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3.3 Coleta 3 – Relato da Análise, Segunda Gravação (G2) e Aula individual

3.3.4 A aula individual

3.3.4.3 Aula da Aline (AA)

Lamento

A aula de Aline, seguindo um modelo que frequentemente adoto, iniciou com a execução da aluna e, tendo-a ouvido atentamente, ofereci minhas considerações:

Mesmo antes de ter feito essa análise que entreguei a vocês, já havia dentro de mim uma ideia de ritual, de passos... passos. Me veio a imagem de procissão... será que estou num caminho muito distante, será que estou viajando demais? Só que, no momento em que eu fiz a análise, eu pesquisei sobre as rezadeiras do Nordeste. Aí eu vi que não estava tão distante daquela imagem inicial. Voltando à partitura, podemos ver que Calimério não colocou a unidade de compasso, porém ele escreveu Lento e a colcheia pontuando as pulsações. Então, internamente, eu sinto os passos da procissão, tranquilos e intercalados com o canto das rezadeiras. É comum nos cantos das procissões essa característica modal, não é verdade? Os passos imaginados aqui, indicados pelos clusters na mão esquerda, tornam-se presentes ao longo do movimento. Por isso eu percebi que era importante valorizar a indicação de tempo das figuras musicais, principalmente das pausas. Elas servem como um impulso para dar continuidade às frases, ao caminhar (AA, p. 79).

Dessa maneira, busquei associar as pausas (GEb), indicação de caráter de tempo e fraseado (GEi), com imagens (GEex): passos e cantos da procissão, ritual e matracas. Contei com expressões que tivessem correlação com o fluxo da pulsação (GEb): “Agora você vai tocar e eu vou junto com você, através da minha voz, dos meus movimentos, do meu canto como se fosse uma injeção (GEex) de ...sinta essa pulsação interna, pulsando equilibradamente”.

Reforcei a importância do trabalho gestual (GEi) pontuando as frases através das expressões: “ouvir as ressonâncias durante as pausas... gestos que ligam, integram, música redonda” (GEex). No decorrer da aula, foi gratificante ver a integração do corpo de Aline na ação de tocar nas cordas e teclado (GEi).

Outros exemplos de imagens (GEex) foram surgindo no desenrolar do nosso encontro, como imagens de peregrinação, de súplica e, por fim, de resignação. Ao final, como um cenário, expressei a seguinte ideia (GEex):

Vai deixando o gesto do último glissando aos poucos, vai se recolhendo, entrando dentro de você, a música ainda está acontecendo, está se distanciando aos poucos, os passos estão se distanciando, as pessoas da procissão se afastando (AA, p. 86).

Para estimular a imaginação de Aline, após a execução dos últimos gestos interrogativos no agudíssimo, sugeri a última imagem das duas mãos descansando sobre a parte da madeira do piano, análogo ao que acontece durante a missa, quando todos ficam de pé e apoiam as mãos sobre o banco da frente: “Essa imagem final te ajuda a equilibrar diante de uma força maior [...] é difícil terminar com o último gesto no ar. Aí essa ideia de repouso das mãos te ajuda a encontrar um ponto de equilíbrio diante dessa força” (33‟34‟‟ a 33‟40‟‟). (Exemplo 55)

Exemplo 55 – Aula de Aline – Sugestões de imagens e gestos – Lamento (6° sistema)

Devido a pausas de semínima (GEb) terem sido negligenciadas ao longo do movimento, trabalhamos diligentemente no significado e na importância de sentir cada pausa corretamente.

Dança

O primeiro aspecto que valorizei na execução de Aline foi o uso comedido do pedal (GEi). Entretanto, com o intuito de valorizar os acentos indicados, sugeri o emprego de uma pedalização rítmica. (Exemplo 56)

Exemplo 56 – Aula de Aline – Sugestões de pedalização nos acentos dos arpejos – Dança (c. 9 a 12) Para a realização desses padrões de arpejos, enfatizei a importância do toque mais articulado (GEi) para permitir o equilíbrio dos níveis de dinâmica (GEi). Imaginei e comentei uma cena para enfatizar o aspecto da articulação:

Tente associar a ideia de um percussionista tocando esse movimento na marimba. Ele jamais tocaria essa dança ligando os sons e seus braços estariam todos soltos e liberados. É assim que você deve tocar e visualizar essa imagem. Como é prazeroso tocar esse movimento completamente solto, staccato e articulado! (AA, p. 100).

