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A insolência de um pensamento complexo: os memes do impeachment de Dilma Rousseff

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Academic year: 2021

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PATRICIA R. GOMES DA SILVA

A INSOLÊNCIA DE UM PENSAMENTO COMPLEXO: OS MEMES DO IMPEACHMENT DE DILMA ROUSSEFF

NATAL 2019

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A INSOLÊNCIA DE UM PENSAMENTO COMPLEXO: OS MEMES DO IMPEACHMENT DE DILMA ROUSSEFF

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em cumprimento às exigências legais como requisito parcial para a obtenção de título de Mestra em Ciências Sociais Orientador: Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas

NATAL 2019

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Silva, Patricia Rilliane Gomes da.

A insolência de um pensamento complexo: os memes do impeachment de Dilma Rousseff / Patricia Rilliane Gomes da Silva. - Natal, 2019.

103f.: il. color.

Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais. Natal, RN, 2019.

Orientador: Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas.

1. Memes - Dissertação. 2. Impeachment - Dilma Rousseff - Dissertação. 3. Sociedade digital - Dissertação. I. Dantas, Alexsandro Galeno Araújo. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 316:7.049.2

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A INSOLÊNCIA DE UM PENSAMENTO COMPLEXO: OS MEMES DO IMPEACHMENT DE DILMA ROUSSEFF

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em cumprimento às exigências legais como requisito parcial para a obtenção de título de Mestra em Ciências Sociais

Dissertação apresentada e aprovada em ___/___/____, pela seguinte Banca Examinadora:

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________________ Dr. Alexsandro Galeno de Araújo Dantas - Presidente

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

______________________________________________________________ Dra. Ana Tázia Patricio de Melo Cardoso - Examinadora

Membro externo - Universidade Potiguar

______________________________________________________________ Dr. Orivaldo Pimentel Lopes Junior - Examinador

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Dedico este trabalho às mulheres da minha vida: minha avó Maria, minha mãe e minha tia Carol. São a elas que devo a pessoa que sou hoje, porque compartilharam a responsabilidade de ser mãe, de cuidar, de educar e dar amor. Elas me ensinaram que a vida é feita de lutas e desafios, sobretudo para uma mulher. Então, na essência de cada linha escrita, ou, melhor, na essência de quem sou, o que é inseparável da condição de pesquisadora, está o reflexo delas.

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Os agradecimentos são muitos, pois tenho a felicidade de estar rodeada de pessoas boas e amigas. Primeiramente, quero agradecer ao meu companheiro (Bruno) por ler este trabalho e simplesmente ouvir minhas inquietações. Agradeço, também, à minha família, pela paciência e por sempre estar ao meu lado, embora não compreenda exatamente minhas angústias.

Agradeço, ainda: a Terezinha (amiga a quem confiei à revisão deste trabalho); a Suzane e Renatta (pelo apoio emocional); a Diego (amigo que me acompanha nas felicidades e angústias desde a graduação); a Clébio (pessoa maravilhosa com quem dividi a jornada do mestrado); e a todos os amigos que ganhei de presente da vida universitária, pois, sem o apoio deles, com certeza teria sido ainda mais difícil, já que, juntos, compartilhamos as felicidades e dificuldades acadêmicas.

Por último, e não menos importante, agradeço ao meu orientador, Alex Galeno, pela orientação, confiança e apoio nesse caminho árduo, porém, cheio de recompensas e sentimentos de satisfação, diante da sensação de dever cumprido. Agradeço, também, aos professores e amigos Homero Costa e Fagner França, pelas conversas de incentivo e por acreditarem em mim.

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Não existe ciência do individual, mas só existe arte do individual. E o cientista, ponderando que a vida universal inteira está suspensa na floração da individualidade das pessoas, teria de considerar o trabalho do artista com uma modéstia um tanto invejosa se ele mesmo, imprimindo necessariamente seu estilo pessoal à sua concepção geral das coisas, não lhe desse sempre um valor estético, verdadeira razão de ser de seu pensamento.

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RESUMO

Embora o teor cômico e a superficialidade sejam características que comumente são ressaltadas a seu respeito, os memes refletem aspectos profundos de uma sociedade cheia de paradoxos e meios de inovação. Sob tal enfoque, esse modo de expressão, cujos sentidos são construídos a partir de memórias que viralizam na internet, constitui o objeto de pesquisa desta dissertação. Dessa forma, baseando-se na votação da Câmara dos Deputados, a qual instaurou um processo por crime de responsabilidade fiscal contra a presidente Dilma Rousseff, usamos os chamados “memes do impeachment” como corpus analítico. Temos, assim, o objetivo de compreendê-los através da complexidade de suas formas e significados particulares à sociedade contemporânea. Para fundamentar a compreensão do nosso objeto, partimos das três principais categorias sociológicas de Gabriel Tarde (a imitação, a adaptação e a oposição) e analisamos sua formação pela ótica da teoria Ator-rede de Bruno Latour. Outro aporte teórico usado na análise dos memes é o conceito de chiste, desenvolvido por Sigmund Freud, por meio do qual, investigamos as suas tendências e técnicas para capturar o outro por meio do prazer. Nessa perspectiva, apontamos os memes como um tipo de pensamento complexo, no qual o espírito moderno se expressa, ou pode se expressar, através de uma insolência cínica/kynica.

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ABSTRACT

Although the fact of comic content and superficiality are characteristics about it, the memes are profound aspects of a society full of paradoxes and means of innovation. About this, that way of expression, wich the senses are built by memories that becomes a viral on the internet, is the research object of this dissertation. Likewise, based on the vote of the Câmara dos Deputados, a lawsuit was instituted for a crime of fiscal responsibility against a president Dilma Rousseff, using the so-called "memes of impeachment" as an analytical corpus. We have the objective of understanding them through the complexity of their forms and meanings of the contemporary society. To base our understanding of our object, we start from Gabriel Tarde's three main sociological categories (imitation, adaptation and opposition) and analyze his formation from the perspective of Bruno Latour's Network-theory. Another theoretical contribution used in the analysis of memes is the concept of joke, developed by Sigmund Freud, whereby we investigate their tendencies and techniques to capture the other through pleasure.In this perspective, we point to memes as a kind of complex thinking in which the modern spirit expresses itself, or can express itself, through cynical/kynic insolence.

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Figura 1 – Exemplo de um meme na internet... 22 Figura 2 – Postagem, no Twitter, relativa às expectativas acerca da votação do impeachment na Câmara dos Deputados... 34 Figura 3 – Exemplo de meme, no qual Eduardo Cunha e Dilma Rousseff são apresentados em imagem que sugere enfrentamento... 36 Figura 4 – Tweet que faz referência à agitação nas redes sociais em virtude da votação... 36 Figura 5 – (A) Tweet referente à votação na Câmara acerca da aceitação do processo de impeachment contra Dilma Rousseff... 39 Figura 5 – (B) Montagem que usa o quadro “A morte de Sócrates”, do pintor Louis David, para fazer referência a situação política... 39 Figura 6 – (A) Tweet referente às justificativas dadas durante a votação na Câmara acerca da aceitação do processo de impeachment contra Dilma Rousseff... 40 Figura 6 – (B) Montagem que usa o cenário do programa do Silvio Santos para fazer menção à votação aludida... 40 Figura 7 – (A) Momento em que o parlamentar Wladimir Costa (Solidariedade – PA) usa seu espaço de fala e solta confetes após votar sim, pela instauração de processo de impeachment contra Dilma Rousseff... 41 Figura 7 – (B) Imagem do clipe Thriller do artista norte-americano, Michael Jackson, que se transformou em meme na internet... 41 Figura 8 – Momento de fala de Tiririca na votação da Câmara acerca da instauração do processo de impeachment contra Dilma Rousseff... 42 Figura 9 – (A) Imagem da votação na Câmara dos Deputados no momento da votação que admitiu o prosseguimento do processo de impeachment contra Dilma Rousseff... 43 Figura 9 –(B) Deputada Raquel Muniz (Partido Social Democrático – Minas Gerais) no seu momento de fala ao votar sim, pelo processo de impeachment contra Dilma Rousseff... 43 Figura 10 – Post relativo ao processo de criação de memes... 45 Figura 11 – Explicação à maneira dos memes, sobre memes... 47 Figura 12 – Meme relativo à anulação da votação do impeachment na Câmara dos deputados (decisão logo em seguida revogada), feita pelo presidente interino, Waldir Maranhão... 48 Figura 13 – Post feito pela página do Facebook intitulada História No Paint... 50 Figura 14 – Questionamento feito por nós na página do Facebook História No Paint... 51

