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4. DESVELANDO (IN)JUSTIÇAS AMBIENTAIS: ANÁLISE DO PROCESSO DE

4.4 Audiências Públicas Oficiais: Inexorabilidade do empreendimento

A audiência pública é o principal espaço institucional de escrutínio público do licenciamento, no entanto, a participação dos sujeitos afetados no licenciamento são reflexos das assimetrias de poder que existem na sociedade e perpassam também o processo licenciatório.

As audiências apresentaram uma série de desequilíbrios, tais como o tempo de apresentação do empreendimento ser prolongado, a postura do órgão ambiental e a inconsistência das respostas aos questionamentos levantados pelas comunidades, pelos movimentos sociais e pela Academia97. Essas assimetrias envolvem a questão da injustiça ambiental nos processos de deliberação sobre empreendimentos impactantes de mineração, conforme:

Mesmo a rigidez locacional das jazidas minerais, embora em princípio se apresente como um argumento incosteste, não escapa às determinantes que atravessam as relações de poder, tão desiguais, de nossa sociedade, já que a decisão de explorá-las é fundamentalmente política. (MALERBA,2014, p. 13)

A postura do órgão ambiental e de outros agentes estatais envolvidos no licenciamento da atividade precisa ser problematizada, visto que o empreendimento é apresentado como uma certeza, não como uma possibilidade a ser discutida com a sociedade civil, de forma que as audiências públicas se materializam como uma formalidade legal que deve ser cumprida para a execução do projeto. Nesse sentido, contribui Talita Furtado Montezuma (2015, p. 240) sobre processo de licenciamento de Santa Quitéria:

A um só tempo, as audiências são espaços para exposição e discussão do estudo ambiental mas, também, se constituem no espaço em que o conflito ambiental tende a ganhar voz e, ainda, que as comunidades e sujeitos locais podem acessar e “informar” o Ibama suas impressões sobre o projeto. Nelas apareceram, então, 97

A participação das universidades não ocorreu de forma institucional, no entanto, um grupo composto de professores e pesquisadores da Universidade Federal do Ceará, Universidade Estadual do Ceará e Universidade do Vale do Acaraú apresentaram suas análises científicas sobre o empreendimento.

as justificativas e as críticas à concepção do projeto, as distintas racionalidades envolvidas, os temas de maior preocupação da população, as críticas ao estudo ambiental, além de evidenciar a postura dos órgãos públicos e dos empreendedores, consistindo em uma cena por meio da qual muitas das assimetrias de poder podem ser observadas. Nelas se ocultam (ou pretendem ocultar), entretanto, as intencionalidades e os beneficiados com o projeto, o campo de decisão política e econômica fora do rito do licenciamento, as concepções não ditas sobre o lugar e o território, a escolha anteriormente deliberada sobre a forma de condução do espaço, apenas para citar estas dimensões. Temos, portanto, um espaço que costura dimensões visíveis e invisíveis do conflito.

Um dos aspectos mais questionados do EIA foi a delimitação da Área de Diretamente Afetada (ADA) e da Área Indiretamente Afetada (AIA) pelo empreendimento que não se orientou pela formatação da bacia hidrográfica, conforme exigido na Resolução nº 1/86 do CONAMA, de maneira que há a compreensão que a realização de audiências públicas que debateriam o projeto deveriam ocorrer em mais municípios e em mais comunidades da região. Além disso, por utilizar dados secundários, o EIA invisibilizou muitas comunidades existentes no entorno da mina que serão fortemente afetadas pelos impactos socioambientais.

Assim, foi apresentado ao IBAMA abaixo-assinado e ofício de entidades98 solicitando que o EIA-RIMA fosse refeito para corrigir as lacunas e falhas observadas visto que a ausência dos dados impedia o exercício do direito à participação e, que após a edição de novos estudos, houvesse audiências nas comunidades de Morrinhos, Queimadas, Alegre-Tatajuba, Riacho das Pedras, Lagoa do Mato e Saco do Belém e nos municípios de Santa Quitéria, Itatira, Canindé, Madalena, Sobral e Fortaleza bem como que, em cada local, fossem realizadas, pelo menos, 5 audiências temáticas em cada local, tendo em vista a complexidade do projeto e a abrangência e natureza dos impactos.

