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5 CAPÍTULO IV – ENTRE O DEBOCHE E O CINISMO: A NEGATIVIDADE DA

5.1 OS MEMES NA SOCIEDADE DA TRANSPARÊNCIA

5.1.2 Cinismo: a insolência do objeto

Se, como pensa Sloterdijk (2012), o mal-estar na cultura hoje reflete um difuso cinismo universal, como meio contemporâneo de ventilação de uma cultura condenada a viver com um alto grau de misturas de normas, ambiguidades e éticas contrárias, decerto, os memes são formas de sua expressão. Para o autor, tudo o que é contemporâneo, possui o elemento cínico compondo nossa fisionomia psicofísica e intelectual, pois “o espírito do tempo se acha encarnado em nós, e àquele que pretende decifrá-lo incube a tarefa de trabalhar sobre a psicossomática do cinismo” (Idem, 2012, p. 201). Sob tal enfoque, à maneira dos memes, o cinismo é o segundo aspecto que destacamos como ponto de negatividade.

A sociedade da transparência carece de verdade e aparência. Como ambas designam negatividade, e somente o vazio é totalmente transparente, para camuflar esse vazio, coloca- se, então, uma grande massa de informação em circulação (HAN, 2017). Entretanto, enquanto manifestação individual, os memes possuem um potencial inventivo que, por meio de técnicas presentes em seu modo de expressão, podem ocupar esse vazio com insolência e, eventualmente resgatar o cinismo em seu sentido antigo. A insolência que tem origem nas partes baixas, só é eficaz se em seu ataque expuser energias reais, para isso, é necessário que encarne conscientemente sua força, e, com presença de espírito, crie uma realidade que se possa combater, embora não se possa negar. Dessa forma, esse poder que se manifesta individualmente constitui o cerne da força do Kynismo26.

Há, porém, um equivalente a essas meias liberdades entre os poderosos: o cinismo moderno. Os poderosos concedem a si tal liberdade (sob pressão da própria realidade) a fim de se abrirem à consciência inimiga. Consequentemente, a consciência dos senhores possui

26 Sloterdijk (2012) explica que a antiguidade conhece o cínico (kynicos) como um excêntrico

aberrante e como um provocativo moralista turrão. Esse kynismo antigo era agressivo e representava uma antítese plebeia ao idealismo. Enquanto o cinismo (sua versão moderna) é a antítese dos senhores em relação ao seu próprio idealismo entendido como ideologia e como máscara. Este autor afirma a existência de um processo histórico, no qual o kynismo se transforma em cinismo, logo, a crítica troca de lado.

uma insolência particular, manifestada quando o senhor cínico retira a máscara, sorri para o seu frágil adversário e o oprime (SLOTERDIJK, 2012). Bem como fizeram os senhores deputados ao justificarem seus votos a partir de convicções pessoais, longe de serem republicanas.

Conforme ressalta Quinalha (2016), os parlamentares nem mesmo precisavam apontar as razões de seus votos, mas justificaram demostrando o forte comprometimento com uma moral conservadora e com o desmonte dos avanços sociais, pois:

Em vez de mencionarem as acusações de respeito à lei orçamentária, cerne do pedido de impeachment, os deputados deram seus votos baseados penas em convicções pessoais, geralmente pouco republicanas e sem quaisquer fundamentos legais: “pela esposa Paula”, “pela filha que vai nascer pela sobrinha Helena”, “pelo neto Gabriel”, “pela tia que me cuidou quando era criança”, “pela minha família e meu Estado”, “por Deus”, “pelos militares de 64” e “pelos evangélicos” foram algumas das justificativas utilizadas pelos deputados para aprovar o procedimento (QUINALHA, 2016, p.132).

“O cinismo dos senhores é uma insolência que trocou de lado” (SLOTERDIJK, 2012, p. 166). Assim, no momento em que a consciência dos senhores se desmascara a si mesma com cinismo, ela se revela ao contrapoder. Contudo, aponta o autor, em uma sociedade que já não tem alternativa moral efetiva e que os potenciais contrapoderes estão imersos nos aparelhos de poder, não tem ninguém para se indignar com os cinismos da hegemonia. À vista disso, em uma sociedade moderna, quanto maior a falta de alternativas, mais cínica será ela. Diante desse raciocínio, o humor, presente nos memes relativos ao impeachment, assinala um componente atual desse cinismo/kynismo, isto é, corresponde a reações frente às provocações da realidade.

De acordo com Freud (1996), a essência do humor consiste em poupar os afetos cuja situação poderia dar origem, e, assim, afastar com uma pilhéria a possibilidade de tais expressões de emoção. Bem como no chiste27 e no cômico, há algo de liberador no humor, porém, este se destaca por certa grandeza e elevação inerente ao triunfo do narcisismo. Dito de outro modo, o ego se recusa a se submeter às provocações da realidade, a se permitir sofrer. Logo, não se estar disposto a ser afetado pelos traumas do mundo externo, ao passo em que demonstra que esses traumas são, na verdade, meios para sentir prazer. O humor é rebelde, significa o triunfo do ego e do princípio do prazer, um meio possível, para afirmar-se

27 O chiste foi trabalhado como componente importante do meme da internet no capítulo anterior. Esse

conceito é apontado por Freud como contribuição feita ao cômico pelo inconsciente, da mesma forma que o humor seria uma contribuição feita ao cômico pela intervenção do superego.

contra a crueldade das circunstâncias reais28. Trata-se de uma dimensão que pode (não necessariamente) aparecer no meme, principalmente quando se refere a um acontecimento de implicações tão profundas, como a votação do impeachment na Câmara dos Deputados, justamente por remeter a um desses impasses em que a realidade é cruel.

