo. É essa história de Omolu com Iansã. Mas de qualquer forma eu sou de Iansã com Omolu. Mas continua Omolu como o dono porque uma vez raspado não é tirado. (05/07/2008/Mãe Jane)

Ora, para a Ialorixá Jane de Omolu, a sua cabeça (ori) é a morada de dois deuses. Omolu e Iansã. Já temos aqui um princípio de complexidade, pois na Nação em que ela se encontra, a pessoa pode apenas ter “receber” um santo. Cada pessoa é “regida” por um Orixá e sua cabeça foge dessa máxima, pois ela carrega uma Iansã de “herança”, dos ancestrais. Com isso, ela acaba tendo que acolher esse Orixá, pois ele passa a ser também o “dono” de sua cabeça (ori). Mãe Jane teve que mudar de Pai de Santo porque, segundo ela, Mãe Estela de Omolu, sua Mãe de Santo não tinha conhecimentos suficientes e não dominava os segredos desse Orixá. Ela teve que mudar de Pai de Santo porque muitos não

143 aceitavam essa condição dela ser filha de dois Orixás. É comum em algumas “Nações” alguns Pais de Santo falarem que “virar”, “receber” mais de um santo, é “marmotagem”, é erro, é “levar nome para a praça”. E os Pais de Santo “zelam pelo nome”, pois não se sentem bem terem os nomes expostos. Faz parte de um

ethos que os Pais de Santo comungam no Candomblé. O que a fez procurar outro Pai de Santo, o carioca Pai Ricardo de Omolu é o fato dele ter muito conhecimento da religião . Saber muito no Candomblé, é ter conhecimento dos “fundamentos”, do Axé. É atualmente um dos Pais de Santo mais respeitado nos entornos de Goiás-Brasília, tendo vários Filhos de Santo, fechou a Casa de Santo que tinha no Rio de Janeiro por problemas pessoais e espirituais e agora, com “Casa” aberta em Brasília.

Em outras palavras, os Filhos de Santo mudam de Pais de Santo em busca de conhecimento, de “fundamento” (orô), fruto de toda uma sociedade que muda a todo instante e, por isso, as pessoas estão insatisfeitas buscando mais aprendizagem e conhecimento de si mesmos através dos deuses. O Pai de Santo passa a ter mais respeito quanto mais domina os segredos dos Orixás. Tendo mais conhecimentos, mais eles podem ter sensibilidade para decifrar os enigmas do humano do homem. Nesse sentido, o Terreiro passa a ser um espaço de contradições e conflitos, pois os Pais de Santos se ocupam diretamente com os problemas humanos.

Mãe Jane de Omolu do Ilê axé Oyá Gbembale foi iniciada por Omolu. Depois de algum tempo os búzios revelaram que existia uma Orixá de “herança” que era Iansã. Pai Ricardo de Omolu do Ile axé Oni bó ará ikó de Brasília foi iniciado por Omolu e, no entanto, era de Logunedé. Ora, um dia Pai Ricardo me disse: “olha filho, não é errado. Se fizeram Omolu em mim é porque no fundo eu tenho esse Orixá e eu aprendi a amá-lo, pois ele também me aceitou como filho, prova disso é que ele vem em mim”. Em outras palavras, não existe “santo errado”. Existe cabeça e cabeças e somos regidos por essa complexidade que é a própria natureza. Assim, a cabeça é composta por todo um “carrego” que determina por sua vez, o arquétipo e a natureza de cada filho. É o que chamam no candomblé de “enredo”. Além do primeiro santo, o “dono da cabeça”, existe o segundo santo39 (adjuntó ou juntó).

39 No Axé Oxumarê, que faz parte da grande Nação Keto, as pessoas somente “viram” ou

“recebem” o primeiro santo. Não é muito comum “receberem” o segundo ou terceiro santo. Embora existam algumas Nações em que os Filhos de Santo “viram” ou incorporam em vários Orixás que compõem o enredo ou fazem parte do “carrego” da pessoa.

144 Assim, é muito comum nos Terreiros de candomblé as pessoas mudarem de Pais de Santo em busca de Axé, de conhecimentos, de fundamentos (orôs) que possam guiar as pessoas, trazendo prosperidade e caminhos (odus). Muitos adeptos que saem do Candomblé, geralmente procuram as igrejas de crente, difamam a religião, pois depois chegam à conclusão de que não era isso que buscavam. Muitos se decepcionam com Pais de Santo que abusam do poder. Sobre isso, adverte-nos Prandi: “jovem perde a confiança no mais velho, contesta sua sabedoria, rompe a lealdade para com aqueles que o iniciaram e pode abandonar o grupo a procura de outros líderes que lhe aparecem mais apropriados, mudando de axé, como se diz, mudando de terreiro, de família de santo, de filiação religiosa” (Prandi, 2005: 48). No entanto, a vida do Povo do Santo é tomada por essa transitoriedade. É muito comum vermos Filhos de Santo decepcionados com os Pais de Santo pelas contradições ou às vezes explorações financeiras. Muitos Pais de Santo não evitam passar para os Filhos certos “fundamentos” da religião, certos segredos para que eles fiquem na eterna dependência de seu poder, mantendo assim, a eterna liderança em suas casas. A luta política dos Pais de Santo é pela cabeça (ori) dos Filhos.