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Figura 16 – (B) Imagem de parlamentares expondo cartazes com palavras-chave (hashtags)

usadas nas redes socias... 54

Figura 16 – (C) Post contrário ao impeachment usando #nãovaitergolpe... 54

Figura 17 – Exemplo do meme “in brazilianportuguesewedon’tsay”... 55

Figura 18 – Tweet referente à vitória brasileira na guerra memeal... 56

Figura 19 – (A) Tweet que estabelece conexão entre o impeachment e o fim da dupla Sandy e Júnior... 57

Figura 19 – (B) Tweet que estabelece conexão entre o impeachment e o fim do grupo Rebelde... 57

Figura 20 – Meme fazendo alusão à imagem do presidente Michel Temer... 59

Figura 21 – Meme referente ao parlamento brasileiro... 60

Figura 22 – Meme referente ao momento de votação do deputado Wlademir Costa (SOLIDARIEDADE/ PA)... 61

Figura 23 – Tweet que usa a imagem do cantor e também deputado Sérgio Reis (Partido Republicando Brasileiro - SP) para ironizar seu voto, relacionando-o à sua música famosa, a qual afirma “panela velha é que faz comida boa”... 66

Figura 24 – Tweet relacionado à votação na Câmara dos deputados, estabelecendo uma conexão com um personagem alvo de memes durante a Copa do Mundo de 2014... 67

Figura 25 – Tweet relacionado à votação na Câmara dos deputados... 69

Figura 26 – Meme utilizando a imagem de Nestor Cerveró, mais especificamente sua deficiência para ironizar o quadro político... 70

Figura 27 – Post que relaciona o impeachment da presidenta Dilma Rousseff ao programa Big Brother Brasil... 71

Figura 28 – Meme que exemplifica um tipo de entrelace de sentidos... 72

Figura 29 – (A) Post que busca estabelecer conexão entre o olhar atento de um parlamentar com o que seria ideal em uma relação afetiva... 73

Figura 29 – (B) Meme que expressa que a beleza de uma parlamentar está acima da importância da votação do impeachment em si... 73

Figura 30 – Tweet que estabelece uma relação entre o resultado jogo do Brasil contra a Alemanha na Copa de 2014 com o determinado momento da votação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff... 74

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Figura 33 – (A) Tweet satirizando a roupa usada pela presidenta no dia da posse (2014)... 78 Figura 33 – (B) Tweet da candidata a vice-presidenta (Kátia Abreu) respondendo, à maneira dos memes, as sátiras feitas em relação à sua foto oficial de candidatura, em 2018... 78 Figura 34 – (A) Post que ironiza a situação do Brasil pós-impeachment... 79 Figura 34 – (B) Post que faz referência ao vazamento de uma gravação, na qual o parlamentar Romero Jucá e o ex-presidente da Transpetro (Sérgio Machado) sugerem a necessidade de um “grande acordo nacional... com supremo, com tudo”, visto que, com a Dilma Rousseff, não dá para “estancar a sangria”, resultante da Operação Lava Jato... 79 Figura 35 – Reações possibilitadas através do Facebook... 80 Figura 36 – Meme construído a partir de uma foto registrada durante a 22ª Parada LGBT de São Paulo, que viralizou nas redes sociais... 83 Figura 37 – Meme que utiliza a mesma imagem para: (A) fazer referência às cartas de Michel Temer dirigidas à presidenta Dilma Rousseff. Tais cartas se tornaram alvo de sátiras por demonstrar ressentimento pela forma como era tratado na condição de vice... 85 Figura 37 – Meme que utiliza a mesma imagem para: (B) para relacionar a novela mexicana intitulada “A Usurpadora” ao papel desempenhado por Temer no impeachment... 85 Figura 37 – Meme que utiliza a mesma imagem para: (C) Satirizar a possibilidade de Michel Temer se tornar presidente... 85

Figura 38 – Tweet referente à votação na Câmara dos

Deputados... 88 Figura 39 – Meme fazendo referência ao momento de disputa e tensão entre apoiadores do impeachment (coxinhas) e contrários (mortadelas)... 90 Figura 40 – Tweet que faz uso do cinismo e do deboche para atribuir um motivo ao impeachment da Dilma Rousseff... 93 Figura 41 – (A) Foto em uma das manifestações favoráveis ao impeachment que ocorreram pelo país... 94 Figura 41 – (B) Foto em uma das manifestações favoráveis ao impeachment registrando um encontro hostil que retrata a polaridade de perspectivas... 94

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO... 14

2 CAPÍTULO I – O QUE NÃO SÃO MEMES?... 22

2.1 UM SEGUNDO REPLICADOR A SOLTA: A IMITAÇÃO... 22

2.1.1 Roteiro para um episódio de Black Mirror?... 26

2.1.2 As novas tecnologias do tempo e da memória... 28

2.1.3 Uma sociedade transgressora da realidade sensível... 29

2.1.4 Unidade de transmissão cultural... 31

2.2 POTÊNCIAS INVENTIVAS: A OPOSIÇÃO... 33

2.2.1 Memes de direita e memes de esquerda... 34

2.2.2 Memes e política... 35

2.3 O IMPEACHMENT: A ADAPTAÇÃO... 37

2.3.1 O império dos memes... 38

3 CAPÍTULO II POTÊNCIAS INVENTIVAS: UM MOVIMENTO CONTROVERSO... 45

3.1 RASTROS, TRAÇOS E PISTAS... 45

3.2 A IRONIA DOS MEMES: UMA METAMORFOSE CONCEITUAL E CIRCUNSTÂNCIAL... 47

3.3 AS INCERTEZAS... 49

3.4 A AÇÃO E OS MEMES... 53

3.5 TORÇÃO DE SENTIDO... 58

3.6 REAGREGANDO O SOCIAL... 60

4 CAPÍTULO III – PERFORMANCE DOS MEMES: A MUDANÇA E A CRIAÇÃO SÃO AS REGRAS... 63

4.1 COM QUANTOS MEMES SE FAZ UM IMPEACHMENT?... 63

4.2 O MEME É COISA SÉRIA?... 68

4.3 A PERCEPÇÃO DO MEME... 71

5 CAPÍTULO IV – ENTRE O DEBOCHE E O CINISMO: A NEGATIVIDADE DA COMUNIÇÃO POLÍTICA... 81

5.1 OS MEMES NA SOCIEDADE DA TRANSPARÊNCIA... 81

5.1.1 Deboche... 83

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5.2 MEMES E O GRUPO SOCIAL DO FUTURO... 90

5.2.1 Erosão da hierarquia... 91

5.2.2 Imediatismo do consumo e produção... 92

5.2.3 Ausência de respeito... 93

5.3 ESTRATÉGIAS DO PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO: A CRISE DA RAZÃO... 96

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS... 99

REFERÊNCIAS... 102

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1 INTRODUÇÃO

Os memes, famosos modos de expressão da internet, têm sua constituição subestimada, pois, de acordo com essa visão, seriam contagiantes em virtude de apresentar uma linguagem simples, objetiva, superficial e conteúdo trivial. De outro modo, tomá-los como objeto de pesquisa implicou, necessariamente, em um exercício complexo no sentido descrito por Edgar Morin (2005A), visto que incitou o diálogo com vários campos de estudos. Assim, considerando a tendência de se universalizar presente na linguagem dos memes, ressaltamos a necessidade de compreendê-los a partir dos seus significados referentes ao pensamento contemporâneo.

