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5 Os Subterrâneos da Comunidade Religiosa: Socialidade, Poética e Imaginário

No documento 000717678 (páginas 146-152)

147 Ora, o Candomblé, enquanto uma Comunidade Religiosa e tribal, revela sua potência subterrânea nesse “nós” que serve de cimento e intensifica as relações no estar - junto. É um estar – junto na fé, na irmandade, na tribalização que faz erguer uma política viva do sentimento que une os Pais com os Filhos de Santo. Um estar - junto ontológico e espiritual, pois é próprio da religiosidade essa marca de “religação”. É no cotidiano, na “comunhão dos santos” que esse cimento social se intensifica. Diz Maffesoli:

A religião, como acontecimento, é do cotidiano, do perpétuo relacionamento; <religação>de uns com os outros e, claro. Ligação com esse mundo aí que serve de enquadramento, de matriz de interação social. (Maffesoli, 2005:169)

No entanto, a socialidade40 subterrânea, dentro de sua fronteira ética e estética faz da religião um acontecimento, um evento estético que se realiza na comunhão ou na junção, no mistério da conjunção humana. O Candomblé se liga e se religa diretamente à natureza. Os Orixás são os elementos da natureza. Nanã é um dos Orixás mais velhos e respeitados do Candomblé, pois é o signo da morte, do fim. Deusa da lama, das águas paradas, do pântano. Os Orixás têm, em suas individuações as várias maneiras de se religarem a outros deuses. É o que no Candomblé chamam de “enredo”. Ter enredo é fazer parte de um panteão, de uma conjunção de deuses. É fazer parte da “família” do Orixá. Assim, Logunedé tem “enredo”, ligação, mantendo uma forte conjunção com Oxum e Oxosse, pois são seus pais. É a sensação de que existe tribo na tribo. Os deuses se tribalizam. A “família querejebe ou unjí” refere-se a Nanã e Oxalá que são pais de Ossaim, Omolu e Oxumarê. Existe assim, uma política da socialidade entre os deuses que aproxima por sua vez dos homens formando tribos. É tempo das tribos.

Assim, há uma forte conjunção entre os deuses. De Exu a Oxalá, a história dos deuses se fundem, se confundem, onde uma história se liga e se religa a outra. Em um dos mitos de Oxalá que diz assim: “Um dia Oxalá e Exu puseram-se a discutir. Quem era o mais antigo orixá do mundo?” (Prandi, 2005: 513). No entanto, o conflito entre Exu e Oxalá, a fúria de Ogum ao trair o pai e deitar com a mãe, foi contada por Reginaldo Prandi na Mitologia dos Orixás e

40 Em Maffesoli, a noção de socialidade não pode ser reduzida ao “social” moderno, dominado pela

razão, a utilidade e o trabalho. Muito pelo contrário, ela integra os parâmetros essenciais (e normalmente desprezados) que são o lúdico, o onírico e o imaginário. Cf. A Transmutação do mal. In: A Parte do Diabo: Resumo da subversão pós-moderna; tradução de Clóvis Marques. - RJ: Record, 2004.

148 Ogum diante do pai se decretando pena diz: “perdoa-me, pai, castiga-me de dia e de noite. (Prandi, 2005:42). Dessa forma, o mito conta de uma forma poética a história dos deuses que são os destinos dos homens na terra. Todos os Orixás se relacionaram. Os mitos se religam formando um tecido complexo no universo iorubá.

Assim, o mito tem uma forma de aguçar a imaginação criadora, pois a “expressão poética” (Durand: 1993:63) do mito se encontra nessa “imaginação simbólica” aguçada pela fenomenologia do imaginário, pois é a presença da imagem que nos leva ao devaneio e à expressão poética propriamente dita. Cada objeto simbólico que se encontra na Comunidade-terreiro faz parte de um imaginário que dá consistência e existência ao fenômeno religioso. Gilbert Durand (2002:25), dentro desse contorno antropológico, nos força a nos entregar a uma espécie de “fenomenologia do imaginário”, para ater-nos ao devaneio da imaginação e da fabulação criadora. Assim, há uma poética-afro-estética que nos coloca diante do pensamento. É o Terreiro, dentro de suas fronteiras com o imaginário e com a poesia. Assim, “a imaginação imagina incessantemente e se enriquece de novas imagens” (Bachelard, 1984: 196). No entanto, a socialidade subterrânea que emerge do Terreiro encontra-se nessa vizinhança com a emergência da imagem, pois é ela que ativa o pensamento forçando-nos a criar e a fazer da imagem um processo de pura criação. Enfim, é a imaginação que nos possibilita criar novas imagens a todo instante e fazer da vida uma verdadeira obra de arte.