No entanto, o IBAMA negou a maioria dos pleitos, informando que audiências atenderiam as localidades da área diretamente afetada contida no EIA, de forma que seriam realizadas apenas 3 audiências, sem temas específicos, que ocorreram nos municípios de Santa Quitéria e de Itatira e na comunidade de Lagoa do Mato entre os dias 20 a 22 de novembro de 2014.

98 A Associação de Moradores de Morrinhos (assentamento rural que fica a cerca de 4km da Mina), a

Cáritas Diocesana de Sobral (entidade religiosa que realiza ações de convivência com o semiárido na região diretamente afetada pelo empreendimento), o Diretório Central dos(as) Estudantes da Universidade Federal do Ceará – DCE/UFC enviaram requerimento de audiências públicas ao IBAMA.

Das audiências participaram diversos atores que apresentaram diferentes percepções sobre os riscos do empreendimento e sobre a compreensão do território, dentre eles, destacamos o núcleo TRAMAS (Trabalho, Meio Ambiente e Sustentabilidade), o MST (Movimentos dos Trabalhadores Rurais sem Terra), a CPT (Comissão Pastoral da Terra), as comunidades, a CNEN, o IBAMA, a INB, a Arcadis Logos e as Prefeituras.

Merece destaque nos questionamentos trazidos nas audiências, a viabilidade hídrica do empreendimento, uma vez que a mina se localiza numa região de semi-árido, em que as populações do território convivem com a escassez de água, no entanto, o processo industrial da mineração exigirá grande volume hídrico, incompatível com a oferta da região, Apesar disso, o gestor público responsável pelos recursos hídricos reafirmava a possibilidade de instalação do empreendimento, sem contudo, apresentar dados ou parecer que apontasse concretamente de onde sairia o abastecimento da mineração. Uma das falas emblemáticas foi de uma liderança do MST durante a audiência de Santa Quitéria:

quem vai dividir a pouca água que tem, vai ser nós. Quem vai dividir, a pouca água, porque hoje a maioria das famílias vive com 10 litros de água por dia. Porque não tem água, porque nós estamos vivendo no quarto ano de seca. Só sabe o que vive isso, quem é sertanejo, quem vive hoje no campo sofrendo essa dificuldade. [...] nós estivemos lá, ocupando esse SRH para pode vir máquina para perfurar poço para abastecer as comunidades. Para poder garantir a água das comunidades, desse sertão aqui, no Estado do Ceará. E, no entanto se comprometem em garantir, 1.000 metros cúbicos por hora, para abastecer uma mina para gerar emprego, para quê? E para quem? Que tipo de emprego? Que tipo de desenvolvimento vai trazer?(grifo nosso)

Outra preocupação apontada pelas comunidades diz respeito ao risco radiológico que foi ocultado no EIA/RIMA, visto que o parecer do órgão de fiscalização nuclear não foi incluído nos estudos, e foi minimizado nas audiências públicas, uma vez que, depois de apresentado o parecer da Saúde construído pelo núcleo TRAMAS nas audiências públicas que sistematizava, sob o ponto de vista científicos, os prováveis danos à saúde, ao meio ambiente e à vida oriundos da mineração de urânio, foi viabilizada a possibilidade do empreendedor reiterar a negação dos riscos radiológicos. A resposta da INB foi abrir uma série de apresentação de técnicos hiperespecializados que compõe os seus quadros para garantir a segurança do empreendimento, tentando, assim, neutralizar os questionamentos de cunho políticos e científicos, com argumentos técnicos abstratos.

