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4. DESVELANDO (IN)JUSTIÇAS AMBIENTAIS: ANÁLISE DO PROCESSO DE

4.3. Imbróglios do licenciamento do Projeto Santa Quitéria

4.3.4 Invisibilização das comunidades

Concebidos sob uma lógica reducionista de apartamento das análises sociais e biofísicas, os estudos ambientais são construídos em sintonia com os interesses dos grandes grupos econômicos e dos gabinetes governamentais. O projeto Santa Quitéria foi desenhado invisibilizando pessoas, atividades econômicas, cultura, história e sujeitos coletivos nos territórios em que pretende se instalar o empreendimento.

Assim, o território é apontado como um vazio demográfico. Um exemplo disso são os mapas elaborados pela consultoria ambiental contratada pelo empreendedor,

Arcadis Logo, para apresentar a poligonal que define as áreas afetadas pelo projeto. O EIA (ARCADIS LOGOS, 2014, v.1, p. 375) define da seguinte forma:

Área diretamente atingida (ADA): um raio de 10km em torno do projeto, incluindo o distrito de Lagoa do Mato e os assentamentos de Morrinhos, Queimadas e Riacho das Pedras.

Área de influência direta quanto ao meio socioeconômico (AID): Municípios de Itatira e Santa Quitéria.

Área de influência indireta quanto ao meio socioeconômico (AII): Municípios de Canindé e Madalena.

Área de influência direta quanto ao meio físico-biótico (AID): Inclui a região compreendida pela sub-bacia do riacho Cunha-Moti, abarcando os divisores de águas das serras que ladeiam a Área Diretamente Afetada - ADA. Tem como limites: a norte, a crista da Serra do Céu; a leste, a Serra das Laranjeiras e a Serra do Quati; a sul, o divisor de águas do riacho Groaíras; a sul-sudoeste, o serrote Apapuá; a oeste, se estende pelo divisor de águas do riacho Cunha-Moti, margeando a serra do Gavião.

Área de influência indireta quanto ao meio físico-biótico (AII): Abrange as bacias hidrográficas da AID e o trecho a jusante da mesma, cuja área é formada pelas bacias do riacho Cunha-Moti, riacho dos Porcos e riacho dos Pintos, e parte da Bacia do rio Groaíras, delimitadas pelos divisores de águas dessas bacias com as bacias do riacho Jatobá e riacho dos Bois ao norte, e com as bacias do rio Groaíras, riacho do Frade e riacho do Cipó ao sul. Compreende também as respectivas unidades geológicas que abrigam os aquíferos presentes, com possibilidade de ocorrência de impactos negativos caso os eventuais processos de erosão, assoreamento e alteração da qualidade das águas superficiais e subterrâneas não sejam devidamente mitigados e controlados na AID.

São apresentadas no mapa que descreve a AID apenas 16 localidades (EIA, 2014), número muito menor que aquele identificado pela Articulação Antinuclear Cearense, onde somente as comunidades identificadas no raio de 20 km da jazida eram descritas, estando muitas outras destes dois municípios não citadas nesse levantamento.

FONTE: Arcadis Logo, Volume I, p. 457

Além de apresentar no mapa apenas estas 16 comunidades na AID, o EIA realiza o diagnóstico socioeconômico de um número ainda menor, apenas 5 delas: os assentamentos Morrinhos e Queimadas, a comunidade de Riacho das Pedras, o distrito de Lagoa do Mato e a sede municipal de Itatira (Arcadis Logos, Volume I, 2014).

De acordo com a produção de informações da Cáritas Diocesana de Sobral, sintetizadas em Cartilha, sob o título “No Ceará, a peleja da vida contra o urânio” existem na região:

[...] aproximadamente seis mil famílias, distribuídas em 27 comunidades no município de Santa Quitéria e 15 no município de Itatira, que ficam a uma distancia média de 20 km da Mina de Itataia; a estas, chamamos de comunidades diretamente impactadas. (CÁRITAS, 2013, p. 2).

A omissão de várias conhecidas localidades do mapa a Área de Influência Direta do Meio Socioeconômico foi compreendida pelas comunidades, movimentos sociais e atores do painel Acadêmico-Popular como uma insuficiência grave do EIA/RIMA.

Esta crítica foi apresentada em um parecer deste painel, na representação jurídica produzida e apresentada nas audiências públicas por diversos atores e também por moradores de algumas das comunidades omitidas no EIA.

Durante as audiências públicas, o Consórcio e a empresa de consultoria92 responsável pelo EIA/RIMA apresentaram argumentos que se mostraram frágeis para a definição das áreas, sem reconhecer que havia insuficiências no diagnóstico. O IBAMA e a CNEN, por sua vez, silenciaram diante deste questionamento, remetendo a avaliação do mérito da questão ao momento de análise técnica do EIA.

Identifica-se a invisibilização destas comunidades como mais um mecanismo de vulnerabilização da população atingida, uma vez que as comunidades omitidas estão sendo excluídas do processo de discussão e deliberação sobre um empreendimento que implica em alterações na forma de organização do território que certamente produzirá impactos sobre estas. A maior parte delas não recebeu apresentações do EIA/RIMA do projeto ou convite e transporte para participação das audiências, estando ausente desse momento, o que implicou violação do direito de participação desses sujeitos.

Posteriormente, a realização das audiências públicas do licenciamento, pesquisas do Núcleo TRAMAS construiu conjuntamente com as comunidades um novo mapa, georeferrenciado, em que foram reconhecidas mais de 150 localizadas dentro da Área de Influência Direta (AID) quanto ao meio socioeconômico.

92 A consultoria, em suas apresentações iniciais na audiência pública, afirma que: “A área de influência direta corresponde ao município de Santa Quitéria, por que, é onde está a jazida e é o município que vai receber os impostos e por tanto vai ter maiores tributos, maior arrecadação. Não quer dizer que toda a área vai sentir esse empreendimento, as comunidades que estão mais distantes, mal vão sentir. Vão apenas perceber que o município vai ter mais recursos, vai ter uma maior animação econômica.”. Vê-se que não há qualquer relação entre a tributação e o alcance dos impactos socioambientais do projeto, o que demonstra a fragilidade dos argumentos apresentados.

Fonte: MELO, 2015, p. 188

Com efeito, embora sua função fosse analisar a viabilidade do projeto e veicular todos os dados socioeconômicos, ambientais e culturais necessários a essa análise, o EIA do Projeto Santa Quitéria registrou uma grave falha quanto à identificação as comunidades afetadas.

Os exemplos apresentados demonstram, portanto, a violação da participação porque o próprio Estado não reconheceu a existência das comunidades atingidas e, dessa forma, desconsiderou seu direito de ser ouvida e de influenciar a tomada das decisões que poderiam afetar seus territórios.