Alguns mitos testemunham que Oxum teve três maridos. Xangô, pois com ele ela teria seu ouro. Ogum, pois com ele ela teria seu fogo e Oxosse, o seu carinho. No entanto, os Orixás amam e odeiam. Assim, “a força viva do sentimento” (Maffesoli, 2005:115) traduz a socialidade tanto dos Orixas quanto do Povo do Santo. Os Orixás abraçam e beijam as pessoas, revelam seu sentimento de agradecimento através do suor e do afeto. Por isso, o Orixá é o pai ou a mãe da cabeça, pois cabe a eles darem carinho, amor e afeto aos filhos. E cabe a eles também darem a “surra” que cada um merece na hora certa. “Nesse sentido, estética significa intersubjetividade” (Maffesoli, 2005:116). Desse modo, a vida do Povo do Santo é marcada por esse ritmo afetivo e existencial. A primeira relação que se deve estabelecer nos Terreiros de Candomblé, é de confiança, de amor e afeto. É comum alguns Filhos de Santo dizerem “não deixo qualquer pessoa colocar a mão em minha cabeça”. No entanto, esse processo de socialidade se dá na confiança que o Pai de Santo passa para as pessoas. Essa confiança tem o Axé como força viva que une as pessoas nesse “nós comunitário”.

149 Daí a “família espiritual”, a “família de santo” tem como emblema a união, a conjunção. Em outras palavras, a dimensão estética que povoa o Terreiro de Candomblé é marcada por essa sinergia, por essa “gestão das paixões” (Maffesoli, 2005: 27), pois o que une o grupo ou a tribo é o sentimento. O sentimento de pertença de que podemos nos identificar com o outro, onde posso reconhecer-me no outro enquanto irmão, enquanto Nação, enquanto Comunidade Religiosa, enquanto “família de santo” que se intensifica e forma o “Povo do Santo”. É a força coletiva do Povo do Santo que forma a Comunidade Religiosa afro-brasileira. “É o que permite estabelecer um laço estreito entre a matriz ou a aura estética e a experiência ética” (Maffesoli, 2006:44). Assim a ética e a estética formam uma conjunção inseparável fortalecendo assim o estar - junto no “reino da aparência”.

Dito de outra maneira, somente se adquire a sabedoria e o Axé na socialidade. Na socialidade subterrânea, ou melhor, na pertença à tribo. Saber no candomblé é viver. É conviver. “A poesia e as artes introduzem-nos nas dimensões estéticas da existência humana e na busca da qualidade poética da vida, a filosofia abre os horizontes da reflexão sobre todos os problemas fundamentais que o ser humano coloca-se a si mesmo” (Morin, 2005:19). Ora, o processo de socialidade no Candomblé, dentro de sua complexidade existencial e ontológica, se afirma na dimensão estética do existir humano, instaurando no cotidiano e no imaginário do Povo do Santo, uma poética da vida ou uma sociopoética do imaginário. Os sons dos atabaques, o toque do adjá e do agogô fazem do Terreiro um espaço eminentemente poético afro-estético. Os instrumentos musicais que povoam os Terreiros de Candomblé são as armas poderosas para dar dinamismo e movimento aos Terreiros. Cada Mito dos Orixás deve ser encarado em sua sabedoria e em sua poesia.

