• Nenhum resultado encontrado

Auto-organização Fraca, Forte e Verdadeira (Estrutural, Funcional e Intencional)

Capítulo 2: A Auto-organização de Henri Atlan e Edgar Morin

2.2. A Ordem a Partir do Ruído de Henri Atlan

2.2.4. Auto-organização Fraca, Forte e Verdadeira (Estrutural, Funcional e Intencional)

De acordo com Dupuy (1996), as tentativas de formalizar a auto- organização dos sistemas biológicos por meio de redes de autômatos booleanos (na confluência de diversas correntes e escolas de pensamento) representam a possibilidade de modelizar cientificamente – ou “naturalizar” – a intencionalidade. Nascidas na segunda cibernética, estas tentativas tiveram prosseguimento com Henri Atlan, especialmente em seus artigos Emergence and Classification Procedures in Automata

Networks as a Model for Functional Self-Organization (1986) e Intentional Self- Organization. Emergence and Reduction: Towards a Physical Theory of Intentionality

(1998, inserido na coletânea Atlan (2011)). Este último artigo já foi analisado em Tassinari & Carvalho (2004) e é revisitado e expandido por Atlan em The Emergence of

Goals in a Self-Organizing Network: A Non-Mentalist Model of Intentional Actions

(Louzoun & Atlan, 2007). Estes artigos servirão como base de análise da atual fase da Teoria da Auto-organização de Atlan para o resto deste capítulo.

E qual é nosso interesse aqui em tratar uma teoria da intencionalidade? A importância desta análise se torna aparente quando notamos que a Teoria da Auto- organização de Atlan está ligada às “transferências de informações e significações” (ver seções anteriores) de maneira semelhante à sua Teoria da Intencionalidade. Em outras palavras, o que definirá o “tipo” de auto-organização é a mesma variável que definirá o “tipo” de intencionalidade obtido por um modelo, a saber, a “significação”.

Conforme já discutido em Tassinari & Carvalho (2004), Atlan (1998) cria sua Teoria Física da Intencionalidade por meio de uma construção crescente de modelos

“Ainsi, le principe de complexité par le bruit, c’est-à-dire l’idée d’un bruit à effets positifs, c’est la

36

façon détournée que nous avons d’introduire les effets du sens, la signification, dans une théorie quantitative de l’organisation” (Atlan, 1979, p. 88).

Neste sentido, Debrun tem razão ao minimizar os efeitos do ruído para a auto-organização, e ao colocar

37

o “significado” ao lado da energia e da informação, como dimensões descritivas do neomecanicismo. Veremos com maior profundidade no Capítulo 3.

computacionais destinados a, por fim, fazer emergir um comportamento decisório, associado diretamente à emergência de um atrator no sistema auto-organizado.

[…] Todo atrator, em qualquer sistema, constitui uma órbita, ou seja, um conjunto de estados. […] O atrator pode ser considerado como um conjunto de soluções para o qual órbitas (ou seja, conjuntos de estados) próximas dos ciclos limites convergem, depois de decorrido um determinado tempo, e esse fato liga o atrator à noção de estabilidade (Bresciani & D’Ottaviano, 2004, p. 246).

Utilizando redes de autômatos booleanos relativamente simples, com base em critérios auto-gerados, Atlan et al. (1986) observaram emergências não-programadas de estruturas macroscópicas e de funções. Tais resultados são estendidos em Louzoun & Atlan (2007), com a construção de um modelo geral para a emergência de comportamentos direcionados a metas em redes neurais, as quais inicialmente não apresentavam intencionalidade.

Não é objetivo desta Tese entrar nos detalhes do funcionamento das redes neurais obtidas por Atlan, mas apenas indicar o esboço geral de sua construção.

Na prática, o modelo é construído utilizando-se duas redes relacionadas. A primeira é uma rede auto-organizada recorrente que evolui de um estado inicial qualquer (input) para um estado estacionário (output), um atrator estável que apresenta uma estrutura macroscópica. Este estado final pode estar associado a algum comportamento funcional, mas é necessária a presença de um observador externo que dê significado a este funcionamento.

Esta primeira rede é a rede booleana aleatória descrita em Atlan (1998) e analisada em Tassinari & Carvalho (2004). Entretanto, Atlan deseja, no novo modelo, que o observador seja o próprio sistema (alternativa que ele já vislumbrava em 1998, mas desenvolveu apenas em Louzoun & Atlan (2007)). Isto pode ser parcialmente obtido por meio do armazenamento de inputs/outputs em algum dispositivo de memória. Mas há que se pesar os valores de diferentes estados finais, para poder eventualmente decidir pela escolha de alguns em detrimento de outros. Isto traria uma valoração de alguns outputs como “metas”, ou ainda, “metas desejáveis” para o sistema. Para chegar ao objetivo de transformar o sistema seu próprio observador, esta “função de satisfação” tem que ser, necessariamente, auto-gerada. Caso contrário,

estaríamos ainda na situação de um observador externo definindo as metas do sistema (ou trazendo significado à sua funcionalidade). Implementa-se esta função de satisfação por meio de uma segunda rede, desta vez uma rede de aprendizado não-supervisionado.

Assim, podemos resumir o funcionamento destas duas redes integradas da seguinte maneira:

• A rede 1 é levada por sua dinâmica interna ao estado final S a partir de um estado inicial C;

• A rede 2 aprende uma relação entre C e S; o aprendizado correto é adquirido quando, subsequentemente, um estado S (ou próximo) é associado a C (ou próximo). Em outras palavras, a rede 2 registra ligações diretas entre inputs e outputs da rede 1.

