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4 CAPÍTULO III – PERFORMANCE DOS MEMES: A MUDANÇA E A CRIAÇÃO

4.2 O MEME É COISA SÉRIA?

Quanto à técnica de deslocamento (já mencionada), Freud (2017) explica que, quando a aparência lógica está presente na fachada de uma história, o pensamento quer dizer com seriedade que, em virtude da contradição em que se encontra e de não poder se arriscar a dar razão à oposição, busca-se outro caminho por meio do qual se possa mostrar que tem razão: o governo da presidenta representa uma afronta aos princípios conservadores da família tradicional brasileira e a postura de seu governo é contra Deus, contra a moral e contra os cristãos, o que deu base à propagação dos memes relativos à votação, como vemos na Figura 25.

O tweet ilustrado na Figura 25 expressa uma percepção chistosa que, com seriedade, desnuda os argumentos ilógicos citados de maneira generalizada pela Câmara dos Deputados. O meme ou a repetição da ideia de uma moral, relativa à família e a Deus como justificativa determinante na votação, ganha novos sentidos e joga com a dialética entre o semblante e o real. Entretanto, de onde vem o prazer desse modo de expressão? Por que curto/retweeto/comento/publico?

Freud (2017) frisa que um chiste só é um chiste se consideramos como tal, pois, mesmo que seja para um, para outros pode ser apenas uma história cômica. Segundo o

psicanalista, o absurdo no chiste muitas vezes substitui o escárnio e a crítica contida no pensamento presente nas entrelinhas. O tweet da Figura 25 sugere, partindo desse raciocínio, uma história com fachada lógica, muito mais que cômica. De acordo com Freud (2017), o chiste corresponde a uma voz que não pode ser silenciada, que se ergue contra o domínio ultrajante dos arranjos sociais, sendo, assim, chamado de cínico23.

Figura 25 – Tweet relacionado à votação na Câmara dos deputados.

Fonte: Twitter.

Em contrapartida, isso não significa dizer que os memes, necessariamente, carregam em si essa composição. O chiste é tomado aqui apenas como um recurso que pode ser usado ou não pelo meme. Este pode ter as mais diversas finalidades, tais como ofender, criticar, enaltecer e insinuar, o que implica dizer que o chiste é um recurso íntimo do meme e, não raro, usado sem se preocupar com o que seria justo ou ético, como é notório Figura 26.

Figura 26 – Meme utilizando a imagem de Nestor Cerveró, mais especificamente sua deficiência para ironizar o quadro político.

Fonte: Google.

23 O cinismo aparece, nesse exemplo, em seu aspecto antigo (kynismo), segundo explica Peter

O prazer do chiste é atingido através da satisfação de uma tendência que, de outro modo, não seria satisfeita. Além disso, ressalta Freud (2017), o modo como essa satisfação é produzida está relacionada a condições particulares, uma vez que tal modo está voltado para a remoção de obstáculos externos (as relações de poder entre as pessoas atingidas por uma ofensa, por exemplo) e internos. Assim, segundo o psicanalista, obter prazer por meio de uma técnica chistosa, que possibilita passar de um conjunto de ideias a outro diferente, pode ser tomado como uma economia em gastos psíquicos. O decorrente prazer desse "curto-circuito" parece ser tão maior quanto maior for a distância entre um pensamento e outro, ou seja, quanto mais distante uma ideia da outra, maior será a economia pelo recurso técnico do chiste na distância percorrida pelo pensamento (FREUD, 2017). Além disso, o autor mencionado afirma que o chiste compreende uma conexão rejeitada e evitada pelo pensamento rigoroso. Ele explica ainda que o chiste pode ter um fim próprio ou ser tendencioso, sendo apenas este último que corre o risco de se deparar com alguém que não sinta prazer com ele.

Os memes estabelecem um tipo de conexão entre mentes e telas, de duração relativa que parece fluir a partir de um tipo particular de tendência. Nesse sentido, Freud (2017) afirma que todas as técnicas chistosas apresentam uma tendência à compressão, à parcimônia, o que significa que se trata de uma questão de economia. Ao descrever várias técnicas chistosas, o autor aponta a necessidade de investigar de onde vem a capacidade de despertar uma sensação de prazer, que estaria, primeiramente, ligada a uma forma de se expressar, e, em segundo lugar, ele salienta que a atividade chistosa não pode ser dita sem finalidade ou sem meta, visto que objetiva despertar o prazer do ouvinte.

Se o aparato psíquico não é empregado diretamente para atender a uma das mais indispensáveis necessidades, abrimos caminho para que ele próprio busque outros meios e trabalhe para extrair prazer de sua própria atividade. Dito isto, o trabalho do chiste é uma atividade voltada a tirar prazer dos processos psíquicos, intelectuais ou outros. Há, certamente, outras atividades que visam o mesmo, mas seria a técnica do chiste e a sua tendência à parcimônia que se responsabilizam pela produção de prazer (FREUD, 2017). Partindo desse raciocínio, Freud (2017) explica que o chiste é estratégico quando se pretende agredir ou criticar pessoas hierarquicamente superiores ou instituições que visam fazer uso de sua autoridade, o que representa uma rebelião contra tal autoridade, um tipo de saída ou libertação da pressão exercida por ela. Dessa forma, o chiste tendencioso é especialmente apropriado para o ataque daquilo ou daquele que é grande, poderoso e resguardado do simples menosprezo em virtude de inibições internas ou circunstâncias externas.

Todavia, se o meme dispõe de técnicas chistosas, cuja tendência principal é a economia, os questionamentos feitos por Freud (2017) são pertinentes para nossa análise também: o que é economizado? Não seria mais fácil e até mais econômico expressar os dois pensamentos diretamente, independentemente de produzir algo em comum entre as expressões? A economia em palavras e na associação de pensamentos não é superada pelo dispêndio intelectual para produzi-las? Quem economiza? Quem é favorecido? Afinal, de modo geral, algumas palavras poderiam ser obtidas com pouco esforço, mas é preciso encontrar uma única palavra que atravesse os dois pensamentos.