De forma semelhante ao que transcorreu na aula dos participantes anteriores, o ritmo da colcheia pontuada seguida de semicolcheia (GEb) foi trabalhado para ressaltar seu caráter expressivo através do uso de imagens alusivas à percussão (GEex): “Se eu estivesse tocando um instrumento de percussão, a minha baqueta ia atacar com todo o molejo na figura pontuada”.

Aline apresentou dificuldades na realização dos arpejos. Modificamos o dedilhado para garantir a firmeza nas acentuações, ou seja, o emprego do segundo dedo nas notas acentuadas no meio dos arpejos, visto que o terceiro dedo, empregado por ela, não possibilitava firmeza e equilíbrio à passagem (GEb). Sugeri evitar um deslocamento na mudança de um bloco de arpejos para o outro, mantendo as mãos rentes ao teclado, principalmente entre as mudanças do 5° para o 1°dedo. Ressaltei que, mesmo com o acento após a mudança do dedilhado, ela deveria pensar numa coisa só, numa frase inteira, numa continuidade (GEe): (Exemplo 57)

Exemplo 57 – Aula da Aline – Sugestões de dedilhado e movimentos das mãos – Dança (c. 9) Aline optou pela troca de dedilhado nas passagens de notas repetidas. A meu ver essa mudança impede a acentuação clara. Dessa forma, sugeri que fosse realizado o movimento do pulso para frente para evidenciar os acentos (GEb e GEex). (Exemplo 58)

Utilizo o movimento do punho para frente para realçar os acentos como se fossem baquetas de um percussionista [...] inclusive eu utilizo dois dedos

(2° e 3°) juntos sobre a nota dó, dando uma leve inclinação do punho para frente sem colocar muito impulso no início (AA, p. 97).

Exemplo 58 – Aula de Aline – Sugestões de modos de ataque nos acentos – Dança (c. 1) O nível de diversidade nas reações, comportamentos e atitudes de cada participante em relação aos aspectos musicais que foram surgindo ao longo do processo de aprendizagem me fez refletir sobre a importância de considerar as diferenças perceptivas dos alunos, respeitando suas decisões musicais. Schön (2000) relata as reflexões do escritor Leon Tolstói15 ao descrever a reflexão-na-ação de um instrutor ao produzir instruções adequadas às capacidades e dificuldades de estudantes específicos:

Todo o indivíduo deve, para adquirir a arte de ler no tempo mais curto possível, ser ensinado separadamente de qualquer outro, devendo, assim, haver um método específico para cada um. Aquilo que constitui uma dificuldade para um não é um problema para outro e vice-versa (Tolstói, 1861/1967, p. 57-58 apud Schön, 2000, p. 88).

Tolstói acrescenta que o bom professor é aquele que tem um arsenal de explicações, variedade de métodos, habilidades para inventar novos e, acima de tudo, compreensão da individualidade de cada aluno. O melhor método seria aquele que respondesse às dificuldades apresentadas pelo aluno, ou seja, não um método, mas uma arte. No contexto descrito em relação aos participantes, foi importante perceber que procurei interferir na medida em que as dificuldades surgiam no desenrolar das aulas.

Aline apresentou dificuldades na realização do legato de duas notas, pela falta de definição do dedilhado (GEb) e compreensão do gesto (GEi). (Exemplo 59)

15 Leon Tolstói (1828-1910) foi um escritor russo, autor de “Guerra e Paz", obra-prima que o tornou

célebre. Profundo pensador social e moral foi considerado um dos mais importantes autores da narrativa realista de todos os tempos.

Exemplo 59 – Aula de Aline – Falta de compreensão na realização do Legato de duas notas – Dança (c. 28 a 31)

Na seção de transição do movimento “Dança” (c. 23 a 31), aludi à imagem de um grupo de meninas que entravam dançando outra coreografia, mais solta e leve, como se estivessem nas pontas dos pés (22‟53‟‟ – GEex). Como se pode notar, as recomendações são semelhantes, mas para cada aluno procurei adotar um modo diferenciado de caracterizar a passagem musical pela entonação da minha voz ou mesmo com variados movimentos corporais adequados à representação da minha intenção imagética. Durante a aula de Aline, refletimos sobre a distribuição gradual da dinâmica, valorizando principalmente o toque mais curto ao atacar as notas.

3.3.4.4 Reflexões sobre as aulas ministradas aos participantes sob o olhar de Schön