A partir das reflexões precedentes, compreende-se que lidamos com um objeto insolente, não apenas pelo marcante cinismo ou Kynismo, mas, também, por suas formas relativas de ser. Em uma cultura na qual os idealismos se consolidam na forma da mentira, a verdade depende de indivíduos livres ou “descarados” para dizer a verdade (SLOTERDIJK, 2012), tal como é exemplificado através da Figura 38, na qual o perfil de David Miranda expõe sua opinião nas entrelinhas de sua postagem.

Figura 38 – Tweet referente à votação na Câmara dos Deputados.

Fonte: Twitter.

Tarde (2005) versa sobre o desenvolvimento de correntes de opinião, e, conforme ressalta o sociólogo, o alargamento desses “rios sociais” não se trata de reunião de homens nas ruas ou nas praças públicas. Sem dúvidas, no estágio atual das tecnologias da comunicação, esses rios podem confluir por meio dos memes. O impeachment da presidenta é um exemplo em torno do qual se formou um público expectante e superexcitado, não apenas à espera de um veredicto diante de um caso sensacionalista, mas em disputa pelo desfecho. A Figura 38 mostra como tal disputa, neste caso, é atravessada pelo aspecto kynico, ou melhor,

28 Freud cita, como exemplo, um caso em um criminoso é levado à forca em uma segunda-feira, e,

insolente, uma vez que expõe uma dimensão dúbia que insinua os reais interesses, interesses próprios, dos poderosos.

A opinião se sobressai com o avanço comunicacional e, inevitavelmente, está nas entrelinhas dos memes. Tarde (2005) ressalta que tal avanço faz com que o número de nossos amigos e conhecidos aumente, à medida que o grau de intimidade diminui, em função do fato de que o que temos a escrever é direcionado, sobretudo, a grupos crescentes e, em menor proporção, a indivíduos isolados. Em resumo, nosso interlocutor é cada vez mais o público. O autor mencionado não tinha noção do caráter profético dessa afirmação diante da quantidade de “amigos” ou seguidores que podemos ter nas redes sociais, mas o fato é que esse público pode ter alcance global e se confunde com a opinião29. Esta sustenta a conexão entre mentes e telas, expressa nos likes, compartilhamentos e demais interações que o meio digital permite.

Com a internet, essas pessoas estão agora dispersas em imenso território, predispostas em frente a telas, na dianteira de uma produção instantânea, conforme explica Ivana Bentes (2015), realizada por uma multidão heterogênea, capaz de deslocar os intermediários clássicos, bem como corporações jornalísticas, os jornais profissionais, as agências de notícias, etc. Isso implica dizer que é colocada em xeque a “reserva de mercado”, destinada para formadores de opinião. Assim, acenamos para novos modelos de campos expandidos, nos quais estamos conectados e potencializados com próteses e dispositivos. Desse modo, o espírito contemporâneo pode se manifestar de forma mais livre, seja por meio do aspecto

kynico ou cínico.

Tarde (2005) fala de grandes arrebatamentos, que acometem os corações mais firmes, às razões mais resistentes. Tal arrebatamento faz com que parlamentos ou governos lhes consagrem leis ou decretos, coadunando, hoje, com o conceito de Mídia-multidão de Bentes (2015). Dito de outro modo, o contágio estabelecido pela internet possibilita a inclusão desse público na produção de um pós-jornalismo, e os memes são, decerto, uma das faces dessa sociedade contemporânea preocupada em apelar para a sedução e contagiar, seja provocando uma reflexão kynica ou visando apenas fugir da crítica da razão, simplesmente lançando o outro em uma zona de conforto para ganhá-lo.

Entretanto, qual é o vínculo capaz de unir essas pessoas fisicamente separadas? Segundo Tarde (2005), a resposta é justamente a simultaneidade de sua convicção ou paixões, compartilhadas com muitos outros. É suficiente saber disso, apesar de não se verem, para se

29 A opinião é definida por Gabriel Tarde (2015) como um agrupamento momentâneo, relativamente

lógico de juízos, cuja resolução dos problemas atualmente colocados está reproduzida em várias pessoas do mesmo país, da mesma época ou sociedade.

influenciarem e serem tomados em massa. Ademais, se são influenciados pelo jornalismo que têm acesso, são, mais ainda e de forma menos consciente, pela massa dos outros.

No caso dos memes do nosso recorte temático, trata-se de um público formado pela opinião, cuja formação grupal se caracteriza, sobretudo, pelo deboche e pelo cinismo, os quais, mesmo se dividindo em oposições partidárias (ângulo trabalhado no Capítulo II), tal oposição alimenta a conexão de crenças e desejos que entram em disputa (destacada pelo próprio meme da Figura 39) e dão força à repercussão memética.

Figura 39 – Meme fazendo referência ao momento de disputa e tensão entre apoiadores do impeachment (coxinhas) e contrários (mortadelas).

Fonte: Google.

Provavelmente, a tendência ao recurso do deboche e do cinismo/kynismo ocorre, especialmente, em memes como os que decorreram da votação. No exemplo da Figura 39, os recursos e técnicas empregados não sugerem nenhum desses dois aspectos, e, em função disso, ressaltamos (como desenvolvemos melhor no Capítulo III) que a mudança e a criação são as regras dos memes, os quais apresentam suas performances de maneira escorregadia. Então, não estamos preocupados em domesticá-los, mas apenas registrar seus movimentos e tecer uma rede capaz de explicar a si mesmo.