Nesta perspectiva, nosso propósito é estudar esse fenômeno da internet, por meio da complexidade de suas formas e significados particulares à sociedade atual, usando como enfoque temático a votação na Câmara dos Deputados acerca do pedido de impedimento do governo da presidenta Dilma Rousseff (2010-2016). Consoante ao princípio da Complexidade, buscamos fazer uma pesquisa preocupada em reconhecer a necessidade de distinguir e analisar, mas, também, em manter a comunicação entre aquilo que é distinguido: o objeto e o ambiente, a coisa observada e o seu observador. Preocupou-se, portanto, em não colocar o todo em detrimento da parte ou vice-versa, diante do desafio de organizar o conhecimento.

A própria concepção de conhecimento é complexa (o que não implica falar exclusivamente de pensamento científico). Tal percepção é obscurecida pelo excesso de informações, acerca das quais não se tem nem tempo nem vontade de refletir. Além disso, os conhecimentos não se identificam em virtude da superespecialização dos mesmos, entretanto, conhecer é dialogar, negociar e debater-se. Salienta-se, ainda, que a complexidade faz parte da ciência e da vida cotidiana, pois, é nesta última que o indivíduo expressa suas identidades relativas aos diversos papéis sociais, expressando, assim, um exemplo de intensa complexidade (MORIN, 2005B).

Antes de tudo, não se trata de aspirar à completude, pois o pensamento complexo é capaz de conceber a organização, e, ao mesmo tempo, comportar a incerteza, reconhecendo que o saber completo é inatingível. Dessa forma, ao pesquisarmos o complexo, jamais alcançaremos o completo, sempre surgem mais dúvidas e questões. Ademais, não se trata de uma contraposição ao pensamento simplificado (separar e reduzir), uma vez que este último é

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incorporado pelo paradigma da complexidade, cujo movimento consiste em reunir, mesmo distinguindo. Em outras palavras, a complexidade é o desafio, de modo algum a resposta.

Mas, como os memes refletem isso? São realmente simples, superficiais e de conteúdo trivial? Para Morin (2005A), estamos vivendo um momento histórico no qual os desenvolvimentos científicos, técnicos e sociológicos estão, progressivamente, em inter-retroações estreitas e múltiplas. Como os memes se ligam a esse processo? Ou melhor, como compreender os memes em sua complexidade?

Para falar de memes da internet, consideramos importante ressaltar primeiro que, embora popular a partir de uma conotação atual, não diz respeito a uma novidade em si, porque a sua existência precede às relações estabelecidas pela rede mundial de computadores. O termo é emblemático na cultura digital, mas, apresenta uma definição inicialmente elaborada no campo de pesquisa da Biologia, dado que a expressão foi assinalada pela primeira vez pelo biólogo britânico Richard Dawkins, em 1976, em seu best-seller “O Gene Egoísta”. Dessa forma, inusitadamente, é no campo da Biologia que, brevemente, devemos iniciar nossa investigação, a fim de entender tal analogia.

O termo remete a uma unidade de transmissão cultural ou unidade de imitação, sendo resultante da abreviação da palavra grega mimeme, mas também é relacionado à palavra francesa même (mesmo) ou memória, conforme explica Dawkins (2007) em “O Gene Egoísta”. De acordo com o biólogo, este livro foi escrito para despertar a imaginação, embora esteja falando de ciência. No que concerne à perspectiva desse autor1, os genes possuem uma unidade equivalente no campo da cultura, e, portanto, são, em certa medida, comparáveis.

Não sem repercussão polêmica, Dawkins (2007) afirma que, nós e todos os animais somos máquinas de sobrevivência, criadas pelos genes; mas, a cultura confere particularidade à nossa espécie. Todavia, tal particularidade provém de uma condição análoga à condição biológica, o que implica dizer, tecnicamente, que a transmissão cultural seria comparável à transmissão genética, visto que se apresenta de maneira fundamentalmente conservadora e, ao mesmo tempo, capaz de dar origem a um novo tipo de evolução (DAWKINS, 2007).

Antes de chegarmos ao que esse autor chama de memes, é necessário, primeiro, compreendermos a lógica dos genes. Segundo Dawkins (2007), os nossos genes sobrevivem, por até milhões de anos, em circunstâncias extremamente competitivas, nas quais os

1 A perspectiva desse autor é fundamentada na teoria da evolução e da seleção natural de Charles

Darwin. De acordo com ela, há duas formas de notar a seleção natural: pelo ângulo do gene e pelo ângulo do indivíduo, correspondendo a dois pontos de vista da mesma verdade.

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sucedidos se caracterizam pelo egoísmo implacável, refletindo, de modo geral, no comportamento individual. A partir da reprodução sexual, os genes são misturados e embaralhados, controlando indiretamente a produção dos corpos, de maneira que, qualquer corpo individual constitui um meio temporário para uma combinação de genes.

Tal combinação é efêmera, diferentemente dos genes em si, que estão constantemente se cruzando no decorrer das gerações. Logo, podem ser definidos como uma unidade que garante sua sobrevivência por meio de corpos individuais que se sucedem. Em síntese, correspondem à unidade fundamental da seleção natural ou do interesse próprio, cuja característica essencial consiste na capacidade de criar cópias de si mesmo (DAWKINS, 2007). Entretanto, o que os memes têm a ver com isso?

Dawkins (2007) frisa nossa singularidade referente às influências apreendidas e transmitidas por gerações, ou pelos ditames culturais. O gene não é, na concepção dele, a única base da ideia de evolução, pois surgiu um novo replicador em nosso planeta que ainda está em sua infância, mas que avança em velocidade bem maior em relação ao ritmo do gene: o meme. Trata-se de um equivalente do gene, sendo este definido, como uma forma não rígida e absoluta, uma unidade de conveniência, a extensão de um cromossomo suficientemente capaz de compor uma unidade de cópia viável para a seleção natural. No âmbito cultural, o meme funciona de maneira parecida: seria uma unidade de sentido, explica o autor. No entanto, é sua roupagem assumida no ciberespaço que nos interessa, em razão de que, seja uma linguagem sem profundidade e simples ou não, os memes remetem a uma nova forma de existência coletiva, a qual, inequivocamente, merece atenção e reflexão por parte dos estudos sobre a sociedade contemporânea.

Na perspectiva desenvolvida na internet, essa unidade de sentido assume particularidades que nos interessam por: estabelecer um tipo de conexão mental, isto é, independente do contato físico; e representar um modo de expressão que se destaca na sociedade digital, por meio de técnicas e interações sustentadas pelo teor cômico. Esses memes nos cercam por todos os lados, invadem, inclusive, a conversação face a face, criando enlaces ora efêmeros, ora tão surpreendentemente ampliado que sua fama se torna mundial. Além disso, correspondem à capacidade de auto replicação de uma memória verbal, imagética, sonora ou, mesmo, a mistura disso no estabelecimento e criação de quadros de sentidos mutáveis, criativos e engenhosos, capazes de constituir conexões humanas e não humanas, permeadas por elos não tradicionais quanto ao modo de se relacionar.

Dito isto, objetivamos compreender os memes em seu sentido apropriado pela internet usando como recorte temático o impeachment da primeira presidente mulher do país e, como

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corpus analítico, 54 posts (usamos apenas imagens) que compõem os “memes do impeachment”. Mais precisamente, o alvo dessa investigação desagua no dia 17 de abril de

2016, dia importante na história política brasileira, marcada pela polarização de opiniões, mas, também, pela repercussão através de memes, concordantes com um tipo de imitação irônica da realidade, tanto para os que carregavam conteúdo favorável quanto desfavorável ao processo político-criminal que visava apurar crime de responsabilidade.

No dia citado, a Câmara dos Deputados aprovou em votação o prosseguimento do processo de impeachment no senado, com um resultado de 367 votos favoráveis, 137 contrários e 7 abstenções. Contudo, não é esse resultado o alvo de nossas reflexões, mas, sim, o seu efeito mais imediato e intenso: a propagação de memes nas redes sociais digitais. Então, a questão central é: em que consiste a capacidade de gerar memes da votação acerca do

impeachment da presidente Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados?