Mudar de Casa de Santo, ou de Axé é uma dinâmica que faz parte do modo de ser e de viver do Povo do Santo. Essa busca pela mudança, pelo Axé e pela força, traz toda uma luta de poder e uma eterna guerra entre os Terreiros. Quando um Filho de Santo resolve procurar um outro Pai de Santo, é motivo de ciúmes, de falação, de “queimação”. Intensifica-se aí a “guerra” e os conflitos entre os Terreiros. Os Pais de Santo entram em “guerra” e uns até proíbem que seus filhos vão em outras casas, com receio de que estas possam “fazer a cabeça” dos seus. Dessa forma, o Povo do Santo é um povo também de ejó. Isso me lembra muito as guerras políticas que são travadas nas universidades entre orientandos e orientadores. Às vezes um orientando é pego pelo orientador para causar mais intriga ainda que já vem sedo tecida ao longo do anos entre os pesquisadores. Assim, tanto a academia quanto os terreiros, transforma-se em espaços contraditórios e de imensos conflitos. Existem certos orientadores que proíbem certos alunos de fazerem certas disciplinas com certos professores, assim como alguns Pais de Santo, tendo medo de que aquela casa possa “fazer a cabeça” do Filho.

Mas os Filhos de Santo quando entram no Candomblé deve aprender a lidar com todas essas contradições e incertezas que perpassam as casas de santo. Isso é um sintoma do próprio mundo moderno. Diz Balandier: “modernidade é movimento mais incerteza” (Balandier, 1997:16). No entanto, a vida do Povo do

145 Santo é guiada por essa complexidade movida pelo movimento e pela incerteza, onde há a incessante busca pelo novo que vem anunciando um mundo cheio de Axé, que, na sua insatisfação e provisoriedade, marca os rumos dos homens na face da terra. Assim, “não é a religião enquanto conservação e permanência que deve interessar à sociologia, mas sim a religião em mudança, a religião como possibilidade de ruptura e inovação, a mudança religiosa e, portanto, a mudança cultural.” (Pierucci & Prandi, 1996:9). Dessa forma, o Terreiro de Candomblé transforma-se em um espaço de movimento, de devir e contradições, pois a vida do Povo do Santo é permeada por essa luta constante em busca do novo, da ruptura e da inovação. E é também a luta para preservar a tradição e a herança dos ancestrais. Na religião, assim como na vida, nada permanece idêntico a si mesmo, pois como espaço de mudança, o Terreiro anseia acreditar na magia e no Axé dos deuses.

Existem Pais de Santo que são inconformados com certas posturas éticas de outros Pais de Santo. Existem aqueles que criticam e “xoxam” os que tentam mudar a tradição. Mas mesmo assim, é a crença no Orixá que une o Povo do Santo e os fazem acreditar que tem Orixá e que, acima dos homens, eles estão. Assim, se o movimento e as contradições existem, é porque os Terreiros não podem ser vistos fora do mundo, pois a complexidade dos Terreiros e do mundo ou do terreiro-mundo se revela “através das incertezas e através das contradições. (Morin, 2003:148). São as incertezas e as contradições que nos colocam no jogo da vida e do mundo no constante debate entre a ordem e a desordem, entre o todo que é mundo e o Terreiro que é a parte desse mundo.

No entanto, o Terreiro guarda em si essa tríade inseparável “contradição-movimento-complexidade” na medida em que faz parte da complexidade do mundo envolvendo ao mesmo tempo a unidade e a pluralidade, permanecendo o jogo entre a ordem e desordem e também, uma espécie de cooperação entre ambos intensificando assim, o contraditório. Dessa maneira, o Terreiro, enquanto espaço pedagógico, se revela como espaço das contradições e dos anseios pela incerteza, pois tudo está voltado para a força dos Orixás. São eles quem determina os rumos das pessoas na terra. Assim, tudo se liga e re-liga ao mundo dos deuses, cuja comunicação se mantém pelo Jogo de Búzios, que iremos falar mais adiante. Assim, podemos dizer que o Povo do Santo é guiado pelas forças da natureza, pelo fogo de Iansã, pela justiça de Xangô, pelas águas de Iemonjá e Oxum. A vida do Povo do Santo é marcada por esse conjunto complexo que compõe a força viva da natureza a ponto de poderem dizer “somos filhos do cosmos, trazemos em nós o mundo físico, trazemos em nós o mundo

146 biológico, mas com e em nossa singularidade própria” (Morin, 2005: 567 - grifos do autor). No entanto, respeitando a singularidade de cada pessoa, é possível dizer que são todos ou somos todos filhos do cosmos, carregamos em nós a totalidade de todas as coisas que fazem parte da natureza. No fundo, os deuses se religam sempre, pois existem os “enredos” que fazem parte da complexidade dos Orixás, e as “qualidades dos santos”. É o caso de Iansã e Ogum que, apesar de viverem em eterna discórdia, eles têm uma forte ligação. Enfim, todos os Orixás com seus mitos se cruzam, de certa forma. Isso para nos mostrar que na natureza, nada se separa. E é todo esse cosmos que forma a unidade e intensifica o Axé nos Terreiros e faz deles um espaço do devir.

Ialorixá em transe. Ekede e Pai de Santo arrumando sua roupa (axó). Foto: Paulo Petronilio. Data: 16/09/2008

É preciso estar presente, presente á imagem no minuto da imagem (...) no êxtase da novidade da imagem. Bachelard, 1984:183

5 - Os Subterrâneos da Comunidade Religiosa:

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