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2 A ESTÉTICA NO COTIDIANO E NO ESTAR – JUNTO-COM O POVO-DO-SANTO

No documento 000717678 (páginas 84-91)

O estar - junto moral ou político, na forma em que prevaleceu na modernidade, não passa da forma profana da religião. Maffesoli, 2005: 15

Como existencial, o “ser - junto” ao mundo nunca indica um simplesmente dar-se em conjunto de coisas que ocorrem. Heidegger, 1999: 93.

85 O Candomblé, como todas as religiões afro-brasileiras, é um convite ao Povo do Santo para experimentar a Estética e a aprendizagem no Estar-junto diariamente na Cotidianidade dos Terreiros, pois é nessa convivência que se encontra a expressividade, o saber e o sentido da religião. Ora, como se configura essa estética no Candomblé? Diz Juana Elbein dos Santos (1986:49) “o conceito estético é utilitário e dinâmico. A música, as cantigas, as danças litúrgicas, os objetos sagrados quer sejam os que fazem parte dos altares-peji- quer sejam os que paramentam o orixá, comportam aspectos artísticos que integram o complexo ritual” (...). No entanto, o caráter Estético do Candomblé deve ser encarado em seu dinamismo, em sua fluidez, em seu devir, pois é todo um conjunto sagrado integrando à natureza cosmológica dos Orixás e toda complexidade do ritual, que forma uma obra de arte. Assim, cada música e cada gesto revela um signo artístico no Terreiro, pois toda beleza “odara” dos Terreiros, da vestimenta do Orixá e de toda decoração do “barracão” recebe esse tom artístico que é típico do Povo do Santo. Assim, ainda diz Prandi, “o candomblé é muito confundido com sua forma estética, a qual se reproduz no teatro, na escola de samba, na novela da televisão-os orixás ao alcance da mão como produto de consumo” (Prandi, 2005: 240). Desse modo, podemos perceber nos carnavais todo brilho e luxo das Escolas de Samba traduzindo, de certa forma, a realidade brasileira em sua festividade no estar junto mascarado, onde todos celebram juntos a vida no excesso e na alegria.

O Cotidiano18 do Povo do Santo, dentro dessas complexidades estéticas, revela a beleza tanto nos espaços sagrados como nos corpos, pois são eles que se transfiguram em obra de arte quando os Orixás estão em terra. Por isso, “esses objetos revestem-se de uma aura do sagrado que devem, inclusive, ser diferenciados daqueles que os adeptos usam no cotidiano”19. No entanto, há no Cotidiano do Povo do Santo uma dimensão ética e estética na valorização da roupa, pois as roupas dos Orixás revelam todo um contorno sagrado, além de carregarem as cores do santo, elas “vestem” no sentido forte do termo, cada

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Para Heidegger (1999), pensar a cotidianidade do mundo é estar lnçado ás possibilidades da

existência ontológica. Desse modo, o cotidiano da pré-sença n mundo é marcado pelo seu fim enquanto ser-para-a- morte. N ótica heideggeriana, ser-para-o-fim é esse poder ser mais próximo da presença. Assim, a temporliadde é determinante na cotidiannidade dos entes simplesmente dados. “a interpretação temporal da pré-sença cotidiana deve partir das estruturas constitutivas da abertura” (Heidegger, 1999, p.131). Tal abertura se dá no diálogo, ou melhor, no discurso ena compreensão. Estar-junto na socilaidade religiosa é ser-com-os outros na temporaliadde da pré-sença mundana.

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SILVA, Vagner Gonçalves. Arte religiosa Afro-brasileira: as múltiplas estéticas da devoção brasileira. In: debates do NGR. Porto alegre, Ano 9, N. 13, p.97.113, jan-junho. 2008, p.101.

86 Orixá. As roupas, suas cores e adereços, desenham cada Orixá. Por isso, a roupa e os pertences da pessoa não devem ser confundidos com as do Orixá. Essa questão das roupas e adereços merece destaque, pois são eles que compõem poética e esteticamente o cenário dos deuses. Por isso, essa questão será trabalhada com detalhe mais adiante.

