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5 CAPÍTULO IV – ENTRE O DEBOCHE E O CINISMO: A NEGATIVIDADE DA

5.2 MEMES E O GRUPO SOCIAL DO FUTURO

5.2.3 Ausência de respeito

Tarde (2005) salienta que públicos superexcitados podem irromper em multidões fanáticas que percorrem as ruas gritando viva ou morte à determinada pessoa. Esse tipo de

público corresponde ao que tomamos como foco de análise, mas, para além desses extremismos sugeridos, pedindo a morte do oponente, por exemplo, o destaque se dá na ausência de respeito por meio do deboche contra o adversário, seja nas ruas ou na forma representativa dos memes, como é exposto na Figura 41 A e na Figura 41 B.

Figura 41 – (A) Foto em uma das manifestações favoráveis ao impeachment que ocorreram pelo país. (B) Foto em uma das manifestações favoráveis ao impeachment registrando um

encontro hostil que retrata a polaridade de perspectivas.

Fonte: (A) Google. (B) Google.

Quando consumidores dos mesmos meios de comunicação compram a ideia ou a paixão sugerida, é que, de fato, compõe-se um público. As figuras acima denotam que as polaridades da mente e do coração, em relação ao quadro político, refugiaram-se no deboche e no cinismo (seja em sua versão antiga ou moderna) para lidar com suas próprias contradições, enquanto um tipo de multidão virtual, ou um público agitado por paixões e guiado pela lógica social instituída em nossa época.

Além disso, apesar dos públicos serem menos exagerados, déspotas e dogmáticos, tudo isso é bem mais tenaz e crônico neles que nas multidões. Quando os espíritos de público e de multidão se desenvolvem a partir de correntes de circulação mental, o sentimento de

ponderação se desfaz cada vez mais; assim, de forma intolerante e presunçosa, exalta-se ou deprecia-se pessoas sob a escolta do rótulo de opinião, entendendo que tudo deve se submeter a esta, inclusive à verdade, caso a contrarie (TARDE, 2005). A internet permite que tal aspecto seja evidenciado, pois permite expressar toda essas formas de precipitações e falta de respeito. Os memes, nesse sentido, são ideias, já que se despem de regras e se refugiam em técnicas para se proteger da crítica da razão, afinal, não estão comprometidos com as normas sociais, e, principalmente por isso, são memes.

Para Tarde (2005), a vida coletiva intensa, seja enquanto público ou multidão é, para o cérebro, um terrível álcool. Mas, a propagação dos públicos de fé e de ideias é bem maior do que os públicos de ação e de paixão, por sua vez, as multidões são bem menos crentes e idealistas que apaixonadas e turbulentas. Assim, o poder da opinião se faz sentir quando uma multidão dispersa ou, melhor, um público expressa certo tom de exaltação, agindo por si e impondo-se frente a instâncias decisórias do Estado, pois, mesmo significativo, o poder dos meios de informação é relativo. No caso dos memes referentes ao impeachment, a opinião foi um dos principais pontos de excitação dessa reação mental, ou seja, simplório e trivial são apenas a aparência de uma observação desatenta. Na verdade, os memes abarcam a complexidade de uma sociedade marcada por inovações intensas, o que expressa, em outras palavras, uma sociedade em que a ciência se torna sua extensão, tal como percebe Latour (2012).

Desse modo, a religação dos saberes, proposta por Morin (2005), impõe-se, visto que não é possível pensar sobre essa sociedade sem considerar os paradoxos e controvérsias decorrentes da ciência. Estudar os memes nos lançou na problematização de vários aspectos caros ao pensamento científico e, também, ao modo de pensar a própria sociedade. A insolência do nosso objeto se iniciou quando deixou os primeiros rastros na área de estudo da Biologia, incitando o diálogo com outras disciplinas e indo de encontro à tendência de fragmentação do saber criticada por Morin (2005). No entanto, o impasse principal consiste em tentar explicar sociologicamente a ciência, como aponta Latour (2012), haja vista que o científico comporta apenas o que escapou aos estreitos constrangimentos da sociedade. Então não temos meios para refletir sobre a sociedade atual?

De acordo com Morin (2005), estamos vivendo uma época em que o desenvolvimento científico, técnico e sociológico está cada vez mais em inter-retroações íntimas e múltiplas. Logo, a técnica empreendida pelas ciências transforma a sociedade e, retroativamente, a sociedade, a partir da tecnologia, transforma a ciência. Morin (2005) explica que “o espírito científico é incapaz de se pensar de tanto crer que o conhecimento científico é o reflexo do

real” (MORIN, 2005, p. 21). Portanto, para esse autor, esta constitui a zona cega que acredita ser a teoria o reflexo do real, pois, embora seja científico conduzir ao real via teorias mutáveis e refutáveis, não é científico refletir o real. Tendo isso em mente, ressaltamos que, com a internet, a verdade é submetida, também, além de ao pensamento científico, ao imperativo da principal característica de um público: a opinião.

Disso decorre a capacidade de um meme de fabular. Em outros termos, os memes narram uma sociedade que experimenta a abertura de muitas possibilidades para se permitir sem resistência alguma às pressões e às normas impostas, mesmo que essa resistência esteja a serviço da prepotência e da arrogância sob a forma da opinião. Tal expressão rompe nitidamente com uma percepção antropocêntrica, porque, além de driblar a razão por meio de figurações que desafiam a lógica de outras formas de pensamento, são os dispositivos de comunicação que entram em cena com destaque.

Em todas as épocas existiam opinião, ressalta Tarde (2005), mas de forma diferente do que hoje estamos chamando pelo mesmo nome. Antes do jornal, e acrescentamos especialmente a internet, não existia opinião, mas milhares de opiniões espalhadas sem vínculos, sendo a diferença principal a seguinte: no primeiro momento, as vozes eram mais ponderadas que numerosas; enquanto que, no segundo momento, trata-se de um grupo bem mais amplo, de pessoas que se juntam sem se veem, sendo, assim, vozes que só podem ser contadas e não ponderadas. Dessa forma, criou-se o poder do número, ao passo da diminuição do caráter ou mesmo da inteligência (TARDE, 2005).

São vários os atores associados que formam os públicos de hoje, e os memes compreendem a uma de suas modalidades contemporâneas, caracterizada por uma conversação virtual capaz de, indefinidamente, alargar-se, apresentar-se performaticamente e resistir à crítica da razão, seja contra a opinião (cuja sutileza atravessa os sentidos) ou contra as técnicas de pensamento empregadas. Compreende, então, uma reunião de ideias sintetizadas, a partir de achados expressivos que surpreendem as contradições de algo, ou alguém em uma sociedade que desnuda e expões tudo a todo momento e, por isso, existe a necessidade de jogar com a aparência. O meme é esse jogo, ou seja, uma estratégia de pensamento da sociedade contemporânea.