Adverte-nos Durand (1993:10) “Finalmente, chegamos à imaginação simbólica propriamente dita quando o significado não é de modo algum apresentável e o signo só pode referir-se a um sentido e não a uma coisa sensível”. Dessa forma, o processo de imaginação simbólica no Terreiro se dá nessa apreensão do signo como um sentido que ele faz à Comunidade. Assim, o símbolo pertence à categoria do signo, formando uma unidade “signo-símbolo” que se declaram suficientes. Desse modo, a Comunidade-candomblé, dentro de suas estruturas do imaginário-poético, se revela enquanto uma complexidade que está em torno da imaginação, do simbolismo e da poesia que faz parte dos subterrâneos da própria cultura afro-brasileira. Ouvi várias pessoas dizerem que “só faço santo se for com pai fulano”. Isso mostra a força do Axé do Pai de

150 Santo desde o processo de acolhida. É importante que o Filho se sinta bem nessa “Casa de santo” que pretende se iniciar, pois é a energia do Terreiro que vai promover uma socialidade entre os Pais e Filhos de Santo. É preciso que os Filhos sejam de fato acolhidos na Casa, pois trata-se de uma “família espiritual”. Como toda família, tem suas brigas e seus conflitos. O Candomblé também é um espaço de conflitos. As quizilas e maledicências correm soltas a todo instante. Ouvi dizer que um Pai de Santo quizilou (brigou) com outro porque marcarou festa no mesmo dia. É motivo de brigas e conflitos, pois o Pai de Santo acha que está de implicância. Às vezes, os Pais de Santo sem saberem ou por falta de comunicação entre eles, marcam Festas de Santo no mesmo dia ou, às vezes isso acontece propositalmente. Isso acarreta longos conflitos que vão se desenrolando por muito tempo. Os ejós (confusões) entre os Terreiros se intensificam às vezes por mal entendidos. Tudo às vezes pode ser mal interpretado. Inclusive uma visita de um Pai de Santo a uma “Festa” de um outro Pai de Santo pode ser motivo de muita falação, para tentar mostrar algo ou até mesmo se vingar. No entanto, os subterrâneos da Comunidade- candomblé se ergue nessa agitação permanente, onde, às vezes o oju ( olho) daqueles que vêm à “Festa”, a intenção é apenas “conferir”, observar quem estava na “Casa” ou não, para depois levar a diante. O Povo do Santo faz do “leva e traz”, do “disse me disse” algo vital, pois quando eles se encontram, há a famosa expressão “tem algo forte para lhe contar” ou “está sabendo do último bafão?” “Fiquei sabendo que fulano não está mais na casa de sicrano”. E assim a língua corre solta e o Povo do Santo não perdoa nada e procuram a todo instante motivos e comentários para tecer junto sobre outras casas e até mesmo sobre a própria casa. Assim, a socialidade do Povo do Santo é construída nesses comentários maliciosos que, às vezes em tom de brincadeira, vai revelando o subterrâneo de cada pessoa que pertence à Comunidade Religiosa.

Em outras palavras, o Terreiro, dentro de suas fronteiras pedagógicas, é um dos espaços mais complexos para explorarmos o imaginário. Dessa forma, diz Maffesoli, “o imaginário envolve a psique individual; os sonhos, as fantasias e as angústias são o testemunho dessa ópera clandestina de que somos os frágeis atores” (Maffesoli, 2004:114). Assim, o imaginário afro que povoa os Terreiros de Candomblés, deve ser explorado nesse universo de sonhos e fantasias, onde, esse espaço sagrado transforma-se em uma ”opera”, e os atores atuam nesse cenário religioso em contato permanente com os subterrâneos afro-brasileiros de si mesmo no imaginário que existe para si diante dos outros e dos deuses. Nesse universo da religação dos saberes, Edgar Morin une o real e o imaginário

151 nos mostrando assim que “o real e o imaginário estão co-tecidos e formam o

complexus de nossos seres e de nossas vidas. A realidade humana em si mesma, semi-imaginária” (Morin, 2003:261). Dessa forma, o Terrreiro sobrevive desse imaginário sociopoético e estético que é de onde nasce o mundo real, vivido e experimentado pelo Povo do Santo. Terreiro é poesia. É obra de arte. É dobra. É conflito. É o avesso. É o duplo. É a máscara. É todos e ninguém. Está em toda e nehuma parte. É o Brasil. É o mundo.

152 Logunedé. Foto: Warly Oliveira. Data: 15/10/2008

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