Desse modo, toda uma convivência nos Terreiros é mediada por esses laços estéticos e éticos desde a maneira de se cumprimentarem, os Pais e Filhos de Santos são todos tomados pela irmandade. Saúdam-se “Mutumbá”20 como se fortalecesse e intensificasse ainda mais os laços entre as pessoas que com-vivem na Comunidade Religiosa. É esse ethos do estar-junto que povoa os Terreiros. O Cotidiano de uma “casa” se potencializa nessa efervescência vitalista. É na confusão que nasce um pensar dionisíaco e intensifica essa sinergia social, fortalecendo mais ainda o laço da socialidade. Para o autor de A Sombra de Dioníso (2005), há uma efervescência política e pedagógica que emerge no meio de nós, no meio das aparências. O Candomblé, como espaço das aparências, é uma “família” que se revela em sua complexidade:

O candomblé para mim é uma família espiritual. Como se fosse uma família carnal. Para mim, às vezes as pessoas gostam muito de medir forças uns com os outros, mas eu não vejo o candomblé dessa forma. Vejo como uma família, de pais, filhos, avós. Acho que a gente mexe com a divindade (Mãe Jane)

Podemos observar que o Candomblé não deve ser visto como apenas um espaço de religiosidade e sim, como um espaço de irmandade, pois existe ali uma família no sentido forte do termo. Dessa forma, Mãe Jane se afirma como a “mãe espiritual”, pois é a matriarca, aquela que gerou, deu a vida. A Mãe de Santo a serviço da gestão da vida. O Candomblé é uma “família” e, como tal, tem conflitos, intrigas, respeito e irmandade.

Assim, é no estar-junto que a alma coletiva se intensifica e revela sua identidade. No entanto, o nomadismo somente existe no seio societal. É na efervescência social que a estética pode ser pensada e ser colocada todo o dinamismo poético em ação. A noção de poesia aqui é ampliada. É no sentir em comum que está o sentido de todo poetar. Dito de outro modo, o poetar somente passa a ter sentido quando experimentado socialmente. O poeta vinga-se

20 Mutumbá é a maneira como as pessoas se saúdam no Candomblé de Keto. É uma espécie de

bênção. A resposta é “mutumbaxé”. Outras nações como Jege, Angola e Efon se saúdam como “Mucuiú”, “Colofé”, “Aurê” têm, certamente, outras maneiras de cumprimentar, pedir “bênção”.

87 enquanto tal, quando nos leva a sentir socialmente as sábias palavras do ser poeta. Quando assim, ele é capaz de provocar um bloco de sensações e nos fazer sentir esteticamente e coletivamente. A poesia é afirmada como uma estética do coletivo, uma poética do coletivo capaz de nos arrastar para o meio da multidão dionisiacamente excitada. O poeta não é um solitário e muito menos vive no mundo da essência. É sim, um habitante do mundo da aparência, da ilusão e da superfície. O poeta somente poetiza o mundo porque ele é capaz de entrar nesse mundo do sonho, da embriaguez e da aparência, pois é esse mundo que é o verdadeiro. Eis aí o que Roberto Machado chama de radicalização do pensamento de Nietzsche, pois para ele, “o pensamento de Nietzsche se radicaliza em direção da aparência, da ilusão, da superfície” (Machado, 1984: 115). O movimento os coloca diante do devir da vida onde a chegada se confunde com a saída e, a todo instante deparamos com a multiplicidade e com o conjunto caótico das diferenças e das inquietudes que tomam conta de nosso existir. Somos, desde que nascemos, “jogados no mundo” da ilusão, marcado pelo eterno devir. Somos sim, um andarilho que vagabundeia no mundo sem norte, sem rumo, deparando a cada instante com o caos ou, como pretendia Balandier, com a “caoslogia” que nos rodeia e nos movimenta nesse turbilhão caótico que é o mundo. Em outras palavras, a alma nômade instaura na imanência da sociabilidade. O poeta se vinga enquanto tal porque ele é capaz de ver e ouvir o Cotidiano, a banalidade do mundo e revelar essa mundanidade no mundo. O poeta não é alguém que existe fora desse mundo transcendendo a um outro. É sim, ele aquele que poetiza a vida cotidiana com todos os seus dramas, dores e horrores. O poeta, nessa perspectiva, não é um ente que se isola do mundo, mas é sim um ser–no- mundo. Ao viver esse mundo, ele exprime poeticamente a suas dores e suas alegrias vividas coletivamente. É no social, no estar - junto que a poesia nasce e o poeta faz emergir um novo mundo a cada instante através das palavras, “A potência coletiva cria uma obra de arte: a vida social em seu todo, e em suas diversas modalidades. É, portanto, a partir de uma arte generalizada que se pode compreender a estética como faculdade de sentir em comum” (Maffesoli, 1996: 28). É essa faculdade de sentir em comum que se esparrama no cotidiano do Candomblé. O Cotidiano do Povo do Santo se revela nessa sensibilização estética ética e o terreiro transforma-se em uma obra de arte, afirmando-se na vida social, em sua totalidade e em sua diversidade. No entanto, a cotidianidade do Povo do Santo se mostra nessa complexidade dessa potência coletiva. Os homens e os deuses se fundem, se perdem, formando um entrelaçamento estético e