• Apenas os estados S mais aprendidos serão armazenados para constituir o conjunto de estados que atuarão como “metas desejadas”. Em outras palavras, a rede 2 gera sua própria função de satisfação.

O sistema assim desenvolvido será capaz de criar, por si mesmo, novas metas e atingi-las. As metas serão determinadas pela capacidade da rede em aprender relações entre efeitos e os eventos que os causaram, gerando a função satisfação com o conjunto de estados S mais aprendidos.

Mais precisamente, [a função satisfação] resulta da história de exposições desta rede a inputs aleatórios externos de seu ambiente e de respostas a estes inputs produzidas por sua estrutura interna, totalmente aleatória. É esta história que gera a função satisfação de um modo dinâmico, não-programado. (tradução nossa) 38

O modelo é uma metáfora para o processo de aprendizado de metas nos seres cognitivos, envolvendo a capacidade de predizer rapidamente o resultado de um conjunto de eventos, de forma a que um evento inicial seja reproduzido conhecendo-se seu resultado esperado. Em outras palavras, a predição de resultados e a ação intencional estão diretamente ligadas; ainda que a capacidade de previsão dependa diretamente das memórias de experiências prévias, deve haver alguma liberdade em alterar (em relação a estas memórias) ligeiramente a ação intencional, pois as situações

“More precisely, it results from the history of exposures of this network to random external inputs from

38

its environment and of responses to these inputs produced by its internal, quenched random, structure. It is this history which provides the satisfaction function in a dynamic, non-programmed way” (Atlan, 2007, p. 90).

memorizadas nunca serão idênticas à situação atual: é necessário algum grau de adaptação. Isto é conseguido diretamente como resultado da dinâmica da rede, na qual resultados semelhantes (mas não idênticos) são obtidos a partir de estados iniciais ligeiramente diversos, pelo surgimento de atratores.

Atlan afirma existir uma relação direta entre este mecanismo de intencionalidade de um sistema e uma teoria de significados, uma vez que se o estado S foi intencionado por um determinado sistema, pode-se dizer que S significa algo para o sistema. Este é um eco de sua postura anteriormente descrita (Atlan, 1979, ver seções anteriores) de que uma mudança de estado no sistema pode ter um significado para o sistema como um todo (ou para um nível hierárquico superior).

No modelo de Atlan, o “desejo por S” como um estado mental é substituído por uma cadeia causal de mudanças de estado, determinada por sua estrutura, que leva mecanicamente de C para S. Um desejo consciente (no sentido de memorizado) aparecerá como mera consequência de um impulso mecânico. Esta repetição de comportamentos anteriores para a obtenção de metas parece invalidar a idéia do surgimento de novidades neste modelo de Atlan. Entretanto, o autor considera que a existência de atratores em sistemas como este permite que se atinja o estado S a partir de estados próximos a C (e não apenas idênticos a ele), como no funcionamento da memória associativa. Da mesma forma, estados S', ligeiramente diferentes do S original, podem ser atingidos e armazenados, tornando-se novas metas para futuros “desejos” do sistema.

É com base nas “metas”, “desejos” ou “significados” do (para o) sistema que Atlan distingue (no artigo de 1998) três tipos de auto-organização:

• Auto-organização fraca: o significado do sistema é imposto de fora.

• Auto-organização forte: a geração de significado é uma propriedade emergente do próprio funcionamento do sistema, sendo reduzida ao máximo sua imposição externa.

• Auto-organização verdadeira: propriedade dos sistemas com sofisticação infinita, sofisticação de um sistema sendo definida – de maneira semelhante à

complexidade algorítmica – como o mínimo comprimento de um programa capaz de gerar este sistema.

Posteriormente, Louzoun & Atlan (2007), redefinem as categorias de auto- organização nas seguintes bases:

• Auto-organização Estrutural: sistemas que apresentam a emergência de estruturas espaço-temporais globais complexas por regras (deterministas ou estocásticas) ao nível dos elementos.

• Auto-organização Funcional: sistemas com emergência de funções significativas, não explicitamente programadas pelo desenvolvedor do modelo.

• Auto-organização Intencional: sistemas que apresentam a criação de significado de seu comportamento, na forma de metas funcionais não previamente programadas, e que podem ser atingidas repetidamente, mesmo que com pequenas variações.

Percebe-se que, a partir desta nova tipologia de sistemas auto-organizados, os dois primeiros graus ou tipos de auto-organização propostos em Atlan (1998) passam a ser subtipos da auto-organização funcional, e a proposta presente em Louzoun & Atlan (2007), em que há aprendizagem e geração de novas metas, desejos ou significados sem a imposição externa associada a uma memória capaz de valorar estes desejos (e escolher realizá-los novamente) é um caso de auto-organização intencional.

Finalmente, os sistemas que apresentam auto-organização verdadeira teriam a propriedade de não serem nem recursivos (já que os passos são infinitos), nem aleatórios (pois são estruturados e não decorrem do mero acaso). A auto-organização verdadeira, como definida por Atlan, nos levanta uma questão epistemológica interessante, e que será discutida no próximo capítulo: o quanto podemos atribuir à nossa ignorância (seja do “programa”, seja das condições iniciais) o fato de tratarmos a auto-organização e a criação de novidade? Pois, no modelo de auto-organização verdadeira de Atlan, não há verdadeira criatividade, visto que apenas consideramos algo novo na medida em que ignoramos os passos do “programa infinito” que se revelam a cada passo.