Compreendemos os memes como um aspecto essencial da sociedade contemporânea, pois é a ela que eles remetem. Portanto, são capazes de lançar luzes sobre as contradições, avanços, novas problemáticas e desafios dessa sociedade, cujos sentidos são construídos transversalmente à fugacidade da inovação e tecnologia. O contato físico se tornou uma exigência obsoleta. Dessa forma, é, principalmente, devido ao fato dos memes poderem proporcionar reflexões acerca dessa sociedade, e, acerca de quem é esse novo “nós”, que os escolhemos para estudo.

Ademais, consideramos a política como uma das dimensões sociais mais importantes. Por isso, o fato dessa dimensão se tornar alvo de memes questiona imediatamente à necessária falta de relevância e insignificância do nosso objeto. Apesar de aparentemente apresentar características simplórias, estudar os memes implica em se deparar com diversos entraves metodológicos, tais como limites conceituais, critérios de coleta e análise.

Nesse sentido, resgatamos a sociologia de Gabriel Tarde2 por compreender a

atualidade de seu pensamento. Todavia, é importante ter em mente que o que chamamos de memes, em sua constituição assumida na internet, decorre de inovações tecnológicas tão profundas, que não convém mais buscar o fato social nas relações intercerebrais tão somente, tal como propõe o sociólogo francês supracitado. Conforme ressalta Bruno Latour (2012), o desenvolvimento tecnológico e científico da sociedade atual questiona as concepções

2 Gabriel Tarde (1843-1904) foi um filósofo, sociólogo e criminologista francês. A atualidade do seu

pensamento, enfatizada neste trabalho, consiste no fato de que sua sociologia apreende a comunicação entre os espíritos, a partir de efeitos de ações relativas ao contato físico ou à distância, pois abordamos os memes como aspecto chave das engrenagens que formam o real na sociedade contemporânea, a qual é baseada em tecnologias que intensificam as relações e a comunicação.

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antropocêntricas das relações e conexões constituintes da vida social, pois as máquinas invadem as relações e mantêm com elas laços cada vez mais estreitos, de maneira a criar uma confusão quanto às delimitações entre elas e nós, entre estar sozinho e estar em companhia, entre o real e o irreal.

Isso implica dizer que as relações estabelecidas a partir das inovações tecnológicas de nossa época são, cada vez mais, mediadas pelas técnicas, máquinas e telas. Diante disso, expressões como tweettar, retweettar, publicar e postar correspondem a modos de se relacionar ou, melhor dizendo, de conectar-se. As quais nos interessam por estarem intimamente ligado à condição de meme na internet, sendo aqui analisadas a partir de conceitos centrais, tais como definições de: imitação, adaptação e oposição (TARDE, 2000; TARDE; 2011); Ator-Rede (LATOUR, 2012); público (TARDE, 2005); e chiste (FREUD, 2017). Tais conceitos foram usados como base para traduzir as conexões, transposições e torções de sentidos estabelecidos no meme.

Questionamentos como: quem os criou? O que é exatamente um meme? Em que reside seu potencial de se universalizar? Correspondem a entraves metodológicos que nos deparamos em virtude das particularidades do nosso objeto. Sendo assim, neste aspecto, escolhemos trabalhar com a Teoria Ator-Rede, isso significa que não estamos em busca da origem da ação, pois esta se mantém em constante incerteza, conforme demonstraremos. Ademais, não podemos facilmente estabelecer para nosso objeto um conceito fechado (e nem tencionamos isso), porque os memes jogam com sentidos, com conceitos, com formas e com ideias, transferindo-os para outras teias de sentidos e formas, invertendo-os livremente, implicando em um objeto de estudo escorregadio.

É importante ressaltar que, com as redes sociais virtuais, qualquer fato é ou pode se tornar um meme, uma vez que somos potencialmente registráveis por uma câmera. Tendo isso em mente, é conveniente estudar os memes evitando enclausurá-los em roteiros metodológicos inflexíveis: primeiro, sente-se o objeto e permite que isso seja definido no percurso pelos próprios atores3.

A proposta consiste em transformar o texto em mediador, já que não pretendemos apontar uma relação que transporta causalidade, mas que induz mediadores à coexistência, formando, assim, um relato. Dito de outro modo, delineamos uma série de ações em que cada participante é tratado como um mediador. Por conseguinte, narramos e descrevemos uma ação

3 Latour (2012) designa o social como um tipo de conexões entre coisas que não são, em si mesmas,

sociais, e, em sua formação, representa um processo sem fim cheio de laços incertos, controvertidos e mutáveis. Seguindo esse raciocínio, adentramos no “mundo” dos memes, buscando as pistas deixadas por eles a respeito do que são e o que significam na sociedade contemporânea.

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em rede de atores (humanos ou não) que não transportam efeitos sem transformá-los. Ademais, cada ponto do texto está susceptível de conduzir o leitor para uma nova encruzilhada ou levá-lo à origem de uma nova translação (LATOUR, 2012). Por isso, este trabalho foi escrito de maneira que não exige uma leitura ordenada, uma vez que podemos iniciar por qualquer capítulo.

Com base na Teoria Ator-Rede4, não estamos em busca de poucas causas globais,

capazes de gerar muitos efeitos, porque elas tendem a repetir e transportar uma força social já composta, sem mostrar do que ela é feita. Em alternativa, o termo rede é usado para avaliar o quanto de energia, movimento e especificidade nossos próprios relatos conseguem incluir. Logo, rede é um conceito, não uma coisa. A rede é um traço deixado por um agente, ou seja, compreende um movimento que é traçado novamente pela passagem de outra entidade circulante, que buscamos traduzir.

Sob tal perspectiva, na condição de “caçadores digitais”5, vasculhamos as redes, por

meio de um perfil no Facebook (que possibilitou acesso ao Twitter e outras redes sociais) e, também, por buscas no Google imagem, com a finalidade de ser capturados por insights provocados pelo próprio objeto. Em outras palavras, traduzimos as pistas e rastros desse movimento social, particular à sociedade digital, cujas características fundamentais são: carregar em si o potencial (que pode ser estabelecidos em imagens, frases e vídeos) de ser replicado ou publicado; ser capaz de influenciar, persuadir e contagiar; e remeter a um enredo inicial que, por algum motivo, aciona sentidos, ironias, sátiras, sensações e afetos, criando enredos relativamente independentes do enredo inicial.

Optar por seguir os rastos de nosso objeto retirou-nos as certezas com relação ao percurso e, como efeito, ao domínio do que escrevemos. Então, nossos primeiros dilemas foram: como começar esse texto? Onde está o início do nosso objeto? Desse modo, se era em busca de controvérsias que decidimos seguir, resolvemos iniciar pela maior de todas: o que não é um meme? Não queríamos, por hora, o que eles são, mas o que eles não são. Ao nos questionarmos sobre o que poderíamos fazer com o que os memes não são, chegamos à

4 Um Ator-Rede, conforme explica Bruno Latour (2012), é rastreado sempre que, no curso de um

estudo, toma-se a decisão de substituir atores de qualquer tamanho por sítios e locais, em vez de inseri-los no micro ou no macro. As duas partes (ator e rede) são essenciais, por isso o hífen. A primeira parte, o ator, revela o pequeno espaço, no qual todos os ingredientes do mundo começam a ser encubados. Já a segunda parte, a rede, explica – através de quais veículos, traços, trilhas e/ou tipos de informações – como o mundo é colocado dentro desses lugares e, assim, estabelecido. Por isso, a “rede” com hífen não está aí como presença sub-reptícia do contexto, mas como aquilo que conecta atores.

5 Para o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han (2016), somos caçadores de informação e buscamos

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seguinte conclusão: usarmos isso como única certeza para seguir a escrita desse trabalho. Após a escolha do mais difícil (como iniciar a escrita), a continuação do texto foi um exercício parecido com o de montar um quebra-cabeça: cada aspecto que, por algum motivo, considerássemos uma pista ou rastro a ser seguido, abria um caminho novo, culminando em novos inícios, os quais se atrelaram e, ao mesmo tempo, não dependeram da ordem dos capítulos.