88 todos sentem orgiasticamente o efeito da magia e a sombra da estética africana vivida intensamente no turbilhão dos terreiros.

Ora, quando fazemos um elogio ao dionisíaco nessa afro-estética, é para nos situar dentro de um pensamento cuja efervescência do pensar é marcada pelo orgiástico. Nessa trilha de pensamento, vemos surgir um tipo de pensamento afro que surge no mundo das aparências, nas decisões políticas, pois é no estar-junto com os outros que se pode pensar em política. É nesse desejo do estar - junto que podemos pensar uma pedagogia alegre, vitalista e selvagem. Em outras palavras, é no plano social que podemos pensar essa pedagogia orgiástica e efervescente, valorizando assim, a multiplicidade caótica e confusa que emerge da malha social. Foram os gregos que nos ensinaram que a polis é esse mundo onde as aparências se revelam. Enfim, é no cotidiano do Povo do Santo que extraímos o aprendizado. O Orixá dançando no Terreiro é a revelação de que muito temos a aprender com os deuses, pois cada Orixá se revela com sua magia, com sua dança, com seu segredo, com seu mistério. Os Orixás ensinam o homem na humildade, na força e no vitalismo. Xangô é vida, é força. Quando ele dança o

alujá, aprendemos a dança da justiça onde o Deus, com o martelo da justiça na mão em forma de machado, dança fazendo o movimento do corpo para frente e para trás, mostrando que o homem deve fazer justiça e ser justo no seu estar no mundo, no seu viver cotidianamente. É esse o maior ensinamento e a maior aprendizagem que podemos extrair dos deuses. É no viver e no com-viver intensamente o Cotidiano dos Orixás que podemos aprender com os irmãos de santo. É nos estar junto que tudo se forma, se de - forma e se transforma. No entanto, o aprendizado se dá somente na-comunhão- uns–com-os-outros. Heidegger (1999) foi quem sistematizou essa ontologia do ser – no - mundo, fazendo emergir assim, um ethos do

Dasein (ser-aí), abrindo os horizontes para a compreensão ontológica do ser dos entes que nós mesmos somos.

