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3.3 Coleta 3 – Relato da Análise, Segunda Gravação (G2) e Aula individual

3.3.4 A aula individual

3.3.4.1 Aula do Tony (AT)

Lamento

Segundo Chaffin (CHAFFIN et al. 2002), a pianista Gabriela Imreh mostrou que suas definições de dedilhado já foram decididas pensando à frente nas questões interpretativas e/ou expressivas, ou seja, os guias básicos já previam as decisões interpretativas ou expressivas. A partir dessas questões, percebi que, durante a aula de Tony, sugeri uma divisão entre as frases através da pausa, dando uma ideia de estruturação para, logo a seguir, ligar as pausas entremeadas com as frases, remetendo à imagem pausada de um ritual:

Tony, na minha concepção, de acordo com a análise que eu escrevi, eu sinto um caráter ritualístico nesse movimento. Então, eu gostaria que você experimentasse agora tocar esse primeiro segmento pensando realmente nessa ideia. Ele [o compositor] não coloca o compasso, mas coloca uma indicação de tempo. Como é um caráter ritualístico, eu sugiro que você faça agora e veja depois como você se sente pensando nos tempos que estão escritos. Essa pausa separa uma semifrase da outra. Você não está seguindo o tempo, você está cortando o valor dela. É uma pausa de semínima! A respiração está afobada. Você tem que mostrar o valor dela, para mostrar que você está respirando de verdade, tá? Quando fizer o primeiro gesto conclusivo, você vai tentar na medida do possível enquadrá- lo dentro desse tempo interno (AT, p. 25).

Como pode ser inferido em minha fala, a ideia de pausa liga-se à compreensão estrutural e à questão expressiva do ritual. De fato, a passagem acima lida com a complexidade na comunicação de instruções ao relacionar pelo menos três tipos de GEs, a saber, básico, estrutural e expressivo. Como se sabe, isto não é incomum durante uma aula de piano, e sim rotineiro. Em outro momento relacionei o fraseado (GEi) com a imagem da onda (GEex) e o entendimento do gesto (GEi) como elemento estrutural da frase (GEe):

Eu vejo essa frase como uma onda. Uma sensação física de um ir e vir. É uma outra linguagem que ele está usando, mas como se fosse uma melodia! Então eu vou desenhar essa melodia da forma mais expressiva. É uma melodia diferente, num outro contexto, com uma forte carga emotiva! E uma coisa importante de você pensar é que o gesto acompanha a música. Ele não é meramente um acessório. Por isso é importante você estar integrando esse primeiro gesto que inicia a obra com o próximo, fecha tudo dentro de uma linha só, ok? Então vamos pensar nesse primeiro extrato, nesse tempo. Vamos lá! (AT, p. 25)

Outra questão abordada durante a aula voltou-se para a reiteração da ideia de que o valor das pausas não é aleatório. Há um sentido por trás das pausas (GEb), que remete a um caráter de ritual (GEex), portanto trabalhamos o valor da pausa como um elemento importante na realização dessa imagem.

Salientei também que pequenas mudanças de andamento podem marcar início ou final de frases, ou seja, respirações que o intérprete realiza de uma frase para outra. Enfatizei esse aspecto interpretativo contínuas vezes ao dizer: “Respira de repente um fragmento, um pouquinho mais [entre] de uma semifrase para outra”. Nesse caso estava me referindo a mais de um GEs ao invocar estrutura e interpretação.

Em outro momento, ressaltei a importância do gesto (GEi) no emprego do acento (GEb), sugerindo então que ele separasse o si bemol do ré bemol dando um impulso com as mãos para trás e direcionando para frente no momento de executar o ré bemol. Minha intenção foi convencê-lo da necessidade de produzir um ataque impetuoso. (Exemplo 49).

Exemplo 49 – Aula do Tony - Formas de ataque – Lamento (2° sistema)

Nesse momento, Tony questionou o ataque sugerido, já que no contexto da análise havia uma indicação de acento expressivo e, portanto, ele assimilava a uma sonoridade menos forte e a um som mais prolongado. Respondendo à sua questão, disse que era um ponto de chegada convicto e mesmo assim não deixava de ser expressivo. O fato de Tony ter feito esse questionamento em relação à leitura da análise foi importante para que criássemos uma reflexão acerca das variadas formas de conceber os sinais de intensidade na interpretação de uma obra.