A preocupação de escrever algo (que empolgue o leitor a continuar querendo saber cada vez mais) ficou a cargo de permitir aos memes que falassem cada vez mais sobre si. Como os memes oferecem excelentes narrativas, ficamos com a tarefa de traduzir e organizar tais narrativas. Mesmo sem a ambição de abarcar todas as dimensões desse objeto, construímos por escrito um percurso que, embora acidentado, demos uma sequência necessária, pois a elaboração de um texto exige isso.

Desse modo, convidamos o leitor para, no primeiro capítulo, seguirmos as primeiras pistas dos memes. O objeto nos conduziu para um breve diálogo com o campo da Biologia, sendo, portanto, onde encontramos a primeira trilha de informações sobre sua capacidade de estar por todos os lados. Diante de tal característica, optamos pela estratégia de questionar o que não é um meme, a fim de chegar mais próximo do que é um meme na internet. Nesse percurso inicial, desenvolvemos uma investigação fundamentada nas três principais categorias tardianas: a imitação, a adaptação e a oposição. Por esse viés, apontamos os memes como: uma imitação peculiar; detentores de potencialidades inventivas; capazes de estabelecer alianças, cuja lógica parece desafiar a razão.

No segundo capítulo, propomos ao leitor seguir o movimento controverso dos memes. Isso implica dizer que assumimos nossa desvantagem, como pesquisadores, em relação aos atores envolvidos na cena. Logo, são eles os mais aptos a “falarem” e explicarem seu movimento. Como compreendemos que o cientista social estuda o processo de construção do mundo (do qual ele faz parte), à medida em deixamos aos atores a tarefa de definir o social, inclusive pedindo-lhes explicações, deixamos os atores fazer sociologia para nós, pesquisadores. Nesse processo, consideramos a existência de uma ação em rede, levada a cabo não apenas por atores humanos, mas, também, não humanos, isto é, as relações estabelecidas pelos memes são performáticas e, sobretudo, realizadas pela técnica e por dispositivos digitais, pois o corpo se dissolve na formação de um público. Dito de outra forma, este capítulo convida o leitor a perceber os meios de produzir o social usado pela lógica dos memes, isto é, a perceber sua tarefa de reagregar o social.

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Em sua performance, caracterizamos os memes pela mudança e pela criação. Assim, no terceiro capítulo visamos conduzir o leitor ao estudo mais específico dessa performance. Como esta é realizada por meio da constante entrada e saída de cena dos atores, as suas especificidades devem ser levadas em consideração todas as vezes que se manifestam, podendo ser levadas a muitas direções diferentes. Sendo assim, focamos nos modos de expressões dos memes do impeachment, buscando entender suas técnicas, significados e mensagens, baseando-se no conceito de chiste.

Por fim, a construção de nossa rede, destaca a existência de três aspectos circunstanciais: a erosão da hierarquia; o imediatismo do consumo e produção de informações; e a ausência de respeito. Tais aspectos são abordados no quarto capítulo, no qual apontamos, no enlace descrito, a constância de dois elementos nos memes do impeachment: o cinismo e o deboche6, apontados como características da negatividade política. Portanto, neste último capítulo, buscamos, nas controvérsias, reflexões mais generalizadas acerca da sociedade contemporânea.

6 O termo “deboche” surgiu, na pesquisa, como aspecto diretamente associado aos memes. Responder

algo com “deboche” ou ser “debochado” foi compreendido, como o mesmo que usar meme nas redes sociais digitais. Em razão disso, a expressão é usada a partir do que nos foi dito pelos atores.

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2 CAPÍTULO I – O QUE NÃO SÃO MEMES?

O nosso objeto compreende a um notável e mal definido fenômeno da internet, o qual faz parte do tipo de interação que desenvolvemos no âmbito virtual. Identificamos os memes ao encontrá-los nas redes sociais, sobretudo os mundialmente famosos, porém a tarefa de defini-los é muito mais complicada. Geralmente definidos como uma futilidade, um passatempo, uma ideia vaga ou superficial, os memes são oriundos da sociedade digital, tratando-se de um modo de expressão que provoca uma inquietação pela expansão e capacidade de influenciar, contagiar e surgir do "nada", de qualquer assunto, qualquer situação ou qualquer pessoa, pois estão todos susceptíveis a serem desnudados pelo fenômeno do meme. Ademais, eles estão literalmente por todos os lados, seja na realidade virtual ou não. Dessa forma, parece mais oportuno nos perguntar primeiro: o que não é um meme?

2.1 UM SEGUNDO REPLICADOR A SOLTA: A IMITAÇÃO

As redes sociais virtuais ilustram, por excelência, a sociedade expositiva descrita por Byung-Chul Han (2017). Em tal sociedade, tudo tem seu valor mensurado pelo sentido expositivo e, por esse viés, explora-se o visível. À vista disso, o imperativo da transparência e da visibilidade implica na coação para se tornar imagem e, como efeito, no aumento das imagens. Diante dessa superprodução de imagética, os memes saltam: são tweetados,

retweetados ou publicados, como exemplificado na Figura 1.

Figura 1 – Exemplo de um meme na internet.

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O exemplo supracitado expõe uma imagem da ex-presidenta Dilma Rousseff com semblante de aflição e preocupação, sendo usada para se referir à votação na Câmara dos Deputados que resultou na instauração do processo de impeachment, além de comparar esse acontecimento à derrota do Brasil, por 7 a 1, no jogo contra Alemanha na Copa do Mundo de 2014. Todavia, cabe o questionamento: o meme é a postagem, as frases ou a imagem? Fica evidente, na Figura 1, que o foco da exposição é aquilo que não se esperava expor (pela ex-presidenta), visto que a foto foi editada a fim de atender a condição de meme, mas não sabemos quem ou o que está agindo. Portanto, é pertinente indagar que materialidades, sentimentos e ideias são acionados para construir a (s) realidade (s) do meme da internet, em especial os relativos ao impeachment da presidente.

A respeito dos limites e demarcações do meme, podemos apontar melodias, ideias,

slogans, moda ou um post no Facebook (tal como o exemplo apresentado na Figura 1) como

exemplo de um meme? Isso é relativo. Para exemplificar, Dawkins (2007) explica que, se apenas uma frase da nona sinfonia de Beethoven destaca-se na memória, de modo a abstrair do seu encadeamento principal, e, como efeito, é usada na abertura de uma estação de rádio, reproduzida e reconhecida, temos, então, um meme de sucesso. Partindo dessa perspectiva, o

post apresenta o entrelaçamento de mais de uma memória marcante: a imagem, em virtude

das impressões subjetivas que é capaz de transmitir, além de dar suporte para a criação de sentidos associados à marcante derrota do Brasil no jogo contra a Alemanha na Copa do Mundo de 2014.

Logo, os memes dizem respeito a uma unidade de sentido, de extensão variável, dependendo de sua capacidade de abstrair e ser replicado, "se a ideia pegar, pode-se dizer que ela propaga a si mesma, espalhando-se de cérebro para cérebro" (DAWKINS, 2007, p. 330). Perguntas do tipo "por que não consigo tirar esse pensamento da minha mente?", "por que decidi escrever este artigo e não outro?" e "quem sou eu?" são apontadas por Susan Blackmore (1997) como indagações que não podem ser respondidas sem o provocativo campo de estudos denominado memética7.

No entanto, a definição de Dawkins (2007) é demasiado ampla para pensar acerca do que chamamos de memes na internet, afinal, eles estão por todos os lados, em todas as palavras que escrevemos e que saem de nossas bocas, nas ideias que são copiadas, no como se vestir e, inclusive, em nossos pensamentos, desde que possuam potencial suficiente para gerar

7 Campo de estudo dedicado aos memes, proposto, inicialmente, em O gene egoísta, de Richard

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repetições. Os memes da internet também disputam pelo nosso tempo, sendo assim, esse ponto de partida é importante por oferecer o primeiro aspecto de análise: a imitação.