Dito de outro modo deve, para compreender o complicado modo de ser do homem no mundo, entrar nos labirintos ontológicos existenciais e, para isso, lançarmo-nos no cotidiano da tribo, desvelando seus enigmas, suas aporias e seu

89 modo - de ser mais sensível dentro de seus questionamentos ético – estético - afetivo existencial. Para Heidegger, “de início, deve-se evidenciar a abertura do impessoal, isto significa o modo de ser cotidiano do discurso, da visão e da

interpretação em determinados fenômenos.” (Heidegger, 1999: 227). Assim, o Cotidiano do Povo do Santo se evidencia em seu caráter

ontológico ao se afirmar na cotidianidade. É essa abertura do ser no mundo e para o mundo que dá dimensão ontológica e compreensão do cotidiano humano. No discurso, na visão e na interpretação que fazemos de nós mesmos enquanto ser – no - mundo da cotidianidade. A Antropologia Filosófica, enquanto porta voz da cultura humana, nos faz enraizar mais profundamente na complexidade humana. Dito de outro modo, é no Candomblé, nesse panteão em mudanças, que podemos compreender a cultura brasileira e os destinos dos homens enquanto entes que sentem em comum o êxtase dos deuses e, dessa comunhão, podem extrair signos que os ensinam, acima de tudo, que é nessa ética da estética do estar-junto que tudo se aprende e, que acima de tudo, intensifica os laços da tribo e fortalece ainda mais a comunidade religiosa. Eis um aprendizado que é passado na oralidade seja ensinado pela Mãe de Santo, pelos mais velhos, seja pelos Ogãs que, ao tocar os atabaques promovem o barulho, a confusão e levam todos a experimentarem em comum a dança, o movimento, o grito e a leveza dos deuses. Em outras palavras, “o belo não é concebido unicamente como prazer estético: faz parte de todo um sistema” (Santos, 1986: 49).

No entanto, o Terreiro de Candomblé, dentro de suas configurações existenciais, estéticas e ontológicas, se afirma na totalidade, pois é um todo que se configura e se fortalece no estar - junto que serve de cimento para a socialilidade. Mais do que um prazer estético, o cotidiano do Povo do Santo se evidencia na cosmologia yorubá, em um princípio plástico e dinâmico que ergue e toma corpo no “nós” tribal, intensificando assim, a ética da estética na tribalização do terreiro-mundo.

Há, em outras palavras, uma outra lógica do estar–junto que é existencial e ontológico, pois o Candomblé, como palco estético, revela-se enquanto espaço da religiosidade e do drama fático da existência humana. O Povo-do Santo, assim como o homem, enquanto ser que está lançado às possibilidades do existir, deixa de existir para ek-sistir, pois há um processo de projeção da existência humana desde o processo pedagógico de iniciação. Mas resta nos perguntar em que sentido estamos falando em cotidiano e qual o estatuto ontológico da cotidianidade do Povo do Santo? Ora, a noção de cotidiano, remete-nos a uma abertura do ser no mundo. É no cotidiano que o

90 homem, o ser-aí (Dasein) extrai os aprendizados. Assim, o Povo do Santo, dentro de sua estrutura ontológico-existencial, somente passa a ter evidência nessa potência coletiva, pois é no estar - junto com os outros homens e com os deuses que o ser passa a existir de forma ontológica. Dito de outra maneira, é no estar- junto com o Povo do Santo que damos a possibilidade para criarmos pequenos e eternos instantes que somente têm sentido no estar-junto-uns-com-os-outros. Assim, o processo estético no Terreiro somente passa a ter visibilidade na coletividade, pois é preciso que os dois mundos se unam. O mundo dos homens e o mundo dos deuses no pequeno teatro que o Terreiro para o grande teatro que é o mundo. Diz Rosamaria Barbára (2000:151) “Esteticamente um ser humano ou um objeto é belo porque traz consigo uma determinada qualidade e quantidade de axé e realiza assim uma comunicação entre ele e a comunidade”.

Em outras palavras, a beleza que se revela no Cotidiano e no estar- junto-com–o-Povo-do-Santo é visível por trazer essa qualidade e essa quantidade de Axé que mantêm, por sua vez, a socialidade e a comunicação entre o Orixá e a Comunidade Religiosa (Egbé). Mas de qualquer forma, esse estar-junto somente se potencializa em meio às mascaras dos deuses. Essa será nossa próxima jornada.

91 OXUM-Foto: Paulo Petronilio. Data: 15/10/2008

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