Outra assimetria contundente nas audiências públicas foi a ideia de progresso e desenvolvimento, posto que foi apresentado, nas audiências públicas, que a grande maioria da população do entorno da mina possui trabalho, apesar de uma pequena parte possuir emprego formal. Isso ocorre porque, no território, desenvolvem-se estratégias de convivência com o semi-árido que abrange a agricultura e pecuária familiares que garantem a sustentabilidade econômica, ambiental, alimentar e cultural das comunidades, no entanto, a promessa de empregos formais trazidos pelo projeto é colocada como única forma de desenvolvimento possível para a região.

Parte dessas assimetrias se fundam no fortalecimento da retórica técnico-científica que balizada na distinção entre conhecimento técnico, especializado e o conhecimento leigo, fundado em outras formas de conhecimento, produzido, muitas vezes, por pessoas que não tiveram seus saberes legitimados pela educação formal. Nega-se a possibilidade concreta da participação das comunidades no processo decisório. Boaventura de Sousa Santos (2005, p. 55) explica:

Uma outra distinção decorrente do exclusivismo epistemológico da ciência é entre o conhecimento técnico ou especializado e o conhecimento leigo. Esta separação veio legitimar a autonomia dos cientistas e dos especialistas na tomada de decisões sobre assuntos considerados “de especialidade”, ao mesmo tempo que remeteu o cidadão para um espaço de silêncio, ao atribui-lhe o estatuto de mero observador e consumidor da ciência.

Diante dos perigos e dos riscos inerentes aos empreendimentos de grande impacto, é preciso que a população que arcará com esses ônus possa deliberar de forma livre e informada sobre a sua implementação ou não.

As relações de poder se manifestam ao longo das audiências de diversas formas: nas ingerências que o órgão ambiental faz sobre as falas dos participantes, na desigualdade de tempos de fala, na desigualdade de tempos e condições materiais de estudo e compreensão do EIA/RIMA.

Assim, o processo de produção do EIA/RIMA e de realização das audiências públicas não devem ser formalidades a serem transpostas pelo empreendedor em nome do “progresso”, a decisão não pode se limitar à instância técnica retirando das comunidades atingidas à possibilidade de saber-poder influir nesse procedimento. Assim, trazemos:

Ora, a praxe atual revela que os métodos de avaliação dos impactos já são baseados em mera visão tecnicista, que separa o meio ambiente de suas dimensões sociopolíticas e culturais, partindo da crença de que uma grande parte

da paisagem social e ambiental a ser destruída possa ser reconstruída através de medidas de compensação e de mitigação dos impactos. (LASCHEFSKI, 2011, p. 28)

Diante desses aspectos, é importante considerar que a participação também apresenta duas dimensões - “o direito de ser ouvido e o de influenciar as decisões” (CARVALHO, 2009, p. 276) – e que ela está intrinsecamente relacionada ao direito à informação, assim a população afetada pelo empreendimento precisa ser esclarecida dos riscos, e cabe ao Poder Público ofertar informações claras e suficientes, além de fiscalizar as informações fornecidas pelo empreendedor, e propiciar espaços públicos abertos à oitiva das comunidades e que apresentem caráter real de deliberação.

Ressalta-se, ainda, que a relevância da participação na definição, no monitoramento e na avaliação de políticas reside no fato de que ela confere legitimidade ao processo decisivo.

Se o atual processo de licenciamento ambiental apresenta imensas fissuras e falhas como espaço de participação e deliberação sobre atividades degradadoras do meio ambiente, é preciso lançar as bases de um modelo que parta do reconhecimento das assimetrias de saber-poder que permeiam o procedimento e que apontem abordagens efetivamente participativas.

Partindo da problemática no licenciamento ambiental do projeto Santa Quitéria de mineração de urânio e fosfato, será preciso apontar para (re) construção de um modelo de avaliação de riscos que se fundamente na efetivação do direito à participação popular nas decisões socioambientais que efetive os instrumentos nacionais e internacionais já existentes e construa novos mecanismos com abordagens diferenciadas para garantir a participação das comunidades vulnerabilizadas.