Tarde (2000) afirma que tal categoria constitui uma dimensão elementar e fundamental da sociedade. De acordo com ele, qual seja a função celular que corresponde ao pensamento, reproduz-se e multiplica-se no interior dos nossos cérebros no decorrer de nossa vida mental. Igualmente, cada percepção específica sucede de uma função celular diferente, apresentando, desse modo, um emaranhado de irradiações, abundante em interferências que compõem tanto a memória quanto o hábito. A imitação diz respeito, então, a uma ideia ou imagem recordação, evocadas pelo espírito por intermédio de uma leitura ou conversa, de modo que, "se o ato habitual teve por origem à vista ou o conhecimento de uma ação análoga de outrem, esta memória e este hábito são fatos sociais ao mesmo tempo em que psicológicos" (TARDE, 2000, p. 10).

Em suma, Tarde (2000) se refere a uma ação à distância de um espírito sobre outro, cuja reprodução é o efeito principal. O autor salienta, ainda, que as semelhanças e a imitação não suspendem os agentes individuais, pois destes derivam as inovações, ou melhor, o despertar para invenções converge de um processo individual. Desde já, é importante ressaltar que uma noção antropocêntrica não dá mais conta da realidade produzida na internet. Por isso, interessa buscar pistas acerca do fenômeno dos memes em meio a um entrelace social composto por humanos e, também, por não humanos, ambos capazes de mobilizar e criar sentidos a partir das circunstâncias que iremos explorar mais à frente (LATOUR, 2012).

Dawkins (2007) busca demonstrar que a evolução cultural, via imitação, decorre em consonância com a evolução biológica, também através de um agente mínimo. Com o intuito de esclarecer sua comparação, aponta três aspectos em comum entre os genes e os memes: longevidade, fecundidade e fidelidade de cópia. Tal como a longevidade particular da cópia de um gene, a longevidade particular da cópia de um meme apresenta pouca importância, em virtude de que sua duração se encerra com o fim da vida de uma pessoa. Contudo, sua fecundidade é muito mais importante, uma vez que se espera que sua existência dê continuidade por meio de cópias em sucessivos cérebros. Quanto à fidelidade da cópia, diferentemente dos genes, os memes parecem estar sujeitos a mutações e misturas constantes.

Sob tal enfoque, Dawkins (2007) usa metáforas para se referir aos genes, as quais ele considera útil também aplicar aos memes, tais como egoístas e implacáveis, como se tivessem intenções e fossem entidades conscientemente voltadas para garantir a auto-sobrevivência. Além disso, para dominar a atenção de um cérebro, deve competir com memes rivais, ou seja, os memes competem pelo tempo no rádio e na televisão, pelas estantes de uma biblioteca, etc.

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O autor mencionado ressalta ainda que os memes se destacam ao explorar seu ambiente cultural, pois são favorecidos pela seleção, somando-se a outros memes que também fazem parte desse ambiente, coadaptando-se e evoluindo, por exemplo, ideias como Deus, fé e inferno.

Nessa perspectiva, a cada geração, nossa contribuição genética se reduz pela metade, até um ponto em que se torna insignificante. Em outras palavras, os genes se aproximam da imortalidade, mas o conjunto de genes que compõe uma pessoa é provisório. Logo, não é na reprodução que reside à imortalidade, porém os memes apresentam um caminho mais promissor nessa direção. Em vista disso, se contribuirmos para o patrimônio cultural por meio de uma ideia ou composição de uma música, é bem possível que sobreviva muito tempo depois. Assim, podemos afirmar que os memes teriam assumido o comando, tendo o gene desenvolvido os cérebros em suas máquinas de sobrevivência dotadas da capacidade de imitação rápida. Por conseguinte, ao adquirir a capacidade de imitar, resta aos memes explorarem isso para evoluir, tal como os genes são replicadores cegos e inconscientes (DAWKINS, 2007).

Tarde (2000), no final do século XIX, já desenvolvia noções que seguem por vias parecidas e mais elaboradas, pois, segundo este autor, atravessando determinações físicas e biológicas, o espírito humano foi suscitado e inclinado a necessidades virtuais e profundas da alma humana. O percurso humano para adentrar no mundo social, a seu ver, inicia com rudimentos de uma linguagem e de uma religião, "sem essa faúlha, o incêndio do progresso jamais se teria declarado na floresta primitiva cheia de selvagens; e é ela, é a sua propagação por imitação, que é a sua verdadeira causa, a condição sine que non" (TARDE, 2000, p. 65).

Essa evolução se concilia com a necessidade de inventar ou descobrir, desaguando no cruzamento feliz entre um cérebro inteligente e uma corrente de imitação, seja com uma contracorrente que lhe reforce ou com uma percepção exterior intensa, supostamente imprevista, a qual se decompuser as percepções e os sentimentos, observa-se que se resolvem entre si, quase completamente em simultâneo com o avanço social em elementos psicológicos condicionados pelo exemplo (TARDE, 2000). É necessário ter em mente, como ressalta Blackmore (1997), que os memes não são como os genes em vários sentidos, visto que a cópia daqueles é feita por um tipo de "engenharia reversa", na qual uma pessoa copia o comportamento de outra, o que não ocorre por transmissão química. Seríamos, portanto, construídos como máquinas de genes e educados como máquinas de memes, mas temos a particularidade de poder subverter nossos criadores, pois "somos os únicos na terra com o poder de nos rebelar contra a tirania dos replicadores egoístas" (DAWKINS, 2007, p. 343).

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2.1.1 Roteiro para um episódio de Black Mirror?

Inicialmente, é fundamental refletirmos sobre a seguinte indagação: sob essa ótica, somos produtos de dois replicadores, armazenados em nossos corpos e cérebros? Diante de tal questionamento, os rastros seguidos do nosso objeto parecem ter nos levados a um bom roteiro para a série britânica de ficção científica, Black Mirror, cuja abordagem provocativa e ácida versa sobre os impasses da sociedade moderna. Entretanto, a psicóloga britânica Blackmore (1997) desenvolve mais detalhadamente como isso funciona, a partir do domínio dos memes. Ela explica que o que estes fazem é basicamente se reproduzirem e seus efeitos apresentam, a depender da circunstância, mais chances de sobreviver que outros. Ressalta-se que tal aprendizado por tentativa ou erro não é memético, sendo assim caracterizado somente quando a ideia, o comportamento ou a habilidade se dão pela imitação.

Seguindo essa lógica, Blackmore (1997) se questiona quais memes possuem mais chances de imperar garantindo sua imitação. Em resposta, ela nos provoca a imaginar um mundo cheio de cérebros, contudo com muito mais memes. Em seguida, a psicóloga instiga a pensarmos em memes que incitam o seu hospedeiro a ensaiá-los continuamente, como uma música de tão fácil assimilação que a mesma fica se reproduzindo em nossa cabeça, remetendo-se a qualquer pensamento que seja insistente. Em contrapartida, temos outros memes que são desinteressantes demais para serem repensados ou que a memória não é estimulada. Em decorrência disso, a autora conclui que a “memosfera” é muito povoada por canções, ideias e pensamentos atraentes e, devido a isso, pensamos e falamos muito.

Em síntese, a imitação constitui uma categoria fundamental para o meme, assim como é uma categoria central na perspectiva de Tarde (2000) acerca da sociedade. Segundo esse autor, não podemos olhar, ouvir, caminhar, escrever, inventar ou imaginar sem recordações musculares e coordenadas, da mesma maneira que a sociedade só pode existir, desenvolver e se transformar, se constituir hábitos que se somam a ações inovadoras. Além disso, ele aponta a complexidade da natureza íntima da sugestão de célula a célula (ambas cerebrais), que concebe a vida mental, tal como da essência dessa sugestão quando ocorre de pessoa para pessoa, mas, ao pensar sobre essa complexidade, o autor compara o estado social ao sonambulismo.