Em se tratando de um lamento, usei a imagem da dor, lamentação (GEex) associada à ideia de calma em relação ao tempo, ao andamento (GEi). Assim, passei a seguinte sugestão:

Tony, sabe quando eu falo “calma”? Sente esse tempo! Quando você tem calma para pensar no tempo, vem a coisa do lamento, da dor, é uma lamentação. Por isso você tem que ter calma, não ter pressa nesse tempo... com doçura esse som! (AT, p. 33)

Ao final, criei novamente uma imagem de “nuvem” (GEex) para ilustrar a ambientação para esse movimento:

Eu sinto o primeiro movimento como se fosse uma nuvem... sabe aquela nuvem? Que acontecem muitas transformações dentro dela? Imagens que se modificam, mas que fazem sentido. E você está ali dentro. Não é ficar produzindo gestos mecânicos, aí fica um vazio e isso é música. Tem um tempo! Ele escreveu! Vamos entrar dentro dessa atmosfera, dentro desse tempo. Aí ela fica maravilhosa. Aí faz valer a pena, entendeu? (AT, p. 39)

Com relação aos (GEb), ele foi advertido sobre os sinais de dinâmica sinalizados e a permanência contínua do pedal em torno do movimento, já que ocorreram algumas trocas desnecessárias. Ao final da aula, Tony, de forma cândida, revelou algumas curiosidades sobre esse movimento fazendo os seguintes questionamentos: “Será que os filhos do Calimério iam saber falar alguma coisa da música do pai deles? Será que o Calimério queria assim? Mas você não tem curiosidade de saber o que ele pensava? Eu tenho demais”!

As incertezas de Tony me remeteram a Humberto Eco, que diz:

Por mais que o autor tenha certeza dos efeitos que ele pretende criar no intérprete com a sua obra, ele não pode prever todas as escolhas interpretativas e nem controlar os significados que serão construídos pelo intérprete. Este fato se deve à existência dialética entre os direitos do texto e os direitos do intérprete (ECO, 2005, p. 27).

Portanto, à medida que se dá o início do processo de interpretação, o intérprete tem a liberdade de explorar todas as possibilidades de significação que se mostram disponíveis. Eco prossegue:

[...] um texto, depois de separado de seu autor (assim como da intenção do autor) e das circunstâncias concretas de sua criação (e, consequentemente de seu referente intencionado) flutua (por assim dizer) no vácuo de um leque potencialmente infinito de interpretações possíveis (ECO, 2005, p. 18).

Dança

Antes de começar a execução, Tony explorou o ritmo inicial em locais diferentes na madeira do piano. Esse procedimento evidenciou sua preocupação com a qualidade e com o resultado sonoro do ritmo. Dentro do ponto de vista dos GEs, podemos dizer que foi o aspecto da sonoridade (GEi) mesclado ao parâmetro rítmico (GEb). Ainda nesse contexto relacionei o caráter da execução rítmica (GEb) com o aspecto dançante e gingado da Dança (GEex).

Para reforçar o caráter expressivo do ritmo, utilizei novamente recursos de imagens, fazendo referência a um percussionista (GEex) executando com toda a sua flexibilidade o ritmo (GEb) da colcheia pontuada: “Pense no percussionista... ele não tocaria o instrumento usando a mesma força! Eu daria uma intensidade [ressonante] nessa primeira batida da colcheia”. (Exemplo 50)

Exemplo 50 – Aula do Tony – Sugestões de movimentos e imagens – Dança (c. 1 e 2) Outro elemento abordado relacionou-se ao uso excessivo do pedal (GEi) por Tony. Ele chegou a admitir que esse procedimento funcionava como uma muleta, ou seja, um suporte para ocultar sua dificuldade técnica com a passagem. Por conta da dificuldade técnica do participante em relação ao trecho de notas repetidas, trabalhamos o uso de determinados gestos com a finalidade de alcançar flexibilidade e clareza nos acentos. Foi realizada então uma conscientização e harmonização dos gestos (GEi), colaborando para a clareza técnica (GEb) do trecho.

Procurei realçar algumas mudanças sutis de andamento com a finalidade de marcar o início de uma nova seção. Essas respirações tanto podem ser vistas como guias interpretativos (GEi) como estruturais (GEe).

Certos termos expressivos e imagens foram empregados para realçar o aspecto rítmico: scherzando, leggiero, sensação do toque nas pontas dos pés, grupo de dançarinos executando uma coreografia. Os guias expressivos empregados (GEex) auxiliaram no entendimento da realização rítmica (GEb).