Essa noção propõe que qualquer ação sugere aos demais a ideia relativamente irrefletida de imitar ou, se isso não ocorrer, é devido ao fato de ter sido anulada diante de uma contra tendência advinda de recordações presentes ou percepções exteriores. O sonâmbulo é usado como referência para desvendar a passividade imitativa do estado social, pois está

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provisoriamente desprovido dessa força de resistência. Assim, no estado do sonambulismo, todas as forças de crença e de desejo se concentram em um único polo, culminando no efeito da obediência e imitação por fascinação, ou seja, temos aqui um tipo de polarização inconsciente do amor e da fé (TARDE, 2000). Referente a isso, é válido destacar que:

Pensar espontaneamente é sempre mais fatigante do que pensar por outro. Assim, todas as vezes que um homem vive em um meio animal, numa sociedade intensa e variada, que lhe fornece espetáculos e concertos, conversas e leituras sempre renovadas, ele se dispensa gradualmente de todo o esforço intelectual; e entorpercendo-se ao mesmo tempo e superexcitando-se cada vez mais o superexcitando-seu espírito, repito-o, faz-superexcitando-se sonambulo. Eis aqui o estado mental próprio de muitos citadinos (TARDE, 2000, p. 110).

De acordo com essa teoria, a sociedade é a própria imitação, sendo um estado comparável ao sonambulismo e o despertar para inovar e descobrir exige ousadamente safar-se da sociedade (TARDE, 2000). Dawkins (2007) safar-se refere a um processo no qual os memes se propagam saltando de cérebro para cérebro, constituindo, em sentido amplo, o que o mesmo denominou de imitação, formulando uma perspectiva que coaduna com a microssociologia de Tarde, na qual a natureza do ser social é imitar. Para o sociólogo mencionado, a imitação corresponde a uma categoria social que também apresenta uma dimensão natural oriunda da preguiça instintiva relacionada à tendência a copiar, o que nos direciona a uma unanimidade de coração e de espírito, que compõe e tece os laços sociais, formados, pouco a pouco, via irradiações imitativas.

Neste ponto de vista, a imitação e a invenção constituem atos sociais elementares impulsionados pela ideia, pelo querer, por uma opinião ou desígnio, sendo providos de crenças e desejos. Dessa forma, dão vida a todas as palavras da língua, da organização de um Estado, da arte, das leis, etc. Em outras palavras, as qualidades psicológicas, que fornecem a base a todas as qualidades sensacionais da combinação, residem na crença e no desejo, a partir das quais, ao serem organizadas pela invenção e a imitação, acessamos as verdadeiras quantidades sociais, de modo que as sociedades se organizam através de acordos ou oposição de crenças, initerruptamente, consolidando-se e implicando em instituições. O progresso social é interposto pela sucessão de substituições e acumulações, mas que partem, inicialmente, de um indivíduo, e neste reside a chave para novas aberturas (TARDE, 2000).

Trata-se de concepções que, se não observadas atentamente, parecem sugerir que somos meros dispositivos de comando. Entretanto, é válido chamar atenção para o fato de que estamos partindo da ótica dos memes, enquanto uma classificação voltada para um tipo de

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decomposição das partes. É como se Dawkins (2007), da mesma forma que usa sistemas óticos para ampliar e estudar componente de dimensões extremamente pequenas no campo de estudos da Biologia tivesse pensado que isso é possível também no âmbito da cultura, tendo em vista que, a seu ver, segue uma lógica de evolução análoga, embora com suas particularidades. Em virtude da grande propagação, e, consequente disputa de informação que caracteriza a sociedade digital, a feliz analogia é notável.

Diante do que já foi exposto até aqui, podemos concluir que o meme não é nem a invenção nem a novidade, mas, estas, ao serem soltas, podem se tornar um meme na medida em que acionam o mistério da imitação. Chegamos a um ponto que nos permite elaborar uma definição generalizada para o meme: este é constituído por uma unidade de transmissão cultural, que pode ser visual, verbal ou sonora, cuja extensão depende da capacidade de se replicar ou ser imitado, coadaptar e adquirir independência do seu enlace original. Dessa forma, transita por quadros de sentidos, nos quais se adapta e explora o meio cultural, a fim de assegurar sua continuidade através da cópia em sucessivos cérebros, pelos quais disputam atenção. É pertinente ressaltar aqui, como o próprio Dawkins (2007) o faz, acerca do que foi dito não se deve sustentar ideias místicas, nem quanto ao gene nem quanto ao meme, pois a noção de ação intencional é puramente metafórica. Dito isto, interessa investigar ou rastrear, o movimento peculiar das associações relativas ao que chamamos de memes na internet.

2.1.2 As novas tecnologias do tempo e da memória

Maurizio Lazzarato (2006) salienta que, desde o fim do século XX, o poder das máquinas de expressão foi multiplicado pelos dispositivos tecnológicos de reprodução à distância, bem como rádio, TV, telefone e, em especial para nossa análise, a internet. Dessa maneira, ele define os dispositivos de ação à distância de um cérebro sobre outro como tecnologias do tempo ou da memória, já que os fluxos da cooperação entre os cérebros e as forças vivas que animam as redes (a memória e a atenção) foram potencializados pelas extensões das memórias artificiais.

Conforme afirmam Lipovetsky e Serroy (2015), estamos atravessando uma revolução

higt-tech eletrônica e digital, fomentadora de uma leveza móvel livre dos espaços-temporais,

a qual, inevitavelmente, afeta os valores, os comportamentos, as relações e, especialmente, nosso desejo de compreender as novas e frenéticas dinâmicas sociais. Sob tal enfoque, a ideia de capacidade de replicação descrita por Dawkins (2007) assume novas proporções. Além disso, o contágio irradiador (TARDE, 2000), nessa sociedade, apresenta uma predisposição

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maior em alargar as ações que influenciam uns aos outros continuamente, dentro de um espaço-temporal indefinido.

Com desenlaces positivos ou negativos, vivemos, usando os termos de Manuel Castells (2003), na galáxia da internet, a qual nos assedia e nos cerca. A sua criação remete ao ano de 1969, nos Estados Unidos, preludiando vida nova às redes humanas, na medida em que abriu novas possibilidades, flexibilidade e adaptabilidade de maneira revolucionária. Ademais, implicou em um desempenho de tarefas, de tomadas de decisões, de expressões individualizadas e comunicação global e horizontal, conferindo uma forma organizacional superior para a ação humana. A internet possui capacidade de distribuir a força da informação por todo domínio da atividade humana, redimensionando a realidade. Portanto, é produtora de um devir que inquieta (não apenas intelectuais), sobretudo pela inédita capacidade de provocar mudanças em um curto espaço de tempo.

Dessa forma, segundo Lypovetsky e Serroy (2015), tecemos uma realidade marcada pelo crescimento de redes caracterizadas pela tela global, o que, em outras palavras, implica na ampliação ao acesso às mais diversas telas, multiforme e multimídia, o que nos proporciona um “hiperespetáculo onipresente”. Por sua vez, os autores mencionados expressam que tendemos a nos tornar hiperespectadores, permanentemente conectados e em interação incessante com um mundo de imagens, vídeos e informações. Nessa configuração, os indivíduos incorporam a condição de ator no que concerne à mídia, visto que os nossos pensamentos são invadidos por imagens e, assim, pensamo-nos enquanto imagens ao instrumentalizar a tela (LYPOVETSKY; SERROY, 2015).

Entretanto, essas novas redes que estão sendo criadas confundem e redimensionam esse "ator", suas relações, o outro, a sociedade, o humano e o não humano. A indagação feita por Jean Baudrillard (1990, p. 65) “sou um homem, sou uma máquina?” é hoje pertinente e diz respeito a uma relação cada vez mais íntima com tecnologias digitais, produzindo, conforme o autor destaca, uma ambiguidade antes inexistente na relação com as máquinas tradicionais. Logo, a máquina não se constitui mais enquanto uma entidade estranha ao homem, uma vez que, como frisa Baudrillard (1990, p. 66), "as novas tecnologias, as novas máquinas, as novas imagens, as telas interativas não me alienam em nada. Formam comigo um circuito integrado".

Em vista disso, os memes se deparam com máquinas mais potentes para explorarem, porém que dimensão a nossa natureza social, ou, a nossa predisposição imitativa pode atingir? Destaca-se ainda que, no enlace comunicacional das tecnologias digitais e do homem telemático, as relações não são mais essencialmente face a face, mas, sim, mediadas pela

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técnica e pela tela. Nessa nova realidade, ainda nebulosa, estamos incessantemente conectados, mas não com os outros indivíduos tão somente.

2.1.3 Uma sociedade transgressora da realidade sensível

Para Baudrillard (1990), as máquinas oferecem ao homem o espetáculo das ideias, contudo, ele é mais seduzido por tal espetáculo do que pelas ideias. Não por acaso se fala em relações virtuais, dado que as ideias são mantidas em um suspense impreciso, situado em um estado de saber exaustivo. Estabelecendo um constante adiamento do pensar, segundo a perspectiva desse autor, a questão das ideias, bem como a da liberdade, nem mesmo pode ser colocada para as gerações futuras, porquanto as circunstâncias de suas vidas se convertem em um tipo de espaço aéreo, uma vez que estão presas ao assento e cruzarão, dessa forma, seus espaços mentais aprisionados ao computador. Portanto, "o homem virtual, imóvel diante do computador, faz amor pela tela e faz cursos por teleconferências. Torna-se um deficiente motor, e provavelmente cerebral também" (BAUDRILLARD, 1990, p. 60).

As máquinas são celibatárias e implicam no celibato do homem telemático, posto que estabelecem uma relação na qual o outro não pode ser, de fato, atingido, sendo a única coisa visada a tela; a interface, aqui, troca o mesmo pelo mesmo; nela, o outro seria virtualmente o mesmo, "a alteridade sendo sub-repticiamente confiscada pela máquina" (BAUDRILLARD, 1990, p. 62). A interatividade do homem, conforme Baudrillard (1990), reduziu-se a da tela, e, nesta, nada é feito para ser compreendido com profundidade, pelo contrário, o objetivo é explorar instantaneamente.

Nesta perspectiva, estar distante e estar perto se tornam condições paradoxais. Para Han (2016), estamos embriagados pela tecnologia digital. Assim, temos um olhar típico do espetáculo: a comunicação digital dilui a distância entre público e privado. Isso redunda em uma realidade invadida pelas imagens, em virtude de não haver nenhuma esfera na qual não sejamos uma imagem e que não possa ser registrada por uma câmera. Portanto, Han (2016) nos descreve como caçadores de informação em busca de presas vasculhando a rede com o olhar, referindo-se a um tipo de caça digital. Nessa lógica, estamos em uma incessante mobilidade, porquanto nenhum solo obriga a se fixar.

Com tal característica, a tela transforma todo o paradigma da sensibilidade, porque apresenta uma exploração digital, na qual o olho circula incansavelmente; a relação com o outro na comunicação, e, com o saber na informação se dão de forma tátil e exploratória. Em consequência, estamos nos aproximando infinitamente da tela, com os olhos focados nas

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imagens, assim, "se caímos com tanta facilidade nessa espécie de coma imaginário da tela, é porque ela traça um vácuo perpétuo que somos solicitados a preencher" (BAUDRILLARD, 1990, p. 63). Todavia, essas imagens são inalcançáveis, estando a uma distância especial "intransponível pelo corpo". Por conseguinte, as palavras, os gestos, os olhares, dentro do âmbito da comunicação, se mantêm em uma proximidade contínua, mas, como a tela é virtual, nunca se tocam (BAUDRILLARD, 1990).

Como expressa Lazzarato (2006), a mobilização do vivo ocorre na medida em que a atenção e a memória são os principais alvos de mobilização. À vista disso, esse mesmo autor ressalta que a circulação das palavras, das imagens, do conhecimento, das informações e dos saberes compõe o lugar de enfrentamento (estético e tecnológico) pela criação do sensível através dos meios de expressão que os efetuam, haja vista que os dispositivos tecnológicos modernos atuam na duração da memória e, na medida em que mobilizam a atenção, interferem diretamente na criação do sensível.

2.1.4 Unidade de transmissão cultural

Nesse rearranjo, a metáfora usada por Dawkins (2007, p. 337) expressa que "os computadores onde os memes habitam são os cérebros humanos", convergindo com a realidade estabelecida na sociedade digital, visto que o computador deixa de ser puramente uma metáfora e efetivamente se torna uma extensão do cérebro. Como efeito, o conceito de cultura deve necessariamente abranger os espaços virtuais, nos quais estamos cada vez mais imersos e seduzidos, produzindo novas formas de conexões. Dawkins não elabora sistematicamente um conceito para a cultura, mas, Edgar Morin (2008) oferece uma perspectiva transdisciplinar oportuna a esse respeito, dado que abarca as dimensões histórica, biológica, material, imaterial, psicológica e simbólica dentro do amplo conjunto de conceitos e teorias que englobam a compreensão de cultura.

Embora Dawkins (2007) se refira a uma unidade de transmissão cultural cuja forma de evolução seria análoga à evolução biológica, ambas não estão diretamente relacionadas, pois, a partir do momento em que se estabeleceram condições do novo replicador produzir cópias de si mesmo, ele (o meme) tendeu a assumir a direção do processo. Diferentemente das demais máquinas de genes (animais e plantas), nossa particularidade reside justamente na cultura. Na acepção de Morin (2008), a cultura corresponde a uma espécie de megacomputador apto a memorizar dados cognitivos, possuindo, assim, quase programas e prescrevendo as normas práticas de uma sociedade. Em consequência, esse megacomputador

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se insere em cada espírito/cérebro individual e, diante disso, a cultura é uma máquina na qual a práxis é cognitiva, além de produzir uma visão de mundo a partir de um saber acumulado em memória social, princípios, modelos e esquemas.

A visão de mundo concernente ao homem telemático reflete em nossa capacidade de construir artificialmente, por meio da fantasia e imaginação, as pessoas com quem lidamos. De acordo com Marcondes Filho (2009), a realidade virtual é habitada por seres imaginários, os quais apresentam personalidades que inventamos e representamos livremente, o que implica afirmar que, no nosso social (um tecnosocial), os humanos constituem os personagens mais frágeis dessa comunidade, uma vez que necessitam de próteses para se equiparar aos seres mais sintonizados com a tecnosociedade. Ainda consoante esse mesmo autor, atualmente, podemos multiplicar a nós mesmos como diferentes subtipos de pessoas, o que significa que nos transformamos em potência de nós mesmos, somos criadores (deuses) de outras entidades que adquirem vida no mundo virtual. Em síntese, simultaneamente à nossa desmontagem como unidade central do social, sofremos o processo de desmaterialização como personagens dos ambientes cibernéticos e nas redes, dado que a tela absorve a todos, uns mais outros menos (MARCONDES FILHO, 2009).

Diante da obsessão virtual, a qual consiste em existir potencialmente em todas as telas, os memes (que ganham cada vez mais notoriedade na internet) aludem a essa rede formada por atos e acontecimentos plenos da possibilidade de serem contemplados em uma imagem. Retomando Lazzarato (2006), os dispositivos modernos agem à distância sobre os hábitos mentais e às forças que os movem (os desejos e as crenças). O autor explica que as máquinas de expressão atuam no tempo de duas formas diferentes: criando acontecimentos ou focando na matriz de sua atualização através do controle de sua efetuação.

Nessa lógica, a internet representa uma liberação das forças centrífugas, exacerbando e inventando outras máquinas de expressão, juntamente com outros regimes de signos, modificando, assim, a forma de funcionamento da TV, uma vez que fomenta o desenvolvimento de cérebros assemblados e modalidades de ação recíprocas. Outro aspecto fundamental é que a multiplicidade das pertenças dispõe, em tal conjuntura, dos dispositivos tecnológicos congruentes à sua natureza, de modo a estabelecer uma luta entre o plurilinguismo e o monolinguismo (LAZZARATO, 2006).

Toda ação deseja ser fotografada, filmada, gravada, adentrar na memória e tornar-se infinitamente reprodutível na eternidade virtual. No entanto, esta não é durável, posto que reverbera na efêmera ramificação das memórias artificiais (BAUDRILLARD, 1990). Sob tal perspectiva, nosso objeto se converte em uma incomensurabilidade